Opinião

Limites ao ativismo judicial

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal) mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

5 de janeiro de 2024, 20h57

De maneira ampla, o ativismo designa a conduta realizada sobretudo nos âmbitos revolucionários de ordem econômica, política, social, estudantil, sindical, etc. Tal atividade envolve uma militância permanente em certos setores da sociedade. Os seus agentes ou protagonistas são chamados de ativistas, isto é, os sujeitos que envidam esforços na realização dos objetivos almejados. O fenômeno do ativismo sobressai na América Latina, principalmente na busca por mudanças na sociedade e reivindicação por direitos. [1] Conceitualmente, segundo Houaiss, o ativismo pode ser compreendido como qualquer doutrina ou argumentação que privilegie a prática efetiva de transformação da realidade existente em detrimento da atividade exclusivamente especulativa. Ou seja, é a ação que objetiva promover mudanças significativas, subordinando sua concepção de verdade e de valor ao sucesso esperado ou na crença da possibilidade de êxito. [2] Para Maria Helena Diniz, o ativismo é a teoria científico-jurídica que se dirige à atividade que busca alcançar uma meta, admitindo diversos meios de atingir o fim projetado, inclusive através do uso da força. [3]

Assim, o ativismo é fenômeno que ocorre em diversas áreas, atingindo também a esfera judicial. O ativismo judicial possui várias definições. De acordo com o vocabulário jurídico Tesauro, do Supremo Tribunal Federal, o ativismo judicial significa a “atitude do magistrado na maneira de interpretação das normas constitucionais, expandindo seu sentido e alcance, e normalmente associado à inércia dos poderes públicos”. [4] Para Kramer Lustoza, a expressão pode ser definida como a conduta do juiz que excede os limites previstos no sistema jurídico, denotando uma atuação negativa relativamente ao seu mister. Vale dizer, seria quando o membro do Poder Judiciário atuasse em substituição ao Poder Legislativo ou ao Poder Executivo na resolução de certos problemas, o que transformaria os juízes em protagonistas políticos. Ao agir assim, os juízes assumiriam um papel ativista, o que, segundo Ronald Dworkin, seria um exercício irregular da função judicante, visto que “o ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado o seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige”. [5]

O ativismo judicial originou-se após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial (que durou de 1939 a 1945), ante a insuficiência protetiva dos direitos humanos pelo positivismo. [6] Isso porque antes de 1945 vigorava na Europa o princípio da supremacia do Poder Legislativo — que podia alterar a realidade fática através da criação de novas leis —, ao passo que no final da década de 40 consagrou-se a supremacia da Constituição (inspirada pela doutrina norte-americana), cabendo a proteção dos direitos fundamentais ao Poder Judiciário por se tratar do órgão responsável pela guarda da Lei Maior. [7] Ou seja, tendo em vista que as leis são fruto das maiores políticas ocasionais, reconheceu-se a necessidade de se respeitar a supremacia da Constituição (sobretudo os valores contidos na Carta Magna), fazendo surgir o neoconstitucionalismo [8]. Assim, considerando que as Constituições asseguram direitos fundamentais aos seus cidadãos, o Poder Judiciário é provocado — a título de ultima ratio — como o órgão responsável pela realização desses direitos, aparecendo aí o ativismo judicial.

O ativismo judicial opera através da linguagem, isto é, materializa-se por intermédio da fundamentação de decisão jurisdicional, ocorrendo principalmente em face de omissões das autoridades públicas ou em demandas relativas a direitos prestacionais — que exigem atuação dos Poderes Legislativo e Executivo e que pode resultar em gasto no orçamento público. Nesse cenário, o magistrado, para atingir a mudança na realidade fática existente, utiliza-se de princípios e métodos de interpretação (variedade hermenêutica), a fim de justificar e legitimar a decisão adotada. O problema é que os princípios constitucionais são abertos e bastante elásticos, não havendo limites para a sua aplicação. Exemplo, a Constituição de 1988 garante a inviolabilidade do direito à liberdade, conforme previsto no artigo 5º, caput. Diante de tal cânone, é possível ao juiz autorizar o pedido de paciente para se submeter à eutanásia? Tal procedimento estaria albergado no direito à liberdade individual? O juiz, ao analisar a demanda, poderia deferir esse pleito com base nesse princípio ou em outro, como o da dignidade da pessoa humana? Como se vê, os princípios constitucionais possuem densidade, diversas aplicações e interpretações, a depender da visão de mundo por parte do intérprete, ou seja, do próprio magistrado. Em virtude disso, exige-se parcimônia, razoabilidade e equilíbrio no uso dos princípios constitucionais pelos juízes, a fim de não admitirem todo e qualquer pleito ante a amplitude de valores jurídicos abstratos — como o direito à liberdade, igualdade, segurança, etc.

