Diário de Classe

A Teoria do Direito importa: superando mitos sobre o positivismo jurídico

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13 de janeiro de 2024, 8h00

Já passou da hora de todos os envolvidos no estudo e na prática jurídica entenderem: a Teoria do Direito importa e muito. Em tempos em que as faculdades de Direito cortam cadeiras essenciais como filosofia do Direito, hermenêutica jurídica e teoria da constituição em desfavor de cadeiras sobre empreendedorismo e marketing jurídico, dizer que os estudantes de Direito devem ter um resposta adequada sobre qual o “conceito de Direito” – para parafrasear H.l.a. Hart — é remar contra a maré. Neste pequeno texto, quero mostrar uma compreensão minimamente adequada de temas como o Positivismo jurídico.

Uma prestigiosa instituição com décadas de tradição no ensino do Direito com a qual tive proximidade retirou recentemente de sua grade de currículo as cadeiras de hermenêutica jurídica e de sociologia jurídica e reduziu a meio semestre a disciplina de filosofia do Direito em desfavor de disciplinas sobre empreendedorismo. Resultado? Nenhum dos alunos com os quais conversei — alguns muito dedicados e realmente interessados — soube dar uma resposta minimamente adequada sobre o que é o Direito.  “Tem a ver com as leis e com a organização do Estado” foi a resposta média. É claro que não se trata de um estudo científico com bases cientificamente fundamentadas, mas é sintomático estudantes de Direito não saberem minimamente o que significa o nome do curso que frequentam — façam o teste e perguntem o que significa para estudantes conhecidos. Quando se pergunta a respeito do que significa o positivismo jurídico, as respostas também são simplórias: foi inventado por Kelsen e significa cumprir a letra fria da lei mesmo contra a justiça.

Nenhum argumento pode se sustentar em favor de reduzir essas disciplinas. Nem sequer o argumento meramente econômico de focar no desenvolvimento de uma carreira que dê frutos econômicos, pois os maiores e mais importantes escritórios de advocacia do Brasil não contratam néscios e muitos exigem como requisito objetivo o conhecimento na área da filosofia do Direito, e ter mestrado é quase sempre requisito básico (vide a recente seleção para a Warde advogados e as seleções feitas pela Streck e Trindade Advogados). A fundamentação e as discussões em tribunais superiores que podem mudar totalmente a vida dos envolvidos são quase sempre relacionadas à argumentação jurídica e à filosofia do Direito. A prática cotidiana de conseguir construir um argumento adequado em um caso simples também passa por aí. Um advogado que nem sequer sabe o que significa o “Direito”  vai estar redigindo a sua peça processual à mão em uma sala com as luzes apagadas.

Foi o professor Lenio Streck (1999) quem primeiro denunciou em terra brasilis como más compreensões sobre temas da Teoria do Direito, como o positivismo jurídico, prejudicavam diretamente a prática jurídica e, por consequência, o dia a dia dos mais simples e pacatos cidadãos. A sua obra Hermenêutica Jurídica e(m) Crise não vendeu mais de 20 mil exemplares sem motivo, mas muito dos problemas apontados constantemente por mais de um quarto de século pelo professor continuam a assolar nossa cotidianidade. Para os desinformados, pode parecer mera propedêutica se falar de positivismo jurídico, hermenêutica jurídica e teoria da decisão, mas a sua desconsideração é uma forte agravante de nossas injustiças sistêmicas. Todos têm direito à uma resposta constitucionalmente adequada dentro de seu processo, e se os partícipes do processo, sejam o advogado, o juiz ou outro envolvido não têm o conhecimento adequado para essa tarefa, é como se um médico não tivesse o conhecimento de anatomia adequado para operar seus pacientes. Na medicina é mais fácil de identificarmos charlatões, pois o paciente normalmente morre ou sofre alguma sequela física, mas no Direito o paciente também sofre as sequelas: ele pode ficar sem casa, preso ou sem algum outro direito essencial ao seu bem viver.

