Opinião

Degeneração constitucional e democracia defensiva

Autor

  • Luis Ricardo Saavedra

    é advogado mestrando em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) pós-graduado em Direito Constitucional pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional) pesquisador do GConst/UFSC (Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina) e membro das Comissões de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da OAB-SC.

27 de novembro de 2023, 6h02

O Brasil é uma democracia constitucional, o que faz com que por aqui não tenhamos poderes ilimitados. Todos estão submetidos à Constituição, ela é soberana. Mas o próprio texto constitucional também conferiu ao STF (Supremo Tribunal Federal) o poder dizer sobre a constitucionalidade das leis produzidas pelo Congresso. Por isso, por vezes, pode parecer que exista uma sobreposição entre os poderes da República, causando a impressão de que há exorbitação das competências pelo Judiciário, gerando, para muitos, uma suposta ideia de juristocracia [1], em que juízes não eleitos governam através de suas decisões sobre a constitucionalidade ou não das leis produzidas pelo Parlamento — que por ser eleito, em tese, possuiria mais legitimidade.

Mas quem assim pensa, se olvida que tripartir o poder para ter um Judiciário técnico, contramajoritário e não eleito, para o ato de julgar os jurisdicionados — além de ser uma prerrogativa concedida pelo constituinte originário ao STF —, foi um avanço civilizatório e uma garantia do nosso estado democrático de direito. Dentre as funções do constitucionalismo, além de racionalizar o poder e ser antagonista ao poder desenfreado, está sopesar e fazer o equilíbrio constante entre majoritarismo e contramajoritarismo. Respectivamente entre a legitimidade popular majoritária com os representantes eleitos e as instituições podendo atuar pautadas unicamente pelo direito, sem paixões e não adstritas ao sufrágio popular direto.

Por isso, o Poder Judiciário é uma instância vinculada somente à Constituição, mesmo que cumpri-la desagrade grande parte ou até mesmo o todo. As instituições da República servem justamente para frear e por limites, não só às autoridades investidas, mas também à maioria da população. Para que o Brasil seja uma democracia constitucional plena e protetiva de direitos e garantias fundamentais, é indispensável que o Supremo não ouça o povo e que o povo jamais seja supremo. Daí a importância de se ter as instâncias majoritária e contramajoritária segregadas, agindo de forma independente para fazer o balanço democrático, cada vez mais conflituoso e heterogêneo.

Outro ponto a se considerar e que afasta a narrativa de submissão do Legislativo ao Judiciário é que o Parlamento pode pautar e julgar o impeachment dos ministros da Corte. O que por si só já é um contrapeso fortíssimo dado a si — não havendo como se falar, portanto, em suposta ditadura da toga como se tenta fazer calhar por muitos. Basta ver também que é a própria política quem judicializa os grandes temas do debate nacional. Sem mencionar ainda o extenso rol de legitimados para demandar o Supremo, todas as autoridades com foro por prerrogativa de função, os inúmeros assuntos constitucionais que são de sua competência e a demanda residual por ser um tribunal de alçada.

O tribunal, portanto, somente se pronuncia quando é provocado. Foi a Constituição quem legitimou inúmeras autoridades e entidades para a propositura de ações constitucionais com acesso direto ao Supremo. Por isso, há uma judicialização excessiva [2]. O STF é provocado a se manifestar sobre os temas, não o faz como revés para combater a vontade da maioria encampada pelo Parlamento. O que de fato poderia se discutir é a mudança de escopo da Corte para não ser mais uma instância recursal, mas eminentemente um tribunal constitucional [3], fazendo apenas o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.

