Opinião

O tempo do MEC e o tempo do Direito: desobediência civil do Estado?

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8 de janeiro de 2024, 15h21

Já se passaram 90 dias úteis e 130 dias corridos da decisão do ministro Gilmar Mendes a respeito da abertura de cursos de medicina na ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade) nº 81. A decisão cautelar, proferida no início de agosto de 2023, considerou que esses cursos somente poderiam ser abertos a partir do chamamento público do Programa Mais Médicos, mas decidiu que os cursos, iniciados por intermédio de decisão judicial, que estejam com portaria ou os procedimentos de abertura que já possuíam fase documental instruída deveriam continuar.

Porém, mesmo passados tantos dias, nem os processos que estavam na última fase do procedimento — fase de “parecer final” — foram decididos. Isto porque, sob o manto de uma dúvida em relação à decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Educação, em especial a Seres (Secretaria de Supervisão e Regulação do Ensino Superior), aparentemente vem sobrepondo suas convicções ao seu dever, e até mesmo às ordens do Poder Judiciário.

123RF

O que se vê, durante todo esse tempo, além de violação ao comando constitucional do princípio da eficiência contido no artigo 37 da Constituição, é uma clara espécie de desobediência civil da Seres, que resiste com base em suas convicções não só a ordem do STF, como também, a seus deveres constitucionais de prazo razoável, eficiência, moralidade e até de impessoalidade. Dessa forma, há um paradoxo, se a desobediência civil é opor-se pacificamente ao poder estatal e neste caso a Seres/MEC é o estado, pode haver desobediência civil de um órgão do Estado contra o próprio Estado?

O MEC e o tempo
A resistência em processos regulatórios de ensino não é um problema incomum. O Ministério da Educação talvez seja o único órgão que revogou suas normas de prazo razoável e fez isso justamente para evitar que cursos fossem tacitamente autorizados.

A autorização tácita é uma previsão expressa da Lei 13.874/2019, que foi devidamente regulamentada por Decreto da Administração Pública Federal e por Portarias no MEC. A regra básica é: o órgão estipula um prazo razoável para decidir os processos sob sua responsabilidade e após o transcurso desse prazo, caso não haja decisão, o ato é considerado tacitamente aprovado. Esta regra é justa, mas na área de educação não há mais prazos máximos previstos.

Na verdade, o problema do órgão com prazos é crônico, diversas Portarias sobre calendários foram refeitas, algumas diversas vezes.

Além disso, houve casos de resistência apoiada em norma. Novos editais de cursos de medicina foram proibidos por cinco anos (Portaria 328/2018) bem como processos de cursos EAD foram travados a exemplo da Portaria 20141/2023. Em ambos os casos o discurso foi o de que seria feito um estudo por meio de um Grupo de Trabalho nomeado pela União, mas o prazo previsto e até os resultados nunca foram condizentes com o longo período previsto para as supostas análises de contexto. Na realidade, os Grupos de Trabalho parecem mais uma estratégia de procrastinação, um triste uso discursivo da técnica para esconder a intenção de não decidir.

Por isso, ou seja, pelo histórico do órgão, muitas decisões judiciais são expedidas para tentar fazer o órgão agir em prazo razoável, pois este é um direito constitucionalmente garantido.

Prazos das autorizações de cursos de medicina
Nos últimos anos, mesmo se tratando de Governos diferentes, observa-se, na prática, um aumento desses movimentos paralelos, de resistência e de judicialização. Parte disso se deve aos cursos de medicina.

Apesar do que se ouve nos boatos, desde 2018, quando os editais do Mais Médicos foram suspensos, pouco mais de 20 cursos foram abertos a partir de decisões judiciais, um número pequeno, considerando que existem mais de 200 ações sobre o tema.

Novamente, o que explica a retenção dos processos é uma resistência, ilegal e aparentemente ideológica. Não no sentido de direito ou esquerda, conservador ou liberal, mas no sentido de que os cursos de medicina deveriam ser contidos a qualquer custo. Uma boa estratégia para satisfazer entidades corporativas, mas, considerando que o MEC avalia a qualidade de todos os cursos, uma péssima estratégia de saúde pública.

Dessa forma, a desobediência do MEC em relação às ordens judiciais — esse disparate inaceitável em uma Estado de Direito — é um dos traços distintivos da discussão sobre a abertura de cursos de medicina.

Descumprimento da decisão do STF
Como dito, 130 dias se passaram da decisão do STF e nenhuma portaria de curso novo foi emitida ou sequer indeferida. Entretanto, a injustiça em face da decisão cautelar não se resume a isso.

