Opinião

Os oráculos nas audiências de conciliação na Justiça do Trabalho

Autor

  • Rogerio Neiva Pinheiro

    é juiz do Trabalho da 10ª Região foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST nas gestões 2016/2018 e 2018/2020 e juiz auxiliar da Presidência do CSJT na gestão 2020/2022. Autor do livro “Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista" mestre e doutor em Ciências do Comportamento pela Universidade de Brasília.

13 de fevereiro de 2024, 19h14

Muito já se avançou no Brasil na área da resolução adequada de disputas. Tivemos na Resolução 125 de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, um primeiro passo importante em termos normativos e formais, que foi sucedida pelo atual Código de Processo Civil e pela Lei 13.140/2015 [1]. Especificamente quanto aos conflitos trabalhistas, a cada dia vem se superando o modelo do passado que, amparado no velho artigo 765 da CLT [2], permitia praticamente um vale-tudo para a busca do acordo, geralmente pautado na típica negociação de barganha, e sem a necessidade de observância de qualquer diretriz ou limitação ética. Aliás, até a edição da Resolução 125/2010 do CNJ, sequer havia Código de Ética da conciliação e da mediação.

Também especificamente quanto ao tratamento dos conflitos trabalhistas, a Resolução 174/2016 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho teve papel fundamental para o avanço do tema [3].

Mas apesar de todos os avanços, ainda carece de evolução a utilização de ferramentas e metodologias de análise de risco do resultado de processos judiciais para avaliação e elaboração de propostas de acordo.

Partindo da premissa de que a decisão judicial conta com incerteza, por não estar sob controle das partes, trata-se de fenômeno que se sujeita ao risco, bem como à possibilidade de tentativa da sua gestão [4].

Gestão de risco e a formação do operador do Direito
Conforme tive a oportunidade de constatar na minha pesquisa de doutorado, não há como negar que muitas decisões tomadas nas salas de audiência na Justiça do Trabalho não decorrem de uma prévia análise de risco do resultado do processo [5], levando a resultados ineficientes. Apenas a título de ilustração, com base nos levantamentos sobre a amostra de processos que contaram com dados coletados, em 42% dos casos os reclamados tiveram prejuízo recusando a proposta dos reclamantes e seguindo para a sentença. Ou seja, teriam pagado menos se aceitassem a proposta de acordo apresentada pelo reclamante.

A verdade é que as construções e conhecimentos que dão suporte à gestão de risco não fazem parte da formação do profissional do Direito, o que pode ser uma das explicações para a falta de domínio do tema por parte daqueles que exercem a advocacia.

“Negociação baseada em números”
Com a intenção de contribuir para superar essa limitação, desenvolvi metodologia de análise de risco do resultado de processos a partir de abordagem interdisciplinar, mobilizando construções da resolução adequada de disputas, economia comportamental, psicologia e ciências das finanças. Os conceitos mobilizados para a construção da metodologia convergem para um modelo matemático que permite promover a análise de risco e leva à montagem da proposta de acordo.

Atribuí a essa metodologia o nome de “negociação baseada em números”, inspirado no primeiro dos seus três fundamentos [6], que explico a seguir.

Esse primeiro fundamento tem origem no que muitos denominam “Modelo de Harvard”. Trata-se da proposta apresentada ao mundo no clássico “Como Chegar ao Sim”, de autoria de Roger Fisher, Bruce Patton e William Ury [7].

No manual os autores sustentam a importância do modelo de negociação cooperativa, que se contrapõe ao modelo da negociação baseada na barganha, a qual envolve a velha lógica do “estica e puxa”, em que há uma verdadeira guerra psicológica em busca de concessões de lado a lado. E assim, para fugir da barganha, uma das alternativas consiste no que denominam “Negociação Baseada em Critérios”, que corresponde à ideia de discutir critérios objetivos que façam sentido para ambos os lados.

