Opinião

Marco regulatório na saúde suplementar: direitos e prerrogativas dos médicos

Autor

  • Cláudio Castello de Campos Pereira

    é advogado sócio da Castello de Campos & Gazarini Dutra Sociedade de Advogados especializado em Direito Civil pela GV Law e membro efetivo da Comissão de Estudos Sobre Planos de Saúde e Assistência Médica da OAB-SP.

15 de fevereiro de 2024, 12h11

Na interseção entre médicos, pacientes e operadoras de planos de saúde, emergem desafios significativos, principalmente quando práticas abusivas por parte das operadoras comprometem a qualidade e a acessibilidade dos cuidados de saúde.

Essas práticas incluem negativas injustificadas de cobertura para procedimentos necessários, auditorias que contestam indevidamente as decisões médicas e atrasos nos pagamentos dos serviços prestados, afetando a sustentabilidade financeira dos profissionais de saúde e limitando o acesso dos pacientes aos tratamentos de que necessitam.

Para enfrentar esses desafios, existe um robusto arcabouço ético e legal que ampara a prática médica, incluindo as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e normativas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que estabelecem diretrizes claras para proteger os direitos dos médicos e pacientes, além de definir as obrigações das operadoras de saúde.

Este arcabouço legal enfatiza a importância da autonomia médica, da justificativa baseada em evidências para negativas de procedimentos e do respeito às decisões clínicas dos médicos.

Além de se apoiar em regulamentações existentes, médicos e profissionais da saúde podem adotar várias estratégias para se proteger contra abusos. A documentação meticulosa das interações com as operadoras, incluindo justificativas para procedimentos recomendados e respostas recebidas, é fundamental.

Essa prática não só facilita a contestação de negativas injustificadas, mas também fornece evidências cruciais em potenciais litígios.

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A mobilização coletiva, por meio de associações médicas e sindicatos, emerge como uma estratégia poderosa, permitindo que os profissionais de saúde negociem coletivamente com as operadoras e, se necessário, empreendam ações judiciais contra práticas abusivas.

Além disso, a educação continuada sobre direitos e obrigações legais, bem como atualizações em legislações e resoluções pertinentes, equipa os profissionais com o conhecimento necessário para navegar no complexo sistema de saúde suplementar.

Finalmente, o engajamento ativo na formulação de políticas de saúde em níveis estaduais e nacionais é crucial para garantir que futuras legislações e regulamentações reflitam os interesses dos profissionais de saúde e dos pacientes, promovendo uma assistência de saúde de qualidade e justa.

Ao adotar essas estratégias e se apoiar no arcabouço ético e legal existente, os profissionais de saúde podem reforçar sua posição contra as práticas abusivas das operadoras de planos de saúde, garantindo que o atendimento ao paciente permaneça no centro das decisões de saúde.

Auditorias médicas: práticas e princípios
A prática da auditoria médica ocupa uma posição fundamental dentro do sistema de saúde, devendo ser compreendida e valorizada como um verdadeiro ato médico. Esta perspectiva sustenta a necessidade de que a auditoria seja conduzida com rigorosa aderência aos princípios de transparência, equidade e justiça, assegurando uma prática que respeite tanto os profissionais de saúde quanto os pacientes envolvidos.

Neste contexto, as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.658/2002 [1] e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) nº 424/2017 [2] delineiam claramente os parâmetros dentro dos quais a auditoria médica deve operar, destacando a importância de ser realizada por um médico devidamente qualificado.

A Resolução CFM nº 1.658/2002 [3], atualizada pela Resolução CFM nº 1.851/2008, é crucial no contexto do combate aos abusos das operadoras de planos de saúde, fornecendo diretrizes estritas para a emissão de atestados médicos.

Estas normativas asseguram que os documentos médicos refletem com precisão a condição de saúde dos pacientes, fortalecendo a base para médicos e profissionais de saúde na defesa contra auditorias injustas e negativas de cobertura. Por enfatizar a precisão e a veracidade dos atestados, a resolução protege os direitos dos pacientes e a integridade da prática médica, fundamentais no embate contra as práticas questionáveis de algumas operadoras de saúde.

