Foro competente da consignação em pagamento, STF e o artigo 52 do CPC
25 de fevereiro de 2024, 8h00
Em 25 de abril de 2023, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.737 e 5.492, o Supremo Tribunal Federal afastou a possibilidade de o contribuinte definir o foro de seu domicílio para a propositura de ação antiexacional contra o Fisco estadual ou do Distrito Federal.
Ao texto do parágrafo único [1] do artigo 52 do código processual que permitia ao contribuinte eleger o foro do seu domicílio [2] para ação, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme para reconhecer que a opção pelo domicílio do autor deve se restringir a comarcas cujo foro estejam abrangidas aos limites territoriais do estado ou do Distrito Federal que figure como réu.
Ao dar interpretação conforme, o Supremo Tribunal Federal fixou o sentido da norma jurídica [3] construída a partir do texto do referido dispositivo eliminando todos os demais sentidos passíveis de edificação, já que, por meio da utilização dessa técnica de julgamento em controle de constitucionalidade, o que fez foi fixar a norma com o conteúdo de significação que reputa estar em harmonia com a Constituição Federal de 1988, sem declarar sua inconstitucionalidade. Convocou, para tanto, ofensa ao pacto federativo e ao artigo 125 [4] (do texto constitucional), que outorga competência aos estados-membros para disciplinar sua Justiça [5].
No âmbito do processo tributário, especificamente da ação de consignação em pagamento na hipótese de “dúvida subjetiva” [6] (artigo 164, III, do Código Tributário Nacional), a definição do juízo competente para apreciar a demanda passa a ser um problema diante da norma fixada para o texto do parágrafo único do artigo 52 do código processual.
Imagine um contribuinte em que dois estados se reputam competentes para exigir o ICMS. Ciente de que deve pagar o imposto, mas apenas para um deles, opta por ajuizar a consignação em pagamento. À luz da orientação do Supremo Tribunal Federal, a ação deve ser proposta em foro do âmbito territorial do estado réu.
Nessa situação em que há a formação de um litisconsórcio passivo necessário de dois estados, portanto, dois réus, diante do entendimento fixado no Supremo, a dúvida que se põe é: qual o foro competente para se propor a ação de consignação em pagamento, se a opção pelo domicílio do autor da consignatória está limitado ao do território do estado-réu?
Poder-se-ia responder à pergunta convocando o artigo 540 do Código de Processo Civil de 2015, que estabelece que a consignação em pagamento será requerida no lugar do pagamento. Tal dispositivo, contudo, não socorre à consignação em pagamento tributária por dúvida do sujeito ativo, justamente porque o contribuinte objetiva definir para quem pagar e, consequentemente, o lugar do pagamento é indefinido.
Outro dispositivo que poderia ser invocado como solução seria o §4º [7] do artigo 46, que estabelece que, havendo dois ou mais réus com diferentes domicílios, o autor pode escolher o foro de qualquer deles. Mas, na mesma medida, reputamos que ele não se aplica à ação de consignação em pagamento em matéria tributária por dúvida subjetiva, pois ele (§4º) se aplica, à luz do caput do artigo 46 [8], a ações que se fundem em direito pessoal ou real sobre bens móveis.
A ideia de trabalhar essa questão (o da consignatória em pagamento por dúvida na sujeição ativa) foi demonstrar a importância de as regras gerais do Código de Processo Civil de 2015 serem pensadas segundo a relação material de fundo disparadora do processo, pois, como demonstrado, tomando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal e as regras previstas no Código de Processo Civil acerca da competência jurisdicional, há um risco evidente para o contribuinte quando propuser a ação de consignação em pagamento em um ou outro estado.
Tomando-se o processo como instrumento para realização do direito material de fundo, não há como negar a insegurança que gera a orientação firmada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.737 e 5.492 para o contribuinte que pretenda propor ação de consignação por dúvida subjetiva.
Assim, pensamos que o outro sentido da norma do parágrafo único do artigo 52 que autorizava a propositura da demanda no domicílio do autor merece ser repensado e admitido no que toca à ação de consignação em pagamento por dúvida subjetiva, porque em sintonia fina com a Constituição Federal, ante a ausência de outra solução positivada no código para a definição do foro competente para essa importante demanda em matéria tributária.
Para a hipótese descrita, então, a exceção à competência do foro do réu posta no parágrafo único do artigo 52 do Código de Processo Civil de 2015 é uma “saída” necessária.
[1] Parágrafo único. Se Estado ou o Distrito Federal for o demandado, a ação poderá ser proposta no foro de domicílio do autor, no de ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou na capital do respectivo ente federado.
[2] Ou no da ocorrência do fato ou do ato ensejador da demanda, no da situação da coisa ou na capital do respectivo ente federado. A essas hipótese se faz referência em nota de rodapé apenar para referência completa do que dispõe o dispositivo porque não são relevantes ao objeto do presente artigo.
[3] Preleciona Eros Roberto Grau que texto normativo e norma jurídica são distintos: “O direito é alográfico. E alográfico é porque o texto normativo se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A “completude” do texto somente é atingida quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete.
Mas o “sentido expressado pelo texto” já é algo novo, distinto do texto. É a norma.
Repetindo: as normas resultam da interpretação, que se pode descrever como um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas linguísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo.
O intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o texto); neste sentido ele “produz a norma”.” – in Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.1ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 20-21.
[4] Artigo 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
[5] A respeito do motivo que implicou a interpretação dada pelo STF, veja-se parte do voto do Ministro Barroso:
“(…) é preciso que as atribuições exercidas pelos órgãos judicantes estejam em conformidade com a forma federativa do Estado brasileiro. Em questões que interfiram significativamente na gestão pública, a discussão não pode ser simplesmente alijada do Judiciário local (…)”.
[6] PRIA, Rodrigo Dalla. In Direito Processual Tributário. 1ª edição. São Paulo: Noeses, 202, p. 318.
[7] Artigo 46. (…)
4º Havendo 2 (dois) ou mais réus com diferentes domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor.
[8] Artigo 46. A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens móveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu.
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