Mas isso significa dizer que o tribunal possui legitimidade política para concorrer com o Congresso? É evidente que não. A legitimidade democrática é dos representantes políticos eleitos, e isso nem sequer se discute. Por outro lado, a legitimação das decisões do Judiciário advém da Constituição e da sua aplicação. O papel do Supremo é contrapor e frear o poder absoluto dos representantes políticos eleitos — remontando a importância dos conceitos de majoritarismo e contramajoritarismo em uma democracia constitucional. Por vezes, os poderes são tratados de maneira idêntica, quando na verdade cada instituição possui um papel distinto dentro da democracia. O Executivo e Legislativo são poderes majoritários por essência, vence quem tem maioria eleitoral. Na medida em que o Judiciário possui uma função vital contramajoritária, sendo o freio dos demais.

Quando se fala em democracia defensiva, é preciso ter em mente que o regime democrático corre riscos, e por isso as instituições devem ter mecanismos para se precaver. Lembremos que a democracia é o único modelo que suporta eleger aqueles que, mesmo depois de eleitos, passam a agredi-la. A perspectiva do regime democrático da Constituição de Weimar (1919), por exemplo, ilustra o paradoxo em que a tirania do partido nacional socialista se impôs, onde o tirano surgiu através do processo democrático. Por isso, há a contradição da democracia em possibilitar aos seus opositores os meios para a destruírem. [4]

Surgem, portanto, os questionamentos de quais atitudes se deve ter diante dos intolerantes que não aceitam a própria democracia e se valem dela para serem eleitos e no momento seguinte garroteá-la. Pode a democracia admitir que os mecanismos que a definem conduzam a sua própria destruição? Cabe a ela recusar a liberdade e tolerância, que lhe são elementos básicos para os que não a aceitam? [5]

A questão é que, se a democracia se define pelo pluralismo e a livre disputa entre a adesão dos cidadãos a um dado programa de estruturação da sociedade, impedir que ideias autoritárias, opostas ao ideário democrático, sejam objeto de deliberação popular seria antidemocrático em si mesmo e negaria a própria essência da democracia. Por isso, a participação nos espaços públicos daqueles que apregoam pautas antidemocráticas e se deixam seduzir pelo canto das sereias do autoritarismo deve ser repelida [6]. E houve a adesão por parte de inúmeras constituições democráticas nesse sentido em razão da inquietação quanto à possibilidade de se abolir a democracia e consequentemente substituí-la pelo seu oposto autoritário. [7]

Com a Lei Fundamental de Bonn (1949), surge também a proibição explícita de que partidos com ideários abertamente autoritários fossem admitidos no cenário político. Os postulados de que a democracia deve se prevenir contra os intolerantes, de que a constituição democrática não pode ser um pacto suicida e de que todo o regime tem o direito de se defender, foram incorporados em várias ordens jurídicas mundo afora. A ameaça de instauração de um regime totalitário inspirou medidas normativas de defesa contra a admissão dos partidos intolerantes, inclusive na Constituição de 1988, que submete a criação de partidos à condição de que aquiesçam aos primados da soberania nacional, do regime democrático e do respeito aos direitos fundamentais [8] — traços típicos da democracia defensiva incorporada ao direito constitucional.

Sabe-se que as ameaças aptas a corromper o modelo democrático atuam de forma progressiva, sendo que as investidas não levam mais a derrocadas abruptas, mas produzem uma erosão paulatina do tecido democrático. E essas ameaças podem ser sintetizadas com a expressão do populismo, que se caracteriza por dividir a sociedade de um modo maniqueísta, entre o povo puro e verdadeiro, que é enganado e não compreendido, e as elites dirigentes, intrinsecamente espúrias e corrompidas, somente em vista dos seus próprios interesses e dos amigos do rei.

No Brasil, é possível notar tais incursões para a tentativa de corrosão das instituições, e isso se dá em razão de que críticas institucionais — sadias às instituições de Estado — foram paulatinamente sendo degeneradas e culminando na transformação do Supremo Tribunal Federal em inimigo ficcional da população por não ouvir ou agradar a voz das ruas. Parcela da população, manipulada por certos grupos políticos, repudia o tribunal e o enquadra bradando que o “supremo é o povo” — frase de origem histórica pouco republicana. [9]

A frase de cunho notadamente populista traz consigo o emprego estratégico da palavra “povo”. A retórica sobre definir quem de fato o é ou invocá-lo contra as instituições de Estado ganhou força no cenário político brasileiro, em que se fala em nome do povo visando retaliar o Poder Judiciário — atualmente com a proposta de emenda à constituição para instituir mandato aos ministros do Supremo.