Processos que estavam protocolados em fevereiro, março e abril de 2023 ficaram travados, desde então, na fase documental. Alguns deles aguardando apenas uma assinatura. E quando a decisão do STF veio e limitou o seguimento dos processos àqueles que transpuseram essa fase, vários deles foram definitivamente sobrestados. Imagine-se aqui o absurdo, um processo analisado que aguardava uma assinatura para superar a fase de documentos em março, acabou sendo sobrestado em agosto porque este ato não tinha sido praticado – 5 meses depois e sem qualquer justificativa do MEC.

Neste caso, entendemos que deveria ser usada a ratio decidendi da súmula do 106 STJ, que prevê:

“Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição.”

Substituindo-se os termos “citação” por ato administrativo, “prescrição” por sobrestamento e “mecanismo da justiça” por burocracia do MEC, o precedente poderia ser perfeitamente adaptado como: proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora no ato administrativo, por motivos inerentes à burocracia do MEC, não justifica o acolhimento da arguição de sobrestamento.

Mas esta não é a maior ou mais gritante ilegalidade que vem sendo praticada. A desobediência mais grave fere a decisão do STF que impôs em agosto de 2023 o “seguimento” de todos os processos que já passaram da fase instrutória de análise de documentos. Hoje, meses depois da decisão, a Seres/MEC não decidiu nem mesmo os processos em fase de parecer final. Não praticou, em cinco meses, um ato que poderia ser feito em 30 dias ou menos.

Repita-se, a secretaria do MEC não decidiu, ou seja, nem mesmo exerceu a liberdade que tem de deferir ou indeferir, ou processos de autorização. Simplesmente, resistiu e resiste até agora.

Não vale aqui dizer que a decisão do STF é cautelar, porque cautelar é ordem judicial e tem de ser cumprida. Nem pode ser dito que o Judiciário ficou inerte, em pelo menos 5 processos Juízes já deram prazos curtos, de dias, que não foram cumpridos. Em alguns casos, multas elevadas de dezenas de milhares de reais já foram impostas, mas a Setes/MEC resiste e desobedece.

A situação é caótica e já deve estar sendo apurada pelo TCU e pelo Ministério Público Federal como descumprimento de ordem judicial e ato atentatório a dignidade da justiça. Um triste quadro, bem diferente da desobediência civil, no qual o estado resiste usando o poder que tem e oprime o particular, negligenciando sua única defesa contra seus abusos: a força do Poder Judiciário.

Consequências e conclusões
O contexto implica em possíveis crimes, a exemplo de descumprimento de ordem judicial, a qual frise-se, no patente caso constitui-se em crime em crime continuado sendo mantido o estado de flagrante delito, além de multas civis, ambas passíveis de responsabilização subjetiva de servidores públicos. Não importa o motivo, os agentes do estado não podem pretender impor suas convicções em face das ordens judiciais. Na verdade, não deveriam contrapor suas ideias nem mesmo aos direitos particulares, que são, em última análise, sua razão de existir.

A configuração de crime é tema controverso, mas há decisão do STJ no sentido de que:

Comprovada a notificação pessoal do paciente acerca da decisão do Tribunal […], o seu descumprimento caracteriza, em tese, o crime de desobediência, podendo justificar sua prisão em flagrante” (STJ – HC: 84664 SP 2007/0133662-2, Data de Julgamento: 8/9/2009, T5 – 5ª Turma).

Em sentido similar, mas com restrição o TRF-1 também decidiu que: “O não cumprimento da ordem judicial, por servidor público, configura, em tese, crime de prevaricação (CP, artigo 319), embora não caiba ao juiz cível determinar a prisão” (TRF-1 – AG: 19778 MG 2006.01.00.019778-8, ata de Julgamento: 06/08/2007, 2ª Turma).

Portanto, é possível a configuração de delito, embora essa não seja a melhor opção em termos de complexidade e efetividade.

As sanções de indenização e multa, decorrentes do artigo 37, da Constituição de 1988 e de descumprimento de ordens judiciais ainda recaem sobre o erário, contudo também poderão ser transferidas aos responsáveis, quando efetivamente identificados e após direito de defesa. Multas poderiam, ainda, ser consideradas uma forma de prejuízo ao erário que configuraria crime de improbidade por parte do servidor.

Enfim, há um problema claro e haverá consequências.

Mas desde já não há como deixar de lado um certo grau de indignação. O uso do poder sem preocupação com a justiça não deveria prevalecer. Nesse sentido, como explica Byung-Chul Han*, pensador importante da contemporaneidade, “pratica-se a justiça na medida em que se suspende suas convicções…” enquanto o poder “…Ao contrário, consiste de juízos e convicções”. Talvez, neste caso, a Seres/MEC precise repensar o uso abusivo de seu poder e ser mais justa, deixando de lado convicções que a Lei e o Poder Judiciário já afastaram.

 

*HAN, Byung-Chul. O que é o poder. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 195-6.

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