Opinião

Ministério Público: epítome de 2023

Autor

  • João Linhares

    é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul; mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona-Espanha; especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

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4 de janeiro de 2024, 10h12

O ano que se findou foi o mais quente já registrado. E, no Parquet brasileiro, a temperatura também foi bastante elevada, com grandes desafios institucionais, inovações internas e renovação na Procuradoria Geral da República.

Ao abordar o MP, é bom anotar que, a despeito de seu aspecto nacional, se trata de instituição com diversos segmentos, compreendendo o MP da União (MPF, MPM, MPT, MPDF e Territórios) e dos Estados, cada qual com um papel diferenciado e com perfil próprio (artigo 128 da Carta Política).

De mais a mais, não se pode esquecer de que a elaboração de uma breve retrospectiva reclama a eleição do que se reputa mais relevante e isso perpassa por deixar de mencionar fatos significativos, ou seja, a lista de eventos importantes acaba contendo elevado grau de discricionariedade [1]. Ademais, alerto o leitor de que não seguirei uma ordem cronológica na exposição.

Feitas tais advertências, vamos aos fatos: logo no introito de 2023, no infame  dia 8 de janeiro, uma súcia tentou abolir o Estado democrático de Direito e causou uma ampla destruição de prédios e bens públicos das sedes dos Poderes na capital do país.

A nação assistiu perplexa e profundamente envergonhada àquela caterva perpetrando atos horrendos e inaceitáveis contra a nossa democracia, “princípio continente” [2].

Nesta quadra histórica, sobretudo nos últimos anos, nunca foi tão fulcral e imprescindível a defesa do regime democrático, atribuição que a Constituição incumbiu ao MP no artigo 127, dotando-o como espécie de “sentinela”, de “escudo”.

Todavia, a PGR era criticada por expressivos setores da imprensa e por juristas porquanto não teria adotado, em tese, medidas concretas que obstassem arroubos autocráticos e que colocaram em xeque a estabilidade e a harmonia dos Poderes.

Depois de 8 de janeiro, a sociedade, indignada, clamava por providências e respostas jurídicas compatíveis à gravidade dos crimes engendrados. A reação do MP veio com a criação do Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos e com a deflagração, num primeiro momento, de 1.354 denúncias contra os supostos autores dos referidos atos. Cerca de 30 increpados já foram condenados pelo STF. Dezenas que tiveram participação secundária nos crimes, sem violência ou grave ameaça, firmaram com o MP acordos de não persecução penal. E as investigações perduram.

Deveras, urge identificar il capo di tutti capi e os mentores da ruptura institucional, que urdiram e dissiparam notícias falsas, que estimularam a tentativa de golpe e que a organizaram e a custearam. Enquanto apenas a patuleia for processada e responsabilizada, a justiça não terá sido efetiva e a democracia estará suscetível à instabilidade e aos humores de tiranetes de plantão. A punição penal, neste caso, observado o devido processo legal — e dês que comprovada a culpa, é altamente pedagógica e imperiosa. A Constituição exige que se o faça!

Outro fato que marcou tristemente 2023 foi o falecimento de Sepúlveda Pertence, ministro aposentado do STF, ex-promotor de Justiça (cassado pela ditadura) e ex-PGR. Foi um dos principais arquitetos da configuração constitucional do Parquet e ajudou a delinear os contornos e o futuro da instituição, dotando-a de garantias inerentes à magistratura e conferindo-lhe a mesma pauta deontológica. Tornou o MP uma “magistratura requerente”, um órgão extrapoder. [3]

Ressalta-se ainda a Resolução 96/2023 do CNMP que recomendou a todo o MP a observância de tratados, convenções e protocolos internacionais de direitos humanos, das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A tendência é que o controle de convencionalidade seja mais denso e amiúde, com atenção central a esta temática de salvaguarda de direitos fundamentais.

Nesse eito, inclusive atento ao entendimento da Corte IDH, o MP passou a preocupar-se ainda mais com o resguardo e amparo do direito das vítimas de crimes e o combate ao discurso de ódio. [4]

No âmbito da segurança pública, o CNMP aprovou edição de nova resolução que regulamenta o controle externo da atividade policial (artigo 129, inciso VII, CF), estando a ele sujeitos “os órgãos policiais relacionados no artigo 144 da Constituição Federal, bem como as forças de segurança de qualquer outro órgão ou instituição, a que se atribua parcela de poder de polícia, relacionada com a segurança pública ou a persecução penal”.

Gize-se que o MP teve mais uma vez reconhecido pelo plenário do STF o seu poder investigatório, mormente no bojo da ADI 7.170, relatora ministra Cármen Lúcia.

E a proteção de dados pessoais ocupou a reflexão do MP, sendo objeto de resolução do CNMP [5] que estipulou principalmente diretrizes para tanto.

Num apanhado geral do ano, o pesquisador Rafael Viegas, da FGV, pontuou:

“No decorrer de 2023, merece destaque a implementação de recentes normativas pelo CNMP, especialmente aquelas relacionadas à segurança pública, com ênfase no controle externo da atividade policial. A necessidade de incluir esse tema como prioridade na agenda do Ministério Público brasileiro é evidente. É crucial ressaltar as altas taxas de violência e letalidade policial, bem como a letalidade de policiais, comparativamente elevadas em relação a outras democracias. O CNMP desempenha um papel fundamental ao induzir comportamentos que visam o controle e a melhoria nesse cenário.

Por outro lado, no âmbito negativo, é preocupante observar a instrumentalização da autonomia administrativa e financeira dos MPs da União e dos estados para atender a interesses corporativos. Esse fenômeno se manifesta no avanço do MP sobre o orçamento público, incluindo pagamentos de retroativos e valores que ultrapassam o teto constitucional para membros do MP. Além disso, destaco que, em dezembro de 2023, o CNMP aprovou por unanimidade uma proposta da ANPR que exige a identificação do cidadão para consulta aos vencimentos dos membros, criando um obstáculo à transparência e à accountability democrática, indo na contramão do princípio de abertura e responsabilidade.”

Por sua vez, o conselheiro nacional do MP, Paulo Cezar dos Passos, externou:

“Crítica:
O Ministério Público precisa fortalecer mais o sentido da unidade institucional. Durante muito tempo, em razão da origem da CF/88 vindo após um duro período do regime militar, com limitações exponenciais aos direitos fundamentais, nossa instituição trabalhou a independência funcional como alicerce único, olvidando-se dos demais princípios constitucionais (unidade e indivisibilidade). Com o acréscimo da complexidade da sociedade pós-moderna, o MP precisa agir como agência e em rede, trabalhando com a jurimetria para atuar de modo uniforme nas enormes demandas que são de sua responsabilidade constitucional e legal.

Elogio:
O MP tem trabalhado com eficiência os negócios processuais, valendo-se com êxito dos acordos de não persecução cível e penal. Isso possibilita maior celeridade para resposta das demandas que permitem a utilização desses mecanismos aprovados pelo Congresso Nacional.”

À derradeira, e não menos essencial, foi a escolha do novo PGR, pelo presidente da República, após longo período da saída de Augusto Aras. Pela primeira vez nas gestões presidenciais do PT, foi rejeitada a lista tríplice (sem previsão constitucional e legal) confeccionada pela ANPR. Foi nomeado para o cargo Paulo Gustavo Gonet Branco, que prometeu foco na sustentabilidade, na defesa do meio ambiente, na cidadania, enfatizando que pugnará contra a corrupção e a criminalidade.

Espera-se que em 2024 o MP brasileiro seja incansável vexilário da Constituição e voz jurídica poderosa da sociedade, agindo com autonomia e equilíbrio, na defesa intransigente dos direitos fundamentais, da ordem jurídica e do regime democrático. Que o Parquet encarne o verbo constitucional e o transfigure em realidade estendida ao povo, arrostando arbitrariedades. Defenda o meio ambiente, agenda primordial de direitos humanos deste século. E que seus dedos não apontem como verdugo, mas que suas mãos acolham os vulneráveis e os sedentos de Justiça. E lembre-se de que muitos que tentaram entregar o fruto envenenado à nossa democracia persistem à espreita, nas sombras. É preciso valer-se do farol da Constituição para lançar luzes em suas faces!

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[1] Com o escopo de buscar uma melhor visão e pluralidade à presente retrospectiva, dialoguei com diversos colegas, dos quais ouvi várias e importantes ponderações. Agradeço a todos, em especial a Paulo Cezar dos Passos, Conselheiro Nacional do MP/CNMP, Vladimir Aras, Procurador Regional da República no DF, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Subprocurador-Geral da República aposentado, Leonir Batisti, procurador de Justiça, coordenador do GAECO/PR, Paulo Brondi, promotor de Justiça/MPGO, e ao Prof. e pesquisador Rafael Viegas/FGV. Esclareço que as conclusões e críticas contidas no texto são de minha responsabilidade.

[2]Nesse sentido, é precisa a preleção de Ayres Britto, ministro aposentado do STF. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/12/6778022-o-8-de-janeiro-foi-orquestrado-premeditado-e-financiado-diz-ayres-britto.html. Acesso em 2.1.2024.

[3] LAVIÉ, Humberto Quiroga. Estudio analitico de la reforma constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1994, p. 95.

[4] Disponível em https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16710-comite-ministerial-de-defesa-dos-direitos-das-vitimas-e-gt-de-enfrentamento-ao-discurso-de-odio-tracam-estrategias-de-atuacao e em https://www.direitosdavitima.mp.br/. Acesso em 3.1.2024.

[5] Disponível em https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/17212-cnmp-institui-a-politica-nacional-de-protecao-de-dados-pessoais-e-o-sistema-nacional-de-protecao-de-dados-pessoais-no-ministerio-publico. Acesso em 3.1.2024.

Autores

  • é promotor de Justiça do MP-MS. Mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (ESP). Especialista em Direito Constitucional pela PUC-RJ.

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