O Brasil é o país com a maior proporção de advogados por habitante do mundo. Ao todo cerca de 1,3 milhão de advogados exercem regularmente a profissão entre 212,7 milhões de pessoas (IBGE). Proporcionalmente, há um advogado para 164 brasileiros residentes no país. Um exército de pessoas com formação precária em certos temas fundamentais exercendo funções de poder agrava a nossa condição de subdesenvolvimento e de injustiças.

É justamente por uma angústia existencial diante desses e de outros problemas da prática jurídica cotidiana que o professor Lenio está escrevendo o seu mais novo livro, Ensino Jurídico e(m) Crise: uma Radiografia da Graduação e Pós-graduação no Brasil, obra que tive a oportunidade de revisar em primeira mão e da qual pego algumas ideias emprestadas para este texto (destaco também a tese de doutorado em desenvolvimento de minha brilhante colega de Dasein e orientanda do professor Lenio, Bianca Roso que versa com precisão sobre o tema.)

Ter bases epistemológicas sólidas é uma condição sine qua non para que os estudantes respondam a perguntas básicas para um funcionamento razoável da Justiça de maneira adequada .

Vejamos um exemplo relativo a um tema que é debatido a quase cinco séculos por juristas ocidentais e que é muito mal compreendido no Brasil: o positivismo jurídico, meu principal objeto de estudo na pós-graduação. As confusões acerca do positivismo e a dificuldade de assimilação de uma teoria do direito democrática na academia e na prática afetam o devido acesso à Justiça de muitas pessoas. Decisões que desconsideram questões centrais da teoria do direito afetam o direito dos cidadãos a um julgamento adequado. Vejamos estes fragmentos de uma acordão do STJ:

“- Tenho para mim, mas sem polemizar com os que pensam de forma oposta, que estes conceitos se alojam na inevitável e necessária subjetividade do julgador, quando aprecia a adequação de embargos declaratórios; aliás, os Embargos Declaratórios são considerados o primo pobre da família recursal, justamente porque o positivismo excludente e o legalismo impenitente lhe apresilharam a característica de não ter a potestade de alterar a decisão; discordo disto, pois, se assim fosse, os declaratórios nem seriam legitimamente considerados modalidade recursal, porquanto na tradição processual, a função dos recursos é a de mudar, ajustar ou aperfeiçoar a decisão [1].

– Não se pode esperar do poder judicial qualquer interpretação jurídica que venha a restringir ou prejudicar o plexo de garantias das pessoas, com destaque para aquelas que reivindicam legítima proteção do Direito Previdenciário. Pelo contrário, o esperável da atividade judicante é que restaure visão humanística do Direito, que foi destruída pelo positivismo jurídico” [2].

As afirmações acima estão completa e categoricamente incorretas. O positivismo nunca separou uma visão humanística do Direito — pelo contrário, Kelsen até aproximou demais o direito do subjetivismo humano do julgador —, e por quais razões isso importa? Isso importa porque existem poucas maneiras — para não dizer apenas uma — de se interpretar e aplicar o Direito de um maneira democrática e harmônica com os princípios da sociedade, e essa maneira — salvo se por uma iluminação divina ou por uma sapiência sobre-humana — passa necessariamente pelo caminho do positivismo jurídico.

O professor Lenio — fazendo mais uma breve propaganda do fenomenal livro sobre educação jurídica que está prestes a ser lançado — aponta que talvez um dos maiores problemas do ensino jurídico e da pós-graduação seja o desconhecimento acerca do positivismo jurídico e do que o sucede. E como se pode perceber, o conceito de positivismo é altamente complexo. E alguns conhecimentos básicos a seu respeito são necessários a todos que estão inseridos na prática jurídica.

Precisamos primeiro compreender o que é o positivismo para superá-lo. E o leitor não precisa para isso se tornar um especialista no tema — saber o básico já é quase um diferencial. É preciso que se tenha ao menos uma compreensão adequada do positivismo — como saber que ser positivista não é cumprir a letra fria da lei ou que o positivismo destruiu uma “visão humanística do Direito” — para superá-lo de uma maneira democraticamente adequada. Separei algumas das principais afirmações erradas sobre o positivismo para que a leitora ou o leitor consiga se situar e se informar adequadamente sobre o tema.