É claro que o STF é suscetível a críticas e reformas. A cizânia somente se coloca quanto a legitimidade de um poder fazê-lo por estrita pressão e reprimenda ao outro poder — porque determinada decisão, técnica frise-se —, não agradou certa parcela da população. E mesmo que essa parcela fosse a maioria, isso é um claro elemento de degeneração constitucional, vez que é notório que a pauta levantada pelo Parlamento é uma represália ao Judiciário, por ele ter cumprido a sua função precípua. E isso se deve mais pelos acertos do que pelos erros do tribunal, que cumpre a sua missão dentro da função contramajoritária que lhe foi conferida no ordenamento constitucional.

Um dos poderes avocar para si a figura abstrata do povo e utilizar-se dessa retórica para ser o procurador tácito dos seus interesses — que jamais serão homogêneos em uma democracia — deve ser classificado como discurso demagogo e antiliberal. Isso, pois, se vale de uma alegação essencialmente moralista e contra as instituições de Estado no sentido de proteger os bons e combater o mal. Se assemelha à retórica utilizada na época da degeneração com o nacional socialismo, na medida em que apregoa a divisão entre o bem e o mal, obstando o diálogo e cessando o compromisso democrático para soluções conjuntas entre os divergentes.

Essa é a narrativa típica do populismo, que se nutre com pautas de apelo emotivo e vocifera contra os direitos inalienáveis das minorias, pois oferecem, na sua concepção, uma resistência inaceitável à vontade e aos interesses da maioria. O lema do populismo é que ninguém tem direito de recusar a vontade do povo e, nessa visão, o supremo é o povo — que é definido de maneira oportunista como um agrupamento uniforme. Para eles, princípios fulcrais de um Estado democrático, como a independência e a separação entre os poderes, são vistos justamente como uma disfunção da democracia e um mecanismo que inibe a realização da vontade do “povo”, pois não permitem que o “Führer-príncipe”, eleito pela maioria, seja absoluto e governe submetendo a minoria às botas da vontade da maioria. [10]

As estremas que os direitos e as garantias fundamentais estabelecem em favor da dignidade da pessoa são retratados como fraquezas injustificáveis do Estado ou como imposições elitistas afrontosas aos sentimentos da maioria. Assim, a democracia e as suas regras se tornam objeto de menoscabo e de rejeição. Os ataques ganham vulto, de modo que nem sempre são perceptíveis. Com essa evolução, o perigo culmina no ponto em que a democracia cede ao autoritarismo e com o consentimento de uma maioria manipulada. Por isso, não é surpresa que as arremetidas populistas costumem se dirigir especialmente em face do sistema eleitoral e às instituições contramajoritárias de Estado. O discurso de ódio e as fake news são instrumentos para populismo, que contribuem para que o cidadão assuma posturas emocionalmente desproporcionais em conflitos superdimensionados e orquestrados por grupos políticos de orientação autoritária.

Lembremos que a desconfiança no Judiciário e no sistema eleitoral, insuflada por esses agrupamentos não republicanos, resultou no lamentável episódio de 8 de janeiro. Se a democracia brasileira não tivesse oferecido resistência que salvaguardasse a ela própria, parcela da população teria concretizado o espírito golpista que pairava sobre a capital federal. Isso porque foi instigada a crer que, a “vontade do povo” legitimada nas urnas, havia sido fraudada e tolhida pelo STF e pelo TSE. [11]

A partir daí, os ataques da retórica radical aos direitos fundamentais são frequentes. Um exemplo disso é a indisposição crescente contra medidas de parcimônia que o devido processo legal impõe, especialmente na seara criminal. Esse é outro viés do discurso populista, que tenta minar o prestígio e a confiança no regime democrático. As instituições de defesa de valores do constitucionalismo estão invariavelmente na mira dos arroubos populistas, pois são as guardiãs dos direitos fundamentais e da própria democracia, sendo obstáculos ao triunfo do autoritarismo.