Este arcabouço legal é uma ferramenta vital na promoção de um sistema de saúde mais justo e ético, garantindo que os cuidados aos pacientes não sejam indevidamente comprometidos por disputas com operadoras de planos de saúde.

A Resolução Normativa nº 424, de 26 de junho de 2017 [4], estabelecida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), define critérios para a formação de juntas médicas ou odontológicas com o objetivo de resolver divergências técnico-assistenciais entre beneficiários e operadoras sobre a cobertura de procedimentos ou eventos em saúde.

Essa resolução surgiu da necessidade de maior transparência e eficiência no processo de resolução de conflitos, visando reduzir a judicialização de casos, a demora na realização de procedimentos, e as multas aplicadas às operadoras por falhas na constituição ou atuação das juntas.

Ela determina que a junta seja composta por três profissionais: um assistente, um representante da operadora e um terceiro imparcial escolhido em comum acordo, que pode conduzir o processo presencialmente ou à distância. A resolução também estipula prazos específicos para a realização dos procedimentos e permite apenas uma suspensão do prazo por até três dias úteis.

Situações de urgência ou emergência, procedimentos não previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde ou no contrato, uso de Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPME) não cobertos ou sem registro na Anvisa são exceções à formação de junta. Essa normativa visa assegurar a indicação clínica mais adequada e promover a equidade nas relações entre operadoras, profissionais de saúde e beneficiários.

Destaque-se que médico investido da responsabilidade de auditor é incumbido de examinar e validar a adequação e necessidade das solicitações médicas, incluindo procedimentos e internações. Tal análise deve ser embasada em critérios rigorosamente técnicos e éticos, garantindo que as decisões tomadas estejam alinhadas com as melhores práticas médicas e os mais altos padrões de cuidado ao paciente. Importante ressaltar, a auditoria médica não deve de forma alguma comprometer ou desconsiderar a autonomia do médico assistente, cujas decisões clínicas são tomadas com base no conhecimento específico do caso e nas necessidades individuais de cada paciente.

Ampliando a compreensão sobre a auditoria médica, é essencial reconhecer que essa prática não se limita apenas à avaliação da pertinência de procedimentos e internações. Ela também engloba uma revisão criteriosa dos processos de diagnóstico e tratamento, a fim de assegurar a qualidade e a segurança dos cuidados prestados.

Este escopo ampliado reflete uma abordagem holística e integrada à saúde, valorizando a auditoria médica como uma ferramenta vital para a promoção de práticas médicas responsáveis, eficientes e eticamente fundamentadas.

A necessidade de transparência e justiça na auditoria médica também sublinha a importância de um diálogo aberto e construtivo entre o auditor médico e o médico assistente.

Esse intercâmbio de informações e perspectivas é crucial para garantir que as decisões de auditoria sejam bem informadas e justas, equilibrando a necessidade de controle de custos e eficiência com o imperativo ético de fornecer cuidado de alta qualidade ao paciente.

A Resolução CFM Nº 2.318/2022 [5], publicada pelo Conselho Federal de Medicina, representa um avanço significativo na regulamentação da prescrição, uso e controle de materiais implantáveis, incluindo órteses e próteses, em procedimentos médicos no Brasil.

Esta resolução substituiu normativas anteriores, especificamente as Resoluções CFM nº 1.804/2006 e Nº 1.956/2010, e introduziu diretrizes mais rigorosas para garantir a qualidade, segurança e rastreabilidade dos implantes utilizados em pacientes.

A importância prática desta resolução reside na sua abordagem abrangente para assegurar que os materiais implantáveis sejam não só de alta qualidade, mas também escolhidos e utilizados de maneira que melhor atenda às necessidades clínicas dos pacientes.

