Direitos Fundamentais

Nos cinco anos da tragédia de Brumadinho, nada a comemorar!

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12 de janeiro de 2024, 10h18

“Em termos de dano ecológico, não se pode pensar em outra colocação que não seja a do risco integral. Não se pode pensar em outra malha, senão a malha realmente bem apertada que possa, na primeira jogada da rede, colher todo e qualquer possível responsável pelo prejuízo ambiental.”
Sérgio Ferraz [1]

Brumadinho nunca mais? (…) Enquanto o modelo de negócio não mudar e a política da mineração priorizar o produto, em vez da vida humana, não haverá lugar seguro para ninguém.”
Daniela Arbex [2]

Em duas semanas terão transcorrido cinco de um dos maiores desastres ambientais e humanitários já verificados no Brasil, designadamente, a lamentável e infame tragédia decorrente do rompimento, em 25/1/2019, da Barragem da Mina Córrego do Feijão, explorada pela mineradora Vale (que tirou o “do Rio Doce” do seu nome, quando da tragédia de Mariana, em 2015) na cidade de Brumadinho, no estado de Minas Gerais. Além da tragédia ambiental provocada pelo rompimento da barragem, que deixou um rastro de destruição derivado do “mar” de lama tóxica dos rejeitos de minérios, e que se estendeu por mais de 300 quilômetros, passando por 17 cidades, o desastre de Brumadinho também ceifou a vida de 270 pessoas (na verdade, 272, se contarmos as duas gestantes entre os mortos), segundo dados oficiais. [3]

Spacca

Infelizmente, o caso de Brumadinho situa-se no âmbito de um ciclo de “mega desastres” ambientais e humanitários verificados na última década no Brasil, que inclui, entre outros (v.g. o aumento no desmatamento na Amazônia, também verificado no período), os casos de Mariana (2015) e de Maceió (2018 e, novamente, no final de 2023, com a persistente ampliação da área afetada). Note-se, aliás, que os três desastres decorreram da atividade de mineração empreendida por grandes empresas e grupos econômicos multinacionais.

Os episódios em questão, dada a sua magnitude e a escala dos danos causados ao meio ambiente e a terceiros (vítimas), são equiparáveis talvez apenas ao caso trágico da Cidade de Cubatão (no litoral do estado de São Paulo) [4], verificado nas décadas de 1970 e 1980, ou seja, durante período, em boa parte, anterior à consolidação do regime jurídico da responsabilidade civil ambiental no Brasil, levado a efeito pela edição, durante a denominada “década de ouro” do Direito Ambiental brasileiro, da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e da Constituição Federal de 1988 (CF), neste último diploma, com a consagração do status de direito fundamental atribuído ao direito a viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, juntamente com o estabelecimento de um conjunto de deveres de proteção ecológica a cargo do Estado e da sociedade (artigo 225).

Conforme passagem transcrita na epígrafe do professor Sérgio Ferraz, em artigo pioneiro do ano de 1978 sobre a responsabilidade civil por danos ecológicos, portanto, ainda antes da entrada em vigor da Lei 6.938/1981, gostaria de frisar que, para o desgosto dos poluidores (diretos e indiretos) nacionais e transnacionais, desde então dispomos no Brasil, por imposição e diretriz normativa rigorosa do Poder Legislativo e de outros órgãos, como é o caso do Conama, de um regime jurídico para a responsabilidade civil ambiental extremamente protetivo, certamente, um dos mais avançados (senão o mais avançado) do Mundo. Tal diretriz, não apenas foi gradualmente sendo incorporada e desenvolvida em uma série de diplomas legislativos, como também chancelada e ampliada em sede jurisprudencial, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, mediante um conjunto significativo de decisões paradigmáticas.