Derrubando alguns mitos e indicando biografias sobre o tema:

1.O positivismo jurídico não foi inventado por Kelsen, e sim há pelo menos quatro séculos – desde Thomas Hobbes – é discutido e refinado sendo fragmentado em muitas vertentes contemporâneas. (Leiam o brilhante livro do também brilhante Gilberto Morbach Entre o Positivismo e o Interpretativismo, que demonstra esse passado e parte desde presente)

2. Positivismo não é cumprir a letra fria da lei ! O positivismo tem relação com descrever o fenômeno jurídico e no momento da decisão inclusive muitos positivistas — como Kelsen — não defendem que o juiz “siga a letra fria da lei”, muito pelo contrário pois para vários positivistas a sentença seria um ato de vontade do juiz! Se olharmos com calma, em muitas situações os positivistas dizem que o juiz deve decidir conforme sua consciência, não tendo qualquer amarras da lei (leiam Hart e Kelsen ou o verbete positivismo jurídico do Dicionário de Hermenêutica do professor Lenio).

3. Os positivistas não só não legitimaram o nazismo como o combateram. (Vejam na ConJur meu texto A lenda urbana de que o Positivismo jurídico legitimou o nazismo, escrito em parceria com Henrique Abel)

4. O Direito não é o que os tribunais dizem que ele é. (O Direito é um conceito interpretativo e a interpretação dos tribunais pode estar errada, os próprios tribunais reconhecem isso — ler qualquer escrito do professor Lenio.)

5. Só com teorias rígidas como o positivismo temos segurança jurídica. (O positivismo jurídico em vários momentos diz que o juiz deve decidir como julgar mais conveniente sem se prender a critérios de interpretativismo, vide a zona de penumbra de Hart, que afirma que quando faltam respostas na lei, o juiz deve julgar como se ele fosse o legislador. Dworkin, por meio dos princípios, fecha a interpretação dizendo que os juízes devem decidir com coerência com o que já foi decidido e integridade diante de todo o sistema jurídico — leiam o verbete coerência e integridade do Dicionário de Hermenêutica.)

6. Sem o positivismo estamos em um vácuo em que tudo se pode? Muito pelo contrário. Streck (2017) deixa evidente que com o interpretativismo e os princípios, temos um fechamento interpretativo e não uma abertura para subjetivismo. A hermenêutica e a interpretação contornam as aberturas à arbitrariedade do positivismo.

Como pesquisador do positivismo jurídico, espero ter conseguido sanar algumas das más compreensões sobre o tema que se vulgarizam por aí. Um tema que foi sinônimo de filosofia do Direito por séculos. Penso que, no pior dos casos, o leitor não vai mais passar vergonha dizendo impropriedades sobre o tema, e, no melhor dos casos, vai se angustiar e se aprofundar no tema para conseguir tecer críticas adequadas e eficientes para o funcionamento de uma Justiça mais democrática. Se nós, profissionais do Direito, não tivermos uma noção mínima do que significa positivismo e de como ele foi superado, será impossível que os profissionais do Direito tenham uma compreensão certa de como aplicar a lei. Um Direito que não é aplicado e interpretado adequadamente serve para que(m)? O professor Lenio muito bem aponta e destaca em todas as suas aulas: nosso modelo de educação jurídica voltado para aprovação em concursos, no qual a memorização de interpretações feitas pelo Judiciário vale mais do que formação crítica, está em crise.

 


Referências:

HART, Herbert. O conceito de Direito.  1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2000.

MORBACH, Gilberto. Entre o positivismo e o interpretativismo, a terceira via de Waldron. Salvador: Juspodium, 2020.

STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito.. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.

[1] Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200600700172&dt_publicacao=13/05/2016>. Acesso em 24 de setembro de 2023

[2] Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201800211961&dt_publicacao=01/08/2019>. Acesso em 24 de setembro de 2023

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