Ao estabelecer a obrigatoriedade de justificação clínica para a escolha de determinados materiais e proibir práticas que possam levar a conflitos de interesse, como a obtenção de vantagens indevidas por parte dos médicos na prescrição de determinados produtos, a resolução visa elevar o padrão de atendimento ao paciente.

Além disso, a resolução destaca a necessidade de transparência e de informação adequada aos pacientes sobre os materiais implantáveis a serem utilizados em seus tratamentos, incluindo possíveis riscos e benefícios, contribuindo para uma tomada de decisão mais informada e colaborativa entre médico e paciente.

Essa medida é essencial para reforçar a confiança na relação médico-paciente e na qualidade dos cuidados de saúde prestados.

Outro aspecto relevante é a introdução de mecanismos de arbitragem para resolver conflitos que possam surgir entre médicos e operadoras de saúde ou instituições públicas, garantindo que as divergências sobre a utilização de determinados materiais implantáveis possam ser solucionadas de maneira justa e eficiente, sem prejudicar o acesso do paciente a tratamentos adequados e tempestivos.

A Resolução CFM Nº 2.318/2022 é, portanto, um marco regulatório que reflete o compromisso do Conselho Federal de Medicina com a segurança do paciente, a ética médica e a inovação responsável no uso de tecnologias de saúde.

Ao estabelecer padrões claros e diretrizes rigorosas para a utilização de materiais implantáveis, esta resolução tem o potencial de melhorar significativamente a qualidade dos cuidados médicos no Brasil, assegurando que os pacientes recebam tratamentos seguros, eficazes e alinhados às melhores práticas clínicas e científicas disponíveis.

A auditoria médica, reconhecida e praticada como um ato médico, exige uma abordagem que seja simultaneamente técnica, ética e humanizada. Ela deve ser fundamentada em uma compreensão profunda dos princípios médicos e éticos, assim como nas diretrizes estabelecidas pelas autoridades reguladoras.

Ao fazer isso, a auditoria médica não só assegura a adequação e a eficácia dos cuidados de saúde, mas também reforça a confiança e a integridade do sistema de saúde como um todo.

Negativas de procedimentos: critérios e comunicação
A Resolução CFM nº 2.126/2015 [6], ao impor a necessidade de justificativas claras e baseadas em evidências científicas para as negativas de procedimentos por operadoras de saúde, amplia significativamente a proteção aos pacientes.

Esta normativa não só assegura uma comunicação transparente e fundamentada entre operadoras, médicos e pacientes, mas também promove uma medicina baseada em evidências, onde decisões sobre o cuidado do paciente são tomadas com base no melhor conhecimento científico disponível.

Além disso, fortalece a ética na prática médica, ao garantir que as necessidades de saúde do paciente sejam sempre priorizadas, minimizando conflitos e promovendo um ambiente de cuidado mais justo e equitativo.

Essa resolução é, portanto, um marco importante no esforço contínuo para melhorar a qualidade da assistência à saúde e proteger os direitos dos pacientes no sistema de saúde brasileiro.

Autonomia médica e respeito às diretrizes clínicas
A autonomia do médico na escolha de tratamentos e materiais necessários para o cuidado de seus pacientes é um pilar essencial da prática médica, conforme protegido por legislações e resoluções como a CFM nº 1.931/2009 [7], que estabelece o Código de Ética Médica.

Este código enfatiza a importância da liberdade profissional do médico, assegurando que suas decisões sejam pautadas em evidências científicas e consensos clínicos atualizados, sem interferências externas injustificadas.

A importância desta autonomia estende-se além da simples escolha de procedimentos, tomando uma posição central na garantia de uma assistência médica de qualidade e na defesa dos interesses dos pacientes.

A capacidade do médico de escolher o melhor caminho para o cuidado do paciente é fundamental para o exercício de uma medicina ética e eficaz, que respeite as individualidades e necessidades específicas de cada caso.

Exemplos práticos da aplicação da autonomia médica incluem a escolha de medicamentos específicos que sejam mais eficazes para determinado paciente, considerando suas condições de saúde, histórico médico e potenciais efeitos colaterais, bem como a decisão sobre a realização de procedimentos cirúrgicos ou outras intervenções médicas.

