Opinião

Justiça injusta: efeitos do desequilíbrio entre acusação e defesa

Autor

  • Alexandre Lourenço

    é advogado criminalista especialista em investigação defensiva ex-delegado-geral da Polícia Civil de Goiás e ex-secretário de Segurança Pública de Goiás (interino).

24 de fevereiro de 2024, 11h18

É preocupante o desequilíbrio entre direitos e poderes conferidos aos responsáveis pela acusação e pela defesa nos procedimentos e processos relativos a supostos crimes. Sem dúvida alguma, tal desigualdade afeta de forma nefasta a possibilidade de se fazer justiça, sob todos os aspectos, e pode contribuir, de forma grave, para um desfecho contrário e perverso: a injustiça.

Dois exemplos valem como reflexão. O artigo 47 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece que, “se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los diretamente de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los”. O mesmo CPP prevê, em seu artigo 14, que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer diligências, que serão realizadas, ou não, a juízo da autoridade”.

Outra situação de disparidade está no fato de que o Ministério Público pode extrapolar o prazo previsto em lei para denunciar réu preso, sem que isto caracterize constrangimento ilegal, mas “mera irregularidade”. Já a defesa não pode ultrapassar o minguado prazo de dez dias para arrolar testemunhas, por exemplo, uma vez que, se isso ocorrer, configura-se o efeito da “preclusão consumativa” e “não se está diante de mera irregularidade”.

Em suma, a legislação garante à acusação abertura absoluta para requisitar — e obter, sem qualquer impedimento — procedimentos, instrumentos e tempo que julgue necessários para a apuração dos casos. Para a defesa, é concedido o direito de pleiteá-los, mas só será permitido se a autoridade responsável concordar. Amplo direito de investigação à acusação. Parcial direito de investigação à defesa.

Diante disso, é possível, de fato, afirmar que existe um processo penal igualitário se este é precedido, em regra, por um inquérito policial no qual os interesses defensivos são restringidos? Evidentemente, não. Nesse contexto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seu provimento 188/2018, em iniciativa expressiva de sua preocupação com o que aqui se trata, buscou regulamentar o exercício da prerrogativa profissional do advogado na realização de diligências investigatórias para a instrução em procedimentos administrativos e judiciais.

Em que pese o relevo do instrumento na tutela dos direitos de seus representados, pouco ainda se caminhou no sentido de efetivamente instrumentalizar um equilíbrio mínimo entre as partes na cruzada que se tem em uma investigação criminal e no próprio processo, quando já em juízo.

Muitos poderão, na intenção de se contrapor a esse argumento, lembrar que o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição, garante que “o indivíduo só será privado de sua liberdade ou terá seus direitos restringidos mediante um processo legal, exercido pelo Poder Judiciário, por meio de um juiz natural, assegurados o contraditório e a ampla defesa”.

Igualdade na fase investigatória é essencial
Sim, é bem verdade. Contudo, tal regramento se refere ao momento em que o caso já está na Justiça, ou seja, já se transformou em processo, o que indica que o antigo indiciado já se tornou réu e enfrenta uma ação criminal. Mas e a fase investigatória? Qual a justificativa para não existirem instrumentos legais, tal qual o acima mencionado, que também assegurem igualdade entre acusação e defesa nesta etapa?

Há quem defenda que a ausência de defesa técnica na fase preliminar de investigação não enseja prejuízos ao acusado, posto que, neste momento, apenas se produzem elementos informativos, que não são capazes, por si só, de ensejar uma condenação. No entanto, a realidade mostra que os dados colhidos no inquérito podem forjar efeitos perversos para a defesa durante todo o restante da persecução penal.

A investigação oficial realizada pela polícia tem por intenção buscar indícios de autoria e materialidade, e não o contrário. Com isso, relegam-se ao ostracismo, na maioria das vezes, os interesses defensivos por ausência da defesa técnica, que assegura uma investigação defensiva e, por sua vez, poderia contribuir efetivamente com a Justiça.

No Brasil, o efeito mais evidente é a condenação do réu, o desfecho mais recorrente nos processos de competência do Tribunal do Júri, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentados no diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri. De acordo com o levantamento, a condenação ocorre em 48% dos casos decididos, as absolvições são o desfecho de 20% dos julgamentos, enquanto 32% das decisões resultam em extinção da punibilidade, quando ocorre a morte do réu ou o crime prescreve.

O mesmo levantamento aponta que, nos estados do Acre, de Santa Catarina e de Minas Gerais, o índice de condenação ultrapassa 70% dos casos julgados. As taxas mais baixas de condenação ocorreram em Pernambuco, no Rio Grande do Norte e em São Paulo. As absolvições, por sua vez, ocorrem de forma mais expressiva na Paraíba, no Rio Grande do Sul e em Alagoas. Na sequência, o levantamento mostra o desfecho das ações penais por tribunal. Os Tribunais de Justiça dos Estados de Sergipe, do Rio de Janeiro, do Pará, de Goiás e do Distrito Federal e Territórios não lançaram os movimentos das tabelas processuais únicas (TPUs) necessários para o cálculo.