Com efeito, é salutar a provocação do Poder Judiciário pelo interessado na proteção dos seus direitos, visto que o Estado pode cometer diversas irregularidades e abusos. Todavia, os juízes não podem exceder as suas funções traçadas pela Constituição ao ponto de transmudar-se em atores políticos ao incorrer no famigerado ativismo judicial. Tal fenômeno ocorre quando os magistrados, no intuito de efetivar determinado princípio previsto na Carta Magna, findam por: determinar política pública aos órgãos estatais; adotar medida reservada ao Poder Legislativo; acolher determinado pedido da parte quando este deva ser decidido pelos órgãos políticos competentes — já que o seu conteúdo repousa na órbita dos poderes Legislativo ou Executivo; e criar lei, de caráter geral e abstrato, por intermédio de robusto esforço argumentativo na interpretação da Constituição, com o objetivo de proteger determinado bem jurídico reclamado pela parte litigante.

A título de ilustração, são matérias que, a despeito da sua notável relevância, refogem — e muito — à competência do Supremo Tribunal Federal: a descriminalização do aborto, a criminalização da homofobia, a descriminalização do porte de drogas, etc. Conforme noticiado no site do STF, no ano de 2024, “um dos assuntos a ser retomado é a ação que discute a definição do que seja a quantidade para consumo próprio de drogas”. Além disso, “quanto à ação que discute a descriminalização do aborto, o presidente do STF disse que não há tema tabu para a pauta”. [9]

Como se vê, por vezes, o Pretório Excelso finda por imiscuir-se em temas que não são de sua competência, chegado ao ponto de substituir, ad hoc, as atribuições do Executivo e Legislativo, já que incumbe a esses Poderes a definição das pautas políticas da nação brasileira. Em outras palavras, o ativismo judicial implica a substituição do legislador pelo juiz, que usurpa de funções que não são suas, mas de outrem. Havendo progressão na interferência de funções, o ativismo judicial pode transmuda-se em ativismo político, gerando a nefasta monopolização do poder político em uma só esfera, isto é, pelo órgão judicante — ou até mesmo a criação do “governo dos juízes” [10].

Desse modo, o ativismo judicial opera em razão de o Poder Judiciário exceder-se na sua competência julgadora, passando a criar soluções em matérias de competência dos poderes políticos. Em casos assim, o juiz deixa de julgar com base em preceito expresso ou implícito na lei/Constituição para avançar em temas cuja resolução incumbe ao Executivo e ao Legislativo — que são os órgãos definidores das escolhas políticas da nação.

Como forma de evitar o ativismo judicial exacerbado, elenca-se a seguir matérias que não devem ser decididas pelos juízes: matéria estritamente política ou moral (atividades relativas ao plano governamental, criação de política pública, metas ou aspirações sociais, ou medidas baseadas em ideologias, valoração de ideais ou propósitos, bem como o estabelecimento de preceitos morais ou costumes, pois estes provêm da sociedade); matéria de múltiplas opções (assuntos que admitem decisões plúrimas devem ser atribuídas à sociedade, que por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos escolherão a medida que entendam pertinente, visto que, nesses casos, não há uma única solução possível, ao contrário, há diversas possibilidades de escolha pela autoridade); matéria não disposta expressa ou implicitamente na Constituição (ante a inexistência no texto constitucional, há liberdade decisória por parte dos poderes políticos, que poderão criar ou não determinada prerrogativa, a exemplo das cotas raciais em concursos públicos, não podendo os juízes criarem esse direito ao arrepio de prévia disposição legal); matérias controvertidas socialmente (temas com elevado dissenso social não podem ser decididas na órbita exclusiva do Poder Judiciário, pois devem ser produto de ampla deliberação democrática nos órgãos políticos competentes — Executivo e Legislativo —, a exemplo de pautas como o aborto, a eutanásia, a descriminalização das drogas, etc.); assunto sujeito à liberdade de conformação do legislador (os juízes não podem imiscuir-se em matérias dispostas regularmente pelo Poder Legiferante,  especialmente sobre o conteúdo e a extensão, pois são fruto do exercício legítimo conferido pela Lei Maior, a exemplo da criação de política pública que tenha por meta atingir certa finalidade social. Vale dizer, o Judiciário deve guiar-se pelo princípio da deferência legislativa, respeitando os atos normativos válidos, compatíveis com a Constituição); e matéria de ordem técnica (os juízes não devem interferir em assuntos regidos por métodos e conhecimentos científicos ou regras operacionais que regem determinado setor especializado, bastando que sejam válidos perante o ordenamento jurídico. O Poder Judiciário deve respeitar a tecnicidade temática, sob pena de prejudicar e até mesmo ruir o respectivo setor. Exemplo: eventual determinação judicial que, sob a justifica de concretizar o direito social ao transporte (conforme previsto no artigo 6º da Carta Magna) conceda aos cidadãos, ao arrepio da lei, a gratuidade do transporte público municipal, quando inexista política pública nesse sentido.

