O 8 de Janeiro

O caminho para o golpe fracassado do 8 de Janeiro

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8 de janeiro de 2024, 14h03

É preciso dizer desde logo que a tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro começou a ser produzida muito antes. A preparação foi feita com a intensa propaganda pelas redes sociais no sentido de desacreditar as urnas eletrônicas, inclusive com a inusitada presença de militares em grupo de fiscalização das urnas eletrônicas no Tribunal Superior Eleitoral, na intenção de encontrar um defeito que pudesse justificar a impugnação da eleição e a não aceitação de resultado desfavorável.

Está claro que se queria gerar uma situação de incerteza artificial, de modo a fabricar um pretexto para o golpe, baseado em possibilidade de fraude na votação e apuração dos votos, chegando-se ao ápice do Presidente da República convocar embaixadores de outros países  para tentar desacreditar o sistema eletrônico de votação que o elegeu em ocasiões anteriores.

Divulgação

Antes mesmo, o próprio presidente fez ameaças  contra o Poder Judiciário em manifestações públicas, sempre com a metáfora de “atuar dentro das quatro linhas da Constituição”, mas indicando que poderia não cumprir ordens judiciais que o desagradassem.

Durante o processo eleitoral, a noticiada interferência do governo por integrantes da Polícia Rodoviária Federal, tentando dificultar a votação de eleitores em áreas favoráveis ao adversário, o uso da máquina pública de maneira notória, encontrou resposta firme na independência do Tribunal Superior Eleitoral, que foi decisivo em garantir a lisura da eleição.

A resistência do presidente derrotado nas urnas em admitir o insucesso eleitoral, em muito contribuiu para a parte final de um roteiro que desaguou no fracassado golpe de Estado.

Tudo indica que o golpe não foi tentado antes, somente porque a sociedade e as instituições republicanas resistiram, lembrando que no dia 11 de agosto de 2022, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco foi apresentada Carta às brasileiras e brasileiros, em defesa do Estado de democrático de Direito, que contou com mais de 1 milhão de assinaturas. Naquela ocasião também se manifestaram em defesa da legalidade setores do empresariado e dos sindicatos de trabalhadores. É também justo dizer que a maioria dos comandantes militares continuou fiel à Constituição, não admitindo lançar o país numa aventura desastrosa, com graves consequências, inclusive o isolamento internacional.

Também é necessário lembrar que durante o período anterior à eleição, quando já vinham ocorrendo manifestações, já se pedia a intervenção militar, ou seja, que fosse praticado golpe de Estado, como igualmente se via em acampamentos nas proximidades de diversas unidades militares.

Propalados juristas simpatizantes se apressavam a escrever artigos nos quais se defendia interpretação que o artigo 142 da Constituição permitiria a intervenção das Forças Armadas, no processo político.

Lamentavelmente sempre há juristas que prestam serviços ao autoritarismo e a história do país traz vários exemplos cujos nomes devem ser relegados ao esquecimento.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Naquele período, houve absoluta omissão em reprimir as condutas delituosas praticadas pois já seria possível fazer a apuração dos crimes previstos nos artigos 286 (incitação ao crime), artigo 287 (apologia de crime ou criminoso) ou mesmo do delito do artigo 288 (associação criminosa), todos do Código Penal, tendo em vista os delitos contra as instituições democráticas, que foram tipificados pela Lei nº 14197/21.

No entanto, tais condutas já eram previstas como crimes antes na Lei nº 7170/83, a antiga Lei de Segurança Nacional, que em boa hora foi revogada, mas que estava em vigor antes da nova lei de 2021.

Em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo, em 9 de junho de 2020, já alertava que quando havia manifestações públicas pregando golpe de Estado, as instituições republicanas não podiam se omitir, lembrando que era crime pregar processos violentos ou ilegais para a alteração da ordem política, entre outros.

O fato é nada se fez de concreto para a apuração daquelas condutas na época, o que permitiu que o movimento golpista, estimulado de dentro e fora do governo federal, pudesse crescer.

Derrotado o projeto ditatorial que se quis impor no dia 8 de janeiro, é necessário que a omissão não volte a ocorrer.

Em relação ao golpismo, a única forma de se garantir o Estado Democrático de Direito é assegurar que não haja impunidade dos criminosos.

Não basta apurar e punir os que tomaram de assalto as sedes do três Poderes do Estado, o que já está sendo feito.

É essencial apurar, processar e o condenar os que financiaram o golpe, que articularam, os que determinaram a sua realização e os que dolosamente se omitiram em impedir a invasão e destruição dos prédios públicos, sejam eles civis ou militares, em cargos importantes ou não, com ou sem poder econômico.

Não é possível fingir que não se viu a ausência de efetivo suficiente da Polícia Militar do Distrito Federal ou do Batalhão de Guarda Presidencial, para impedir a ação criminosa. Ou ainda quem quis impedir a prisão dos criminosos sob os mais variados pretextos.

Quem deixou de cumprir sua obrigação legal e se omitiu para favorecer o golpe, deve ser responsabilizado criminalmente e, eventualmente,  com base na Lei de Improbidade.

A apreensão de “minuta” do ato golpista na casa de ex-Ministro da Justiça e já então secretário de segurança, chefe da polícia que se omitiu de maneira escancarada em agir com o contingente devido, antes de sofrer intervenção federal, é prova material importante a ser examinada com muita atenção  pelo Ministério Público, de quem se espera integral rigor contra quem tenha concorrido para o golpe frustrado.

Somente sem impunidade poderemos garantir a continuidade do Estado democrático de Direito para as próximas gerações e que aventuras golpistas não se repitam.

Autores

  • é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi procurador-geral de Justiça, presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, secretário de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania e um dos organizadores da Carta às Brasileiras e Brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito, apresentada em 11 de agosto de 2022.

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