Opinião

Limitações constitucionais à progressividade de alíquota de ITCMD

Autor

  • Matheus Paiva de Oliveira

    é advogado e consultor em direito tributário e empresarial associado do João Carlos de Paiva Advogados Associados e pós-graduando em direito tributário e aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

21 de fevereiro de 2024, 20h58

Embora tenha feito com que todos os olhares se voltassem para a tributação sobre o consumo, a reforma tributária levada a efeito por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023 também trouxe mudanças importantes quanto à tributação sobre o patrimônio.

Uma dessas mudanças diz respeito ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, o ITCMD: segundo o novo texto constitucional, as alíquotas desse imposto devem ser obrigatoriamente progressivas.

Não que a progressividade, em si mesma, seja uma novidade. Antes mesmo da reforma, quando do julgamento do RE 562.045, o Supremo Tribunal Federal já havia firmado o entendimento de que poderiam ser previstas alíquotas progressivas para o ITCMD.

Mas, como se tratava de uma mera possibilidade, muitos estados-membros mantiveram alíquotas fixas em suas leis estaduais. São os casos, por exemplo, dos estados de São Paulo e de Minas Gerais, cujas alíquotas são, respectivamente, de 4% e de 5%.

Com a reforma, a Constituição passou a prever que o imposto “será progressivo em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação” (artigo 155, §1º, inciso VI, da CF/88). Por conta disso, alguns estados já têm iniciado as discussões para adequar suas legislações à nova regra. Tanto é assim que recentemente foi proposta perante a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 07/2024, que institui diversas faixas de tributação de ITCMD, a maior delas sujeita à alíquota de 8%.

A propósito, é de notar que a progressividade tende a levar a um aumento da tributação para contribuintes que contam com patrimônio expressivo. Por isso mesmo, aqueles que pretendam realizar planejamento sucessório em vida devem iniciar o processo o quanto antes, aproveitando a janela de oportunidade restante enquanto as novas alíquotas não entram em vigor.

Ainda assim, a previsão constitucional não permite que os estados instituam e apliquem a progressividade como bem entenderem. Pelo contrário, o legislador estadual e o fisco devem respeitar as demais regras constitucionais que regem o sistema tributário brasileiro.

Progressividade de alíquotas de ITCMD
De início, é necessário lembrar que, no julgamento do RE 562.045, o Supremo Tribunal Federal apontou o princípio da capacidade contributiva (artigo 145, §1º, da CF/88) como fundamento para a progressividade de alíquotas de ITCMD.

Como o novo texto constitucional não vinculou a progressividade a nenhuma motivação extrafiscal, mas sim à base de cálculo do tributo, o fundamento para alíquotas diferenciadas continua a residir nas diferentes capacidades contributivas manifestadas pelos contribuintes.

Em decorrência disso, impõe-se o acolhimento daquilo que a doutrina denomina de progressividade “gradual”, e não a mera progressividade “simples” [1]. Na primeira técnica, a alíquota maior somente incide sobre a fração da base de cálculo que supera o teto estabelecido para faixa anterior de tributação. Na segunda, aplica-se a alíquota mais alta sobre a totalidade da base de cálculo.

Para facilitar a compreensão, imagine-se que um determinado estado instituiu duas faixas de tributação de ITCMD: a primeira, em que se enquadram valores menores do que R$ 1 milhão, sujeita à alíquota de 5%; a segunda, abrangendo transmissões de patrimônio com avaliação igual ou superior a R$ 1 milhão, tributada ao percentual de 8%.

Tomemos, então, uma transmissão patrimonial de R$ 2 milhões. Segundo a técnica gradual, o tributo devido seria apurado a partir da seguinte equação:

ITCMD = (R$ 999.999,99 * 5%) + ([R$ 2.000.000,00 – R$ 999.999,99]*8%)

Por sua vez, na técnica “simples”, a apuração é realizada mediante a mera aplicação da alíquota sobre a base de cálculo, chegando-se à seguinte equação a partir dos valores mencionados acima:

ITCMD = R$2.000.000,00 X 8%

A primeira técnica é justamente aquela adotada na apuração do Imposto de Renda [2], sendo a única que realmente permite que os contribuintes recebam tratamento diferenciado na medida de sua desigualdade, o que satisfaz o princípio da isonomia [3].