Sem que se vá aqui detalhar e desenvolver os elementos constitutivos do regime de responsabilidade civil ambiental brasileiro, é possível destacar alguns pontos centrais: a) a consagração de um conceito amplo e maximalista de poluidor (artigos 3º, IV, da Lei 6.938/1981), alcançando, assim, igualmente o poluidor indireto, de modo a assegurar uma reparação o mais integral possível; b) a responsabilidade civil objetiva, independentemente da existência de culpa ou dolo, em sintonia com a c) adoção da teoria do risco integral; d) a responsabilidade solidária pelos danos ambientais, assegurando a possibilidade de se demandar em Juízo, isoladamente ou em conjunto, qualquer um dos atores considerados responsáveis pelo dano; d) a imprescritibilidade das ações de reparação de dano de natureza coletiva, inclusive com espaço, em virtude de julgamento do STF sobre o tema, para a extensão aos danos de matriz individual; e) a assim chamada “flexibilização” do nexo de causalidade tradicional natural (fático) com a inserção de elementos normativos ou mesmo, a depender do caso, exclusivamente normativos; f) a possibilidade de responsabilização (em todas as esferas: administrativa, criminal e cível) das corporações empresariais (nacionais e multinacionais) por práticas contrárias à legislação ambiental, mediante a efetiva e integral reparação de danos causados ao meio ambiente e a terceiros; g) a reparação tanto de danos materiais, quanto extrapatrimoniais.

Ricardo Stuckert

Nesse contexto, com base no microssistema reforçado de responsabilidade civil ambiental acima esboçado, tive a oportunidade de atuar, a convite dos advogados dr. Rüdiger Helm, dr. Christoph Lindner e do professor dr. Alexander Graser (representando a Strategic Litigation Unit da Universidade de Regensburg), como parecerista num dos processos movidos por um número muito significativo de vítimas (179 parentes/herdeiros das vítimas e sobreviventes da tragédia de Brumadinho) perante o Poder Judiciário da Alemanha, Munique (Landgericht I), caso De Souza e outros vs. TÜV SÜD AG, empresa alemã detentora de 100 % das ações da (portanto, exercendo o controle total) da TÜV SÜD Bureau de Projetos e Consultoria Ltda. (TSB), que, por sua vez, atuou como inspetora e certificadora da segurança da Barragem da Mina Córrego do Feijão, junto à empresa Vale S.A, responsável diretamente pela operação da barragem

De acordo com as informações fornecidas quando da contratação do parecer (posteriormente confirmadas mediante diversos documentos, articulados processuais, etc.), a atividade desempenhada pela empresa TSB, como inspetora e certificadora da Empresa Vale S.A, continha opiniões relacionadas à operação de drenagem, que teriam aumentado o risco de falhas na/da Barragem da Mina Córrego do Feijão.

Sendo inviável aqui resumir um parecer de cerca de trinta páginas, complementado posteriormente por outra peça de minha autoria, complementado posteriormente por outra peça de minha autoria, desde logo calha adiantar que a conclusão a que se chegou foi a da responsabilidade integral e solidária, na condição de poluidora (direta e indireta), da empresa controladora alemã, pelos danos causados.

Dentre as diversas razões que motivaram tal conclusão, podem ser destacadas, em caráter ilustrativo, as seguintes.

1 – O fato de a TÜV SÜD AG ser acionista controladora (na verdade, a única proprietária com 100% das ações) e exercer poder de controle total e exclusivo sobre a TSB estabelece um liame fático e jurídico robusto e suficiente para o enquadramento da primeira como poluidora — direta e indireta — responsável objetiva e solidariamente pela reparação integral dos danos ambientais (individuais e coletivos) causados às vítimas.

