Opinião

Modulação de efeitos da limitação das contribuições de terceiros a 20 salários mínimos

Autores

  • Adolpho Bergamini

    é advogado professor de Direito Tributário mestre em Direito Tributário pela FGV-SP ex-conselheiro do Carf e juiz do TIT-SP.

  • Danilo Andrade Bertagnoli de Figueiredo

    é advogado da área tributária do Bergamini Advogados pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT-Jovem) MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Atuariais e Financeiras (Fipecafi) e pós-graduado em Direito Tributário pela FGV/SP.

16 de fevereiro de 2024, 6h40

O início dos cursos de direito é marcado pelos trotes, calouros tendo cabelos cortados nas calçadas e pedindo “esmolas” junto a motoristas e pedestres nas ruas.

Mas a marca maior está no aprendizado, pelos alunos, de lições jurídicas basilares logo nos primeiros meses do curso. Uma delas é a de que declarações de inconstitucionalidade de leis, em regra, têm efeitos ex tunc, ou seja, retroagem no tempo.

A lógica por trás dessa máxima é óbvia e justificável em si mesma: se uma lei é tida como inconstitucional, então ela sempre foi inconstitucional, desde a sua origem.

O artigo 27 da Lei nº 9.868/99 estabelece exceções ao dispor que “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal (…) restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

As polêmicas em torno do aludido dispositivo surgiram logo ao tempo de seu nascimento. A experiência ampliou a reverberação das críticas a respeito da modulação de efeito, tendo-se em conta os variados critérios adotados pelo STF em suas modulações.

De fato, a primeira dificuldade encontrada é sobre o termo a quo para aplicar a modulação. O certo seria existir um critério objetivo, como, por exemplo, modular para aqueles que não ajuizaram a ação judicial antes do julgamento, mas não há uma uniformidade, o que gera um nível de confusão gigantesco para as partes que atuam nos processos sob julgamento no âmbito judicial.

São vários leading cases que podemos citar para confirmar essa falta de uniformidade.

Em alguns julgamentos, o STF modula para frente. Um exemplo é o Tema 1093, julgado em 2021.

O STF julgou inconstitucional a cobrança do Difal do ICMS sem a edição de lei complementar, mas considerou que a decisão só produzirá efeitos a partir de 2022 para dar a oportunidade ao Congresso de ter tempo hábil para editar a referida norma.

Outro exemplo é o Tema 745, também julgado em 2021. O STF decidiu que a cobrança das alíquotas de ICMS incidente sobre a energia elétrica e os serviços de telecomunicação superiores à alíquota geral é inconstitucional, mas modulou os efeitos da decisão para que produza efeitos apenas em 2024.

Em outros julgamentos, como o que versou a não inclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins (Tema 69), o STF modulou para a data do julgamento.

Já no julgamento das ADIs 1945 e 5659, onde o STF entendeu que incide ISS (e não ICMS) nas operações com software, foram estipulados nada menos do que oito hipóteses de modulação. Sim, oito hipóteses!!

Entre essas, destacamos: quem recolheu só o ICMS não poderá ser restituído; quem recolheu o ICMS e o ISS poderá pedir a restituição do imposto estadual; quem não recolheu o ICMS e o ISS não poderá ser cobrado por esse último.

Princípio da não cumulatividade
Outro leading case que merece destaque é o Tema 490. Ao reconhecer que o estorno proporcional de créditos de ICMS em razão do crédito presumido por outro estado não ofende o princípio da não cumulatividade, o STF entendeu que o momento mais adequado para que a decisão produza efeitos é a data do julgamento, com exceção às relações jurídicas já constituídas.

Em outras palavras, a criatividade do STF foi a seguinte: quem foi autuado para pagar o ICMS decorrente da glosa proporcional de créditos de ICMS e está discutindo a cobrança há anos deverá pagar o imposto, ao contrário de quem não teve contra a si lavrado um auto de infração e nunca entrou com a ação, que não precisará pagar. É uma questão de sorte: se não foi autuado, não paga.

Visto isso, o que há de mais eloquente das decisões do Supremo são as feridas infligidas à segurança jurídica, que deveria ser um valor a ser preservado, tanto que é o que justifica a própria modulação, nos termos do artigo 27 da Lei nº 9.868/99.

Ora, com tantos critérios diferentes, muitos deles disfuncionais, que não podem ser previstos por não seguirem lógica ou critério determinado em sua fixação, como dizer que os contribuintes e os jurisdicionados caminham ao lado da segurança jurídica?

Isso ficou claro quando o STF julgou a ADC 49, que julgou inconstitucional a incidência do ICMS sobre transferências entre filiais da mesma empresa.

Tal entendimento vem sendo proferido pelo Judiciário desde a década de 1990, contou com inúmeros pronunciamentos do próprio STF e, no STJ, contava até mesmo com súmula.

Mas, ao julgar a ADC 49, o STF favoreceu o fiscal ao modular seus efeitos para que tenha eficácia somente a partir de 2024, ressalvados os processos pendentes de conclusão até a data de julgamento da decisão de mérito.