A autonomia médica também permite ao profissional adaptar as diretrizes gerais de tratamento às particularidades de seus pacientes, oferecendo uma medicina personalizada e mais eficiente.

Além disso, a autonomia médica enfrenta desafios significativos no contexto atual, como as pressões econômicas e administrativas que podem tentar limitar as escolhas dos médicos com base em custos ou políticas institucionais.

Isso ressalta a importância de defender a autonomia médica como um valor não apenas para os profissionais de saúde, mas também para a sociedade, assegurando que as decisões médicas sejam sempre tomadas no melhor interesse dos pacientes.

Em resumo, a autonomia do médico é um elemento crítico para a prática médica responsável e ética, sendo vital para a promoção da saúde e do bem-estar dos pacientes.

Ela deve ser protegida e valorizada, garantindo que os médicos tenham a liberdade e a capacidade de fazer escolhas informadas e baseadas em evidências, livres de restrições não baseadas em critérios técnicos e éticos sólidos.

Conclusões
Para enfrentar os desafios impostos pelas operadoras de planos de saúde, é vital que médicos adotem uma postura firme e informada.

A prática abusiva dessas operadoras, incluindo negativas de cobertura e auditorias tendenciosas, ameaça a autonomia médica e a qualidade do atendimento ao paciente. É crucial a compreensão profunda das resoluções do CFM e da ANS para combater tais práticas.

A defesa jurídica ativa, apoiada por documentação detalhada e conhecimento atualizado das leis, juntamente com a formação de coletivos para negociação e litígio, são estratégias fundamentais.

A educação continuada fortalece os médicos na defesa de seus direitos e dos direitos dos pacientes, enquanto o engajamento na formulação de políticas de saúde pode influenciar legislações favoráveis.

A auditoria médica deve ser justa e transparente, respeitando os princípios éticos e técnicos. A autonomia médica, essencial para um atendimento de qualidade, deve ser defendida contra qualquer forma de interferência.

Portanto, a união e a mobilização dos profissionais da saúde, o empoderamento através do conhecimento, e a participação ativa na política de saúde são essenciais para enfrentar as operadoras e garantir um atendimento ético e de qualidade.

 


[1] Conselho Federal de Medicina. (2002). Resolução CFM nº 1.658/2002. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13152, acesso em 10/10/2024.

[2] Agência Nacional de Saúde Suplementar. (2017). Resolução Normativa – RN nº 424/2017. Recuperado de http://www.ans.gov.br/legislacao/normas_normativas, acesso em 10/10/2024.

[3] Conselho Federal de Medicina. (2002). Resolução CFM nº 1.658/2002. https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12156, acesso em 10/10/2024.

[4] [4] Agência Nacional de Saúde Suplementar. (2017). Resolução Normativa – RN nº 424/2017. Recuperado de http://www.ans.gov.br/legislacao/normas_normativas, acesso em 10/10/2024. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ans/2017/res0424_27_06_2017.html, acesso em 10/10/2024.

[5] Conselho Federal de Medicina. (2022). Resolução CFM Nº 2.318/2022. https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2318, acesso em 10/10/2024.

[6] Conselho Federal de Medicina. (2015). Resolução CFM nº 2.126/2015. https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2015/2126_2015.pdf, acesso em 10/10/2024.

[7] Conselho Federal de Medicina. (2009). Resolução CFM nº 1.931/2009. https://portal.cfm.org.br/etica-medica/codigo-2010/resolucao-cfm-no-1931-2009/ , acesso em 10/10/2024

Autores

  • é advogado em São Paulo, sócio de Castello de Campos & Gazarini Dutra Sociedade de Advogados, especializado em Direito à Saúde, graduado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), especialista em Direito Civil pela Fundação Getúlio Vargas / GVLaw e Especialista em Gestão e Controle Social de Políticas Públicas pela Escola de Gestão e Contas Públicas (EGC), vinculada ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP).

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