O populismo ainda tende a desmoralização das instituições, flertando com medidas de supressão e enfraquecimento de competências. São exemplos disso as propostas que visam a contrapor a eficácia das decisões do Supremo, invocado a legitimidade dos demais poderes — por serem os representantes políticos eleitos —, bem como o debate sobredito quanto à implementação de mandato aos ministros do tribunal. Que são medidas claras de degeneração da democracia brasileira. Sempre que a pauta populista é contraditada nos tribunais, se aventa a hipótese de estabelecimento dos mandatos e o incremento numérico na composição, além de investidas diretas e estímulos a atos viciosos contra os integrantes da Corte. Nada mais são do que tentativas claras de alteração das regras do jogo para impedir que decisões que desagradam produzam os seus efeitos.

Portanto, é justificável que haja medidas pontuais a cada um desses ataques a fim de prevenir que os mecanismos de proteção da convivência civilizada e democrática sejam abalados. Dentre essas, algumas estão previstas no próprio texto constitucional, como por exemplo a proibição de deliberação legislativa de proposta de emenda à Constituição, que tenda a abolir o sistema democrático e a separação de poderes. Por isso, importa que as garantias fundamentais sejam observadas e que haja instituições sólidas, atuantes, vigilantes e independentes. Passa pela posição firme desses órgãos o comprometimento com o constitucionalismo e os valores democráticos.

É cediço que as instituições não são imunes ao risco de excessos na proteção desses valores, o que poderia levar a um efeito contrário do que se pretende, quando se limitam as liberdades dos intolerantes para a proteção de um bem maior: a convivência democrática. Contudo essas medidas não são bastante para se rejeitar o grupo de mecanismos extraordinários de defesa da democracia. O preço de tolerar o intolerante sempre será mais custoso, afinal de contas o perigo e o risco são inerentes à existência.


[1] STRECK, Lenio Luiz. O ativismo judicial existe ou é imaginação de alguns? Senso Incomum. 13/06/2013. Conjur. Disponível em: <​​https://www.conjur.com.br/2013-jun-13/senso-incomum-ativismo-existe-ou-imaginacao-alguns>.

[2] HORBACH, Carlos Bastide. É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal. Observatório Constitucional. 22/03/2014. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal>.

[3] HORBACH, Carlos Bastide. É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal. Observatório Constitucional. 22/03/2014. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal>.

[4] RÊGO, Eduardo de Carvalho. Superpoder Judiciário: O papel do controle de constitucionalidade na consolidação da juristocracia no Brasil. Tese (Doutorado) – UFSC, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2018.

[5] FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021.

[6] LOEWENSTEIN, Karl. Militant democracy and fundamental rights, I. The American Political Science Review, [s. l.], v. 31, n. 3, p. 417-432, June 1937. DOI: https://doi.org/10.2307/1948164.

[7] FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021.

[8] Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana […].

[9] ABBOUD, Georges. O Supremo é o povo? 24/10/2023. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/10/o-supremo-e-o-povo.shtml>.

[10] ABBOUD, Georges. Intimidação das Cortes Constitucionais para enfraquecer a democracia. 03/11/2022. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-nov-03/abboude-rodrigues-jr-intimidacao-cortes-constitucionais>.

[11] MENDES, Gilmar Ferreira. ABBOUD, Georges. O dia da infâmia: os ataques golpistas de 8/1 e as fake news contra o Supremo. 22/01/2023. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/gilmar-mendes-georges-abboud-81-dia-infamia>.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), pós-graduado em Direito Constitucional pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), pesquisador do GConst/UFSC (Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina) e membro das Comissões de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da OAB-SC.

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