Fica a indagação: se orientação jurisprudencial pela não incidência do ICMS existia há quase 30 anos, por que modular para que a decisão produza efeitos para o futuro? Onde está a garantia à segurança jurídica ao contribuinte que confiou em uma jurisprudência estável por décadas, mas depois se viu diante de modulação de efeitos para a partir de 2024?

Mas não é só. O STJ também ganhou a possibilidade de modular os efeitos de suas decisões se houver a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de repetitivos (artigo 927, §3º), ou seja, nas hipóteses de overrruling.

De acordo com a exposição dos motivos do CPC, a segurança jurídica ficaria comprometida com bruscas alterações de entendimentos de tribunais sobre questões de direito. Logo, para prestigiar a segurança jurídica, as decisões que alteram a jurisprudência devem ser moduladas, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas.

Limitação e contribuições de terceiros
E aqui chegamos ao caso que dá título ao presente ensaio.

No STJ, está em julgamento a tese da limitação das contribuições de terceiros a 20 salários-mínimos (Tema 1.079). Ao afetar a matéria em razão de sua relevância e repercussão direta na vida de inúmeras empresas, em 2020, o STJ determinou expressamente que todos os processos em trâmite devem permanecer suspensos até o julgamento definitivo da controvérsia (artigo 1.037, II, do CPC).

Há sentido nessa suspensão, mesmo porque a exposição dos motivos do CPC consagra que a ideia central dessa suspensão é aguardar a decisão dos tribunais superiores para que a jurisprudência seja internamente uniformizada e, com isso, seja prestigiada a segurança jurídica.

No contexto do julgamento desse leading case, a ministra Regina Costa Helena, relatora, votou desfavoravelmente à tese dos contribuintes, pois entendeu ser inaplicável o teto de 20 salários-mínimos como limitador da base de cálculo das contribuições.

A ministra entendeu ainda que, para preservar a segurança jurídica diante desse overrruling, é necessário modular os efeitos da decisão, uma vez que a jurisprudência anterior do STJ era favorável aos contribuintes.

Segundo sua proposta, os efeitos do novo entendimento deveriam excluir as empresas que ingressaram com a ação judicial e que tenham obtido decisões favoráveis até a data do julgamento do leading case.

Se essa modulação passar, será inaugurado o princípio da “pegadinha” tributária.

Como o STJ, ao afetar a temática para julgamento em repetitivo, suspendeu a tramitação de todos os processos que tratam do mesmo assunto em todo o território nacional, o contribuinte que ajuizou a medida judicial não teve a oportunidade de obter uma decisão favorável justamente pelo fato de o curso de seu processo ter sido suspenso.

Ora, o contribuinte que foi diligente e apresentou seu pleito ao Judiciário viu sua ação ter o processamento suspenso por ordem do STJ. Ou seja, o fato de sua ação não contar com algum pronunciamento judicial se deve única e exclusivamente à ordem de suspensão dada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Mas, o mesmo STJ propõe que esse contribuinte não poderá se beneficiar dos efeitos da modulação porque ele não tem uma decisão a seu favor. E ele só não tem decisão a seu favor porque o aaquele tribunal determinou!!

Isso, por si só, é suficiente para confirmar que não há lógica alguma a modulação proposta pela ministra Regina Costa Helena. Não considerou que inúmeros processos judiciais que versam sobre o mesmo tema foram suspensos por conta de determinação do próprio STJ quando afetou a matéria.

Mas, não é só. Há outro grave problema em torno do princípio da isonomia, já que os contribuintes que exerceram o direito de ação no tempo correto terão tratamento diferentes.

Uns poderão ter os benefícios da modulação de efeitos caso tenham obtido decisão favorável. Outros, que não tiveram suas ações apreciadas por magistrados com entendimento favorável à tese, não terão os benefícios.

A sorte, portanto, será o elemento umbilical que definirá quem se beneficiará, ou não, da modulação de efeitos. As críticas, nesse ponto, se devem ao tamanho do Poder Judiciário, que é a base à indignação proposta.

Se considerarmos apenas o TRF da 3ª Região, temos 51 subseções judiciárias, com 144 varas federais. Temos também 11 turmas compostas por 52 desembargadores. Ainda que a jurisprudência desse tribunal seja majoritariamente favorável à tese dos contribuintes, a obtenção de uma decisão favorável estará diretamente relacionada à sorte.

Por tudo isso, o melhor critério de modulação é o ajuizamento de ações judiciais até a data de início do julgamento do leading case. Todos que entraram com suas demandas até esse marco serão beneficiados, mas não o que ficaram inertes. Cumpre a máxima de que o direito não socorre aos que dormem e, por outro lado, privilegia a segurança jurídica e a isonomia.

A decisão final sobre o tema ainda não está tomada, isso deve ser acompanhado de perto. Nosso destino pode ser voltar aos bancos da universidade, ou pedir “esmolas” nos trotes de calouros.

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