Assim, a “matéria estritamente política ou moral”, “matéria de múltiplas opções”, “matéria não disposta expressa ou implicitamente na Constituição”, “matérias controvertidas socialmente”, “assunto sujeito à liberdade de conformação do legislador” e “matéria de ordem técnica” constituem limites ao ativismo judicial, não podendo atuar o Poder Judiciário nessa seara, sob pena de ingerir indevidamente na competência dos Poderes Executivo e Legislativo. Nesses casos, a decisão incumbe aos atores políticos, aos partidos, aos grupos de pressão e sobretudo à sociedade — através dos seus representantes eleitos democraticamente —, mediante ampla discussão e debate nas diversas esferas e órgãos competentes, a fim de ser respeitada a soberania popular.


[1] ÁVILA, Raúl A. Coordenação Geral: Benedicto Silva. Dicionário de Ciências Sociais. 2ª ed. Rio de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987, p.  96-97.

[2] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Franscisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.  215.

[3] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 310.

[4] STF. Supremo Tribunal Federal. Vocabulário Jurídico (Tesauro). Ativismo judicial. Acesso em 19-09-2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp

[5] LUSTOZA, Helton Kramer. Ativismo judicial: Judiciário não pode se desviar de sua verdadeira finalidade. Opinião. Publicado em 17-07-2020. Acesso em 19-09-2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-17/helton-kramer-existe-limite-ativismo-judicial?imprimir=1

[6] FREITAS, Vladimir Passos de. Ativismo judicial: afinal, do que se trata? Revista CONJUR – Consultor Jurídico. Publicado em 12-12-2021. Acesso em 29-12-2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-12/segunda-leitura-ativismo-judicial-afinal-trata/

[7] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 263.

[8] Segundo Barroso, a expressão “neoconstitucionalismo” traduz-se no novo constitucionalismo democrático, fruto do pós-guerra, desenvolvido a partir de uma cultura filosófica pós-positivista, caracterizado pela força normativa da Constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova hermenêutica. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 266).

[9] STF. Supremo Tribunal Federal. STF deve retomar em 2024 julgamentos iniciados neste ano. Publicado em 20-12-2023. Acesso em 29-12-2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=523028&ori=1

[10] Segundo Daniel Sarmento, no constitucionalismo francês foi rechaçada por muito tempo a ideia do controle de constitucionalidade, ante o temor de que sua adoção pudesse permitir a criação de um “governo dos juízes”. Sendo assim, os franceses preferiam confiar no Parlamento do que no Poder Judiciário para velar pela guarda das suas Constituições. A desconfiança nos juízes tinha origem no período anterior à Revolução Francesa, quando o Judiciário era visto como intrinsecamente corrupto (na antiga legislação francesa existia o direito de propriedade do emprego, de modo que o titular de um ofício da justiça podia transmiti-lo a outrem por hereditariedade ou venda, introduzindo-se na França a inamovibilidade dos magistrados para prevenir a venalidade das funções da justiça. SOUZA, Marnoco e. Direito Político. Coimbra: França Amado, 1910, p. 777), atuando quase sempre em benefício dos seus próprios interesses ou daqueles dos membros que o compunham (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 36).

Autores

  • é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

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