Opinião

Nova resolução do Ministério Público no acordo de não persecução penal

Autor

23 de maio de 2024, 18h25

O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) editou a Resolução nº 289, de 16 de abril de 2024, a fim de alterar a Resolução nº 181/2017, que trata do acordo de não persecução penal, adequando-a à Lei 13.964/2019 (pacote anticrime). Dentre as diversas modificações, chamam atenção os artigos 18-D e 18-F, os quais trazem profundo impacto na sistemática do referido acordo penal e, por isso, merecem um exame mais acurado:

“Art. 18-D. A celebração do acordo de não persecução penal não impede que o beneficiário seja chamado para prestar declaração em juízo sobre as imputações deduzidas em desfavor dos corréus, respeitadas as regras próprias da chamada de corréu.

Art. 18-F. Havendo descumprimento de qualquer das condições do acordo, a denúncia a ser oferecida poderá utilizar como suporte probatório a confissão formal e circunstanciada do investigado, prestada voluntariamente na celebração do acordo.”

Parâmetros em análise no STF

Conforme já abordado em outra oportunidade [1], o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF, no qual alguns parâmetros relevantes sobre o acordo de não persecução penal serão definidos. O ponto central da discussão diz respeito à retroatividade do acordo de não persecução penal e a necessidade de confissão prévia para admissão do acordo penal [2]. O placar está com três votos favoráveis à concessão do Habeas Corpus (ministros Gilmar Mendes, Cristiano Zanin e Edson Fachin) e três contrários (ministros Alexandre de Morais, Carmen Lúcia e Dias Toffoli), aguardando a inclusão do feito em pauta, após pedido de vista do ministro André Mendonça.

Mesmo assim, existem duas ponderações que são relevantes a partir da leitura dos votos até agora disponibilizados. A primeira, do ministro Gilmar Mendes, na qual se alegou que “é inadmissível sustentar que a confissão realizada como requisito ao ANPP poderia ser utilizada para fundamentar eventual condenação se houver o descumprimento do acordo”.

E a segunda, do ministro Cristiano Zanin, que aduziu:

“(…) a confissão é ‘circunstancial’, relacionada à manifestação da autonomia privada para fins negociais, em que os cenários, os custos e benefícios são analisados, vedado, no caso de revogação do acordo, o reaproveitamento da ‘confissão circunstancial’ [adhoc] como prova desfavorável durante a Etapa do Procedimento Judicial.”

Antecipação inoportuna

Nesse contexto, observa-se que os dois dispositivos incluídos pela Resolução 289/2024 estão sob julgamento direta ou indiretamente desde 2020, uma vez que a Corte Suprema avocou o tema para definição em todo país, não parecendo oportuna essa antecipação de regulamentação pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

Em relação ao artigo 18-D, não se deve admitir deveres de cooperação ou de incriminação de terceiros em relação ao acordo de não persecução penal, visto que se desvirtua a própria finalidade do instituto. Cabe ressaltar que, antes do advento do acordo penal, os precedentes jurisprudenciais eram no sentido de que o corréu não pode figurar como testemunha/informante com exceção do corréu colaborador , de modo que a utilização do investigado que aceitou o acordo penal como prova na fase judicial se mostra indevido [3].

Isso porque o acordo de não persecução penal, diferentemente da colaboração premiada, não é classificado como meio de obtenção de prova, razão pela qual não se deve admitir o depoimento do investigado em prejuízo dos corréus. A colaboração premiada está calcada no binômio resultados e prêmios (artigos 4º da Lei 12.850/13), existindo comprometimento do investigado com a tese acusatória (HC – STF [4]), inclusive com consequências em caso de descumprimento do ajuste entre acusação e defesa, o que ocorre com o acordo de não persecução penal, que busca evitar o processo judicial, mas sem qualquer perspectiva de contribuição para esclarecimentos dos fatos e posterior recebimento de melhores condições. Logo, os regimes jurídicos são distintos e não podem ser confundidos.

Recorde-se, ainda, que existe restrição ao livre convencimento motivado quando se tratar de colaboração premiada, em face da restrição do emprego das declarações do colaborador premiado para fundamentar, por si só, a condenação dos delatados (artigo 4º, § 16º, da Lei 12.850/13). O mesmo regime de desconfiança com o delator não existe no acordo de não persecução penal em relação ao coinvestigado — embora não esteja obrigado a dizer a verdade —, podendo resultar no emprego do delator como fonte de prova, sem a advertência expressa e legal que possui interesse no desfecho da causa, obviamente na sua perspectiva condenatória, e no sopesamento da prova produzida pelo juiz as ressalvas necessárias.