2 – No contexto dos fatos que desencadearam o rompimento da Barragem, a atividade desempenhada pela empresa TSB, ao atuar como inspetora e certificadora da segurança da barragem junto à Vale S.A., insere a empresa e a sua controladora na cadeia causal (fática e jurídica) de responsabilização solidária pelo dano ambiental, uma vez que a sua omissão ou atuação deficiente é atestada de modo cabal pelo desastre ocorrido

3 – A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, reforça o regime jurídico da responsabilidade civil ambiental, notadamente em relação à sua natureza solidária e à reparação integral dos danos causados, inclusive com o reconhecimento expresso da responsabilidade solidária entre as sociedades controladoras e controladas, conforme previsão do seu Artigo 4º, Parágrafo 2º. [5]

4 – O STJ, por meio da Súmula 652, reconheceu a responsabilidade solidária do Estado, ao prever que “a responsabilidade civil da administração pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.” Não obstante tratar da responsabilidade dos entes públicos, a Súmula 652 encontra aplicação também para o caso de danos causados por atores privados, o que se ajusta perfeitamente ao caso em análise, tendo em conta que a TÜV SÜD AG, como acionista controladora da TSB, omitiu-se no seu dever de fiscalização, supervisão e gestão preventiva de riscos (sociais e ambientais) para com a empresa filial por ela controlada. Por tais razões, a holding europeia Atisae não pode, em hipótese alguma, ser utilizada como espécie de “escudo corporativo” para blindar a responsabilidade civil da TÜV SÜD AG.

5 – A Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/1976), no seu artigo 116, estabelece um parâmetro conceitual e normativo importante, que, juntamente com a legislação ambiental, reforça a tese da responsabilidade solidária entre as empresas (TÜV SÜD AG e TSB) no tocante à reparação integral dos danos experimentados pelas vítimas do rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, sobretudo em relação à responsabilidade do acionista controlador (TÜV SÜD AG). Nesse sentido, a empresa alemã tem obrigações legais impostas tanto pela Lei 6.404/1976 quanto pela legislação ambiental, no sentido de gerenciar a empresa controlada e adotar medidas preventivas em relação aos riscos sociais e ambientais inerentes à atividade.

6 – A responsabilidade solidária pelas ações e omissões da empresa controladora é reforçada no caso concreto, notadamente pelo alto risco inerente à atividade minerária em questão, conforme dispõe expressamente a Lei 12.334/2010 (artigo 7º), inclusive estabelecendo obrigações jurídicas de prevenção de desastres e danos a terceiros impostas a ambas as empresas, com base no Artigo 116 da Lei 6.404/1976, já referida, e na legislação ambiental incidente (aqui em especial a Lei 6.938/1981, que, como adiantado, consagra um conceito maximalista de poluidor) e, dentre outros princípios de matriz constitucional, internacional e legal, dos princípios (e correspondentes deveres) da prevenção e da precaução.

7 – Na jurisprudência do STJ, destaca-se, dentre outros pontos, o reconhecimento da possibilidade de responsabilização civil do acionista controlador em situações de danos ambientais provocados pela empresa por ele controlada (Recurso Especial n.  839.916/RJ). Nessa senda, o STJ tem reiteradamente reconhecido e reforçado o conceito legal amplo de poluidor ambiental, sendo elucidativa a passagem ora transcrita de voto do Ministro Antonio Herman Benjamin do STJ: “para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano urbanístico-ambiental e de eventual solidariedade passiva, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem”. [6] A decisão do STJ elenca, de forma apenas ilustrativa, algumas condutas comissivas e omissivas que ensejam o enquadramento do agente (público ou privado) na condição de poluidor (direto e indireto), concorrendo para a ocorrência do dano ecológico e caracterizando a solidariedade de todos que se encontrarem amarrados pelo nexo causal (direto e indireto; fático e jurídico).

8 –   Os comportamentos apontados, em particular, “quem financia para que façam” e “quem se beneficia quando outros fazem”, possuem um alcance bastante amplo para abarcar, como no caso do rompimento da Barragem da Mina Córrego Feijão, a responsabilidade solidária da sociedade controladora e acionista controladora (TÜV SÜD AG) por ações e omissões da empresa por ela controlada (TSB). Tanto o financiamento por parte TÜV SÜD AG de atividades e empreendimento executados pela TSB, quanto os benefícios econômicos derivados de tais atividades, ensejam o reconhecimento (pelo menos) do status jurídico de poluidor indireto da TÜV SÜD AG, ainda que, seja possível o seu enquadramento também como poluidor direto, pelo fato de não ter adotado adotar medidas decorrentes de imposição legal, inclusive no sentido de prevenir a ocorrência de desastres ambientais, aliás, algo que deveria ser absolutamente elementar no que diz respeito à atividade de auditoria e certificação da segurança de barragens de mineração.