Nesse contexto, assim como é relevante a atuação de advogados no caminho pela garantia do direito à defesa, a Defensoria Pública se faz ainda mais necessária como o maior órgão público de assistência jurídica integral e gratuita do mundo, garantindo assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem a insuficiência de recursos para fazê-lo por meios próprios. A ideia é se fazer cumprir, ao menos em parte, um direito fundamental previsto na Constituição (artigo 5o LXXIV).

Falta de acesso à Defensoria Pública
De acordo com o primeiro grande mapeamento detalhado da presença de Defensorias Públicas no País, 24% da população brasileira que só teria acesso à Justiça por meio desse órgão não pode contar com isso justamente pela falta de unidades que possam prestar esse serviço. O dado consta da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública, publicada em 2022 e realizada em parceria entre Colégio Nacional das Corregedorias Gerais, Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais e Defensoria Pública da União, com apoio Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais e defensorias públicas estaduais.

A pesquisa revelou que, atualmente, no âmbito da justiça estadual, 48.677.446 habitantes não têm acesso à assistência jurídica fornecida pela Defensoria Pública. A necessidade é evidente: 44.446.368 do total são habitantes economicamente vulneráveis com renda de até três salários-mínimos, o que significa que não têm condições de contratar advogado particular para defender seus direitos. Em síntese, cerca de 24% da população brasileira está potencialmente à margem do sistema de justiça e impedida de reivindicar seus próprios direitos por intermédio da Defensoria Pública.

Tais números chamam a atenção não somente pela grandiosidade dessa importante instituição, ou mesmo pela sua ausência, conforme acima citado, mas também pela lamentável constatação dessa terrível junção entre a ausência de defensores públicos suficientes para atendimento da demanda e a disparidade de participação técnica entre acusação e defesa durante a investigação.

Essa é mais uma constatação do notório desrespeito ao princípio da paridade de armas, decorrente dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e, especialmente, do direito à igualdade das partes no exercício da defesa. Trata-se da necessidade de defesa e acusação terem as mesmas oportunidades e os mesmos acessos aos instrumentos dos quais precisam se desincumbir, de modo a influenciar o julgador a um juízo justo.

Ao estado acusador, acodem a polícia judiciária e o próprio Ministério Público no exercício dos meios e instrumentos de investigação permitidos e existentes do ponto de vista legal para que possam imputar a responsabilidade de um fato a alguém. Ainda nesse sentido, existe a própria força que representa as estruturas institucionais especializadas, como é o caso da polícia judiciária, na operação de tais meios e instrumentos voltados a construir o conhecimento necessário à materialização de um fato criminoso e ao apontamento de seu possível autor.

No caso do direito de defesa garantido por meio da atuação de advogados, é certo que muito se tem avançado com as alterações promovidas no Estatuto da Advocacia, buscando torná-los mais ativos e presentes no exercício profissional em sede de investigação criminal. Contudo, na produção efetiva de provas, a realidade ainda coloca muitos em situação de vulnerabilidade.

Caráter acusatório é marcante
Parte disso se deve ao caráter inquisitivo que ainda marca a persecução penal em sua fase preparatória, mas também à discricionariedade que permite à autoridade policial eleger a trilha probatória a ser percorrida. Isso inclui, por exemplo, a admissão, ou não, dos requerimentos dos investigados realizados no intuito de provar sua inocência ou mesmo de lhe trazer elementos que melhorem e tornem mais justa sua condição processual.

Por outro lado, em regra, aos advogados não são garantidos instrumentos normativos e técnicos para que atuem, de maneira autônoma e independente, no pleno exercício do direito de defesa de seus clientes. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de simples requisição de documentos ou de imposição da presença de assistentes técnicos para o acompanhamento de exames periciais designados.

É utopia acreditar em justiça justa, sem que o direito de defesa seja de fato amplo e pleno, na esfera criminal e em todo o plano jurídico, onde a construção probatória exerce o importante papel de levar ao juiz a realidade dos fatos (ou aquilo que dela se aproxima), de modo a permitir que a justiça seja feita.

Somente haverá justiça justa quando for garantida à defesa, em igualdade de condições com a acusação, a produção de elementos que lhes permitam anotar a exata responsabilidade de pessoas investigadas nos fatos contra si imputados ou mesmo a ausência plena de responsabilidade. Mais que isso, a justiça só será justa se ocorrer em momento oportuno e célere, sem que o próprio processo se transforme em uma pena.

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  • é advogado criminalista, especialista em investigação defensiva, ex-delegado-geral da Polícia Civil de Goiás e ex-secretário de Segurança Pública de Goiás (interino).

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