Embora a progressividade gradual já fosse defendida antes mesmo da reforma [4], não se tem notícia de que os tribunais tenham enfrentado o tema até o momento. Contudo, com a difusão da alíquota progressiva por todos os estados da federação, certamente a jurisprudência quanto ao tema deve começar a ser construída ao longo dos próximos anos.

Progressividade limitada pela competência territorial do estado
Outro ponto que deve ser considerado, tanto no processo legislativo quanto na aplicação da nova lei, diz respeito aos limites de competência territorial de cada estado-membro. Esse aspecto se torna especialmente relevante nas transmissões por herança quando o acervo patrimonial é formado por bens sujeitos à tributação por diferentes estados-membros.

Para melhor ilustrar esse ponto, vale tomar como exemplo a legislação do estado do Rio de Janeiro. Diz a lei carioca que “o imposto é calculado aplicando-se, sobre o valor fixado para a base de cálculo, considerando-se a totalidade dos bens e direitos transmitidos, a alíquota de: […]”, e prossegue o texto legal indicando faixas de tributação sujeitas a alíquotas que variam de 4% a 8%[5].

Diante dessa disposição normativa, imagine-se o espólio de alguém que tinha domicílio no estado de Minas Gerais, sendo o patrimônio formado por bens móveis em geral e por imóveis situados no estado do Rio de Janeiro. Nessa hipótese, existiriam dois estados-membros habilitados a cobrar o tributo estadual: os bens móveis seriam tributados pelo fisco mineiro [6], cabendo ao estado do Rio de Janeiro o ITCMD sobre os imóveis situados em seu território.

Ora, em um caso idêntico ao citado acima, já nos deparamos com a pretensão do fisco carioca de tomar como parâmetro para definição da alíquota a totalidade do patrimônio deixado pelo falecido — computando, inclusive, os bens sujeitos à tributação pelo estado de Minas Gerais —, e não apenas a base de cálculo do tributo devido ao estado do Rio de Janeiro — ou seja, o valor dos imóveis situados em seu território.

Segundo o fisco carioca, essa forma de definição da alíquota aplicável atenderia ao princípio da capacidade contributiva. Esse entendimento, contudo, não poderia ser admitido antes da Reforma Tributária e, pelos mesmos motivos, também não se sustenta após esta.

Como ensina o professor Roque Antônio Carrazza, a lei tributária “só pode colher fatos (imputando-lhes os efeitos jurídicos previstos) ocorridos dentro de seu âmbito de validade: o território da pessoa política que a editou” [7].

Assim, para fins de definição da alíquota do tributo devido a um determinado estado-membro, somente interessam os bens que possam ser alcançados pela respectiva legislação tributária. Para esse fim, a fração patrimonial sujeita à tributação por outro estado deve ser tratada como se sequer existisse. Entender de forma contrária seria concordar com a violação à delimitação de competência traçada pelo artigo 155, §1º, incisos I e II, da CF/88.

E nem se diga, como tantas vezes faz o fisco, que tal interpretação privilegia a capacidade contributiva.

Em primeiro lugar, havendo um conflito entre uma regra constitucional clara e objetiva, como aquela que delimita a competência territorial para exigência de ITCMD, e um princípio constitucional abstrato, como o princípio da capacidade contributiva, a primeira deve prevalecer. Essa é a lição já clássica do professor Humberto Ávila [8].

Em segundo lugar, como bem lembra Martha Leão [9], a mera existência de capacidade contributiva não basta para tornar legítima a exigência tributária. Não havendo uma lei constitucional que institua a sua cobrança, o tributo não se torna devido mesmo que exista capacidade contributiva. E uma lei que viola uma norma de competência territorial certamente é inconstitucional.

Logo, a progressividade da alíquota de ITCMD deve se dar, não em função da totalidade do patrimônio, mas sim da base de cálculo condicionada pelo território de estado-membro — como, no mais, se pode inferir dos votos proferidos no julgamento do RE 562.045 [10].

Totalidade do patrimônio não é critério válido para a progressividade
Por fim, vale um alerta: ao determinar que a progressividade se dê em função “do valor do quinhão, do legado ou da doação”, a Emenda Constitucional nº 132/2023 revoga, por não terem sido recepcionadas, as leis estaduais que adotam como parâmetro para progressividade de alíquota a totalidade do patrimônio transmitido.