9 – Em caráter complementar, é possível invocar a Resolução nº 4.327, de 25 de abril de 2014, do Banco Central do Brasil, que dispõe sobre as diretrizes que devem ser observadas no estabelecimento e na implementação da Política de Responsabilidade Socioambiental (PRSA) pelas instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar. A normativa reforça o status jurídico de poluidor indireto das instituições financeiras na hipótese de danos ambientais e sociais ocasionados por empreendimentos e atividades por elas financiados. O conceito de governança socioambiental estabelecido pelo Artigo 3º da Resolução 4.327/2014 implica deveres jurídicos que devem ser cumpridos à risca pelas instituições financeiras, a fim de evitarem a ocorrência de danos ambientais e sociais, além de ensejar a sua responsabilização solidária [7].

À vista do exposto – enfatizando-se, para afastar dúvidas, que as informações e argumentos colacionados o foram em caráter seletivo, ilustrativo e resumido — é possível encerrar invocando a exortação da jornalista Daniela Arbex: “Brumadinho nunca mais!”, acrescentando Cubatão, Mariana e Maceió nunca mais! O Direito Ambiental brasileiro, mais do que nunca, precisa honrar a sua própria história e pujança. Afinal, é isso que está em disputa hoje, nos parlamentos, na doutrina e nos tribunais (no Brasil e além-mar!).

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[1] FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. Revista da Consultoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, 8 (22), 1978, p. 57 (pp. 49-63).

[2] ARBEX, Daniela. Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022, p. 302 e 312.

[3] A respeito da dimensão da tragédia humana e ambiental provocada pelo rompimento da barragem de Brumadinho, destaca-se o livro Arrastados da jornalista Daniela Arbex: ARBEX, Daniela. Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

[4] O caso de Cubatão, vale registrar, é extremamente importante para compreendermos as razões históricas que tornaram o Brasil referência no campo do Direito Ambiental – e, particularmente, na temática da responsabilidade civil ambiental. A cidade de Cubatão, nas décadas de 1970 e 1980 (embora tal cenário tenha mudado atualmente), representou o verdadeiro símbolo negativo poluição industrial no plano mundial. Em certa ocasião, Cubatão chegou a ser considerada pela ONU a cidade mais poluída do mundo, recebendo a sua região, tamanho o índice de poluição provocada pela atividade industrial na região à época, o nome de “Vale da Morte”, com inúmeros casos, por exemplo, de crianças que nasciam com anomalias congênitas (anencefalia etc.) associadas à contaminação química. A tragédia ambiental de Cubatão é relatada em perspectiva histórica e com detalhes pelo historiador norte-americano Warren Dean, notadamente por também envolver a destruição do bioma da Mata Atlântica. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, especialmente p. 338-350.

[5] “Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. (…) § 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.”

[6] Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 1.071.741/SP, 2ª Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 24.03.2009.

[7]  Art. 3º As instituições mencionadas no art. 1º devem manter estrutura de governança compatível com o seu porte, a natureza do seu negócio, a complexidade de serviços e produtos oferecidos, bem como com as atividades, processos e sistemas adotados, para assegurar o cumprimento das diretrizes e dos objetivos da PRSA. § 1º A estrutura de governança mencionada no caput deve prover condições para o exercício das seguintes atividades: I – implementar as ações no âmbito da PRSA; II – monitorar o cumprimento das ações estabelecidas na PRSA; III – avaliar a efetividade das ações implementadas; IV – verificar a adequação do gerenciamento do risco socioambiental estabelecido na PRSA; e V – identificar eventuais deficiências na implementação das ações.

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