Por exemplo, numa reclamação trabalhista em que se discute horas extras e pagamento de salário sem registro, ao invés das partes ficarem promovendo o jogo da barganha em torno de valores, no qual o reclamante busca aumentar o valor objeto do acordo, enquanto o reclamado busca reduzir, poderiam, por exemplo, definir como parâmetro considerar a tese da petição inicial quanto ao horário de trabalho e a tese da contestação quanto ao valor do salário. Ou seja, o reclamante faria a sua concessão abrindo mão da alegação de salário sem registro, enquanto a reclamada abriria mão da sua alegação quanto ao horário de trabalho.

E assim, por um lado, o valor do acordo seria fruto da aplicação desse critério. Por outro lado, não haveria a guerra psicológica da barganha e do “estica e puxa” na mesa de negociação. Eis o que significa a negociação baseada em critérios.

Modelo para solução de conflitos
Inspirado nessa construção, desenvolvi o que denominei “negociação baseada em variáveis”, segundo a qual o debate sobre critérios ocorre no nível das variáveis. Trata-se de um detalhamento do que o Modelo de Harvard trata como critério. E logo a seguir isso ficará mais claro.

O segundo fundamento da metodologia “negociação baseada em números” consiste no que denominei “gestão de risco fragmentada”.

A primeira ideia consiste na noção de fragmentação. Ou seja, é preciso quebrar ou fragmentar a petição inicial, avaliando individualmente cada pedido. Isso seria a fragmentação.

Já a gestão de risco consiste em, após a fragmentação, adotar a ideia de prospecto [8] ou retorno esperado. Prospecto corresponde a uma quantidade para a qual se aplica uma probabilidade. Por exemplo, quando se diz que alguém pode ganhar R$ 1.000,00 com 50% de probabilidade, trata-se de um prospecto que vale R$ 500,00 (R$ 1.000,00 multiplicado por 50%).

Logo, a “gestão de risco fragmentada” significa aplicar a ideia de prospecto ou retorno esperado a cada pedido, separadamente. Por exemplo, se estamos diante de um pedido de horas extras, que liquidado corresponde a R$ 10.0000,00, com 50% de probabilidade de ser procedente, significa que estamos diante de um prospecto que vale R$ 5.000,00 (R$ 10.000,00 multiplicado por 50%).

Obviamente, o grande desafio é identificar o elemento probabilístico.

Porém, também desenvolvi uma solução que facilita essa atividade, a qual será exposta mais adiante.

O terceiro fundamento da metodologia envolve a importância da quantificação. Ou seja, se vamos trabalhar com a noção de prospecto, que pressupõe uma quantidade à qual se aplica uma probabilidade, é preciso que essa quantidade seja real. Isto é, se faz necessário que o valor considerado corresponda à realidade da própria causa de pedir.

E daí surge um problema dos dias atuais, especificamente quanto aos processos submetidos à Justiça do Trabalho.

Muitas petições iniciais não contam com a quantificação adequada. E a verdade é que a redação do artigo 840 da CLT dada pela Lei 13.467/2017 [9], que teve a intenção de mudar o referido cenário, não provocou mudanças. Talvez pela tese da Instrução Normativa 41/2018 do TST [10], que firmou o entendimento de que os valores seriam estimativas, somando-se à tese estabelecida nos Emb-RR-555-36.2021.5.09.0024, que entendeu que os valores indicados não limitavam a condenação.

Resumindo, o fato é que, na prática, não há necessidade de que os valores indicados na petição inicial sejam corretos (considerando os parâmetros da própria causa de pedir). E isso tende a incentivar a falta de preocupação e cuidado com a quantificação adequada.

Daí porque um dos fundamentos da metodologia proposta é a preocupação de que os valores considerados sejam corretos, isto é, compatíveis com a própria causa de pedir.

Aplicativo para ajudar a resolver as questões
Juntando todos esses fundamentos, desenvolvi um modelo matemático para estabelecimento da proposta de acordo, que corresponde à seguinte equação:

PA = (vcv1*PB1 + vcv2*PB2 + vcv3*PB3…) + CR – DA

Muita calma nessa hora! Pode parecer complicado, mas é muito mais simples do que se