Aliás, a necessidade de se tomar como critério para progressividade de alíquota o quinhão recebido por cada herdeiro ou donatário já era apontada pela doutrina [11] antes mesmo da EC 132/2023. Com a inclusão do inciso VI no artigo 155, §1º, da Constituição Federal, não restam mais dúvidas quanto a esse ponto.

Como se vê, os estados-membros não podem instituir e aplicar alíquotas progressivas de ITCMD visando apenas para propósitos arrecadatórios. É necessário respeitar as demais normas que dão forma ao sistema tributário nacional.

A plena realização desse ideal pode parecer improvável, mas nem por isso se tornam menos constitucionais — e defensáveis perante o Poder Judiciário — as conclusões aqui expostas.

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[1] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo, 14ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. E-book.

[2] Na apuração de Imposto de Renda, a progressividade gradual é proporcionada pelas diferentes “parcelas a deduzir” aplicáveis a cada faixa de tributação.

[3] Embora escrevendo a respeito do Imposto de Renda, os professores Schoueri e Roberto Quiroga apresentam posicionamento em tudo aplicável ao ITCMD: “[…] a ideia de progressividade não contraria o princípio da igualdade. Afinal, naquilo em que são iguais (i.e.: na parcela da renda até R$ 1.903,98), todos os contribuintes estão isentos. Naquilo em que se diferenciam, dá-se, também, um tratamento diferenciado, mas exclusivamente sobre a parcela da renda que uns têm e outros não.” (MOSQUERA, Roberto Quiroga; SCHOUERI, Luís Eduardo. Manual de Tributação da Renda Direta. São Paulo: IBDT, 2020, p.18/19. E-book).

[4] DAVID, Rogério. A inconstitucionalidade do cálculo do ITCMD progressivo no Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jun-18/carneiro-inconstitucionalidade-calculo-itcmd-progressivo-rj/>. Acesso em 14/02/2024.

[5]     Lei Estadual 7.147/2015, art. 26.

[6]     Anteriormente à Emenda Constitucional 132/2023, o critério territorial adotado para definir a competência para tributação de bens móveis não era o domicílio do falecido, e sim o local de tramitação do processo de inventário. No entanto, mesmo ao tempo de vigência da regra antiga, se o processo tramitasse em Estado diverso daquele em que estavam localizados o(s) imóvel(eis), a conclusão era a mesma exposta no texto.

[7]     CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 31º ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 774.

[8]     ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 131.

[9]     LEÃO, Martha. Fundamentos Constitucionais da Tributação. In: PINTO, Alexandre Evaristo; PITMAN, Arthur; SILVA, Fábio Ferreira da. Manual de Gestão Tributária, 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 16.

[10]   O Min. Ricardo Lewandowski assim se manifestou naquele julgamento: “Não se deve, todavia, confundir “seletividade” – técnica aplicável aos impostos reais com “progressividade“, sistemática que usualmente é empregada para modular os impostos pessoais. Nesta, as alíquotas aumentam em função do valor da base de cálculo, onerando mais pesadamente aqueles que possuem maior capacidade econômica, de forma proporcional à sua riqueza. Já naquela, as alíquotas variam em razão dos objetos tributados, tendo em mira a realização de determinada política fiscal, de modo a estimular ou desestimular a produção ou o consumo de certos bens”. Do mesmo modo, consta do voto do Min. Joaquim Barbosa o seguinte: “Entendo que igualmente, tal como o voto divergente, a técnica da progressividade é um instrumento por excelência para aferição da capacidade contributiva. A tributação ad valorem com a especificação de única alíquota é insensível à intensidade econômica da base que se está tributando, circunstância que pode gerar distorções que igualam sujeitos passivos que, na verdade, ostentam situações diversas.”.

[11]   MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário, 9ª ed. São Paulo: 2017, p. 289. No mesmo sentido: LAVEZ, Raphael Assef. Gestão de Tributos sobre o Patrimônio e Transferências Patrimoniais: IPTU, IPVA ITR, ITCMD e ITBI. In: PINTO, Alexandre Evaristo; PITMAN, Arthur; SILVA, Fábio Ferreira da. Manual de Gestão Tributária, 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 447.

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  • é advogado e consultor em direito tributário e empresarial, associado do João Carlos de Paiva Advogados Associados e pós-graduando em direito tributário e aduaneiro pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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