Além disso, imagine um acordo de não persecução penal homologado e devidamente cumprido. A descoberta posterior de informações não verdadeiras não resultará em qualquer prejuízo ao investigado celebrante do acordo, visto que a fidedignidade das informações não são incapazes de lhe gerar qualquer prejuízo.

Na sequência, tratando especificamente do artigo 18-F, denota-se que a confissão, fixada como um dos requisitos para o acordo de não persecução penal (artigo 28-A), não deve ter qualquer finalidade probatória, tendo em vista que apenas prejudica a concretização do ajuste penal, em especial pela possibilidade de emprego da incriminação em outras áreas do Direito, ao ponto de dificultar a celebração do ajuste na área penal.

Além disso, a sua imposição em nada contribui com o esclarecimento do fato, tendo em vista que, se for interesse do investigado, haverá a admissão da responsabilidade como forma de se evitar o processo criminal independentemente de qualquer veracidade quanto às suas informações. A obrigação parece ter muito mais o intuito de produzir arrependimento moral do que a necessidade para o correto desenvolvimento da persecução penal. É preciso destacar que a confissão isolada não pode levar à condenação, além do fato de ser retratável pelo acusado (artigos 197 e 200, CPP). Nesse contexto, não se deve admitir a confissão como elemento a ser empregado na futura ação penal.

Por isso, observa-se que a confissão não serve como assunção de responsabilidade penal em qualquer esfera do Direito, porque “sua exigência é meramente  processual para  formalização  do  consenso,  sem  qualquer  cunho probatório, sob pena de ofensa à presunção de inocência” [5].

Portanto, os dispositivos da resolução contrariam a ideia do acordo de não persecução penal de abreviamento da persecução penal para uma correta política criminal de esforço em áreas mais sensíveis, mas sem qualquer intuito probatório de qualquer natureza, além de surgirem em momento inoportuno, porque a matéria está sob discussão no Supremo Tribunal Federal [6].

 

 


[1] SOARES, Rafael Junior. Acordo de não persecução penal e o Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-22/rafael-soares-anpp-supremo-tribunal-federal/. Acesso em: 16 maio. 2024.

[2] a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/2019? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício ao imputado? b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo

[3] STJ-RHC 40257; RHC-65835-DF; AgRg no HC 473653-MG; STF-RHC 99768; AP 470/MG Sétimo AgR, Plenário, relator(a): min. JOAQUIM BARBOSA. Após a introdução do acordo de não persecução penal, há precedente específico admitindo a oitiva do coinvestigado que celebrou acordo de não persecução penal como informante, ver: 3. A despeito de um corréu não ter sido denunciado, por ter feito Acordo de Não Persecução Penal, inexiste impedimento para sua oitiva como informante, mas não como testemunha. 4. Agravo regimental parcialmente provido. (AgRg no RHC nº 144.641/PR, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 1/12/2022.).

[4] Trecho do voto do min. Alexandre de Moraes: “Dessa forma, não me parece existir qualquer dúvida de que o interesse processual do delator é absolutamente oposto ao interesse do delatado. Impossível, portanto, falarmos materialmente na existência de litisconsórcio passivo entre delator e delatado, uma vez que o sucesso da delação, e, consequentemente a obtenção das vantagens premiais oferecidas pelo Ministério Público ao delator, depende da condenação do delatado”. HC 166373/PR, relator(a): min. EDSON FACHIN Redator(a) do acórdão: min. ALEXANDRE DE MORAES Julgamento: 30/11/2022.

[5] DAGUER, Beatriz; SOARES, Rafael Junior; FIDELIS PEREIRA BIAGI, Talita Cristina. A necessidade de confissão como requisito para o acordo de não persecução penal e as repercussões produzidas no processo penal e nas demais esferas do direito. Revista Eletrônica de Direito Processual, [S. l.], v. 23, n. 1, 2021. DOI: 10.12957/redp.2022.58417. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/redp/article/view/58417. Acesso em: 16 maio. 2024.

[6] O presente trabalho é um breve resumo da apresentação feita no Encontro Estadual da Advocacia Paranaense no dia 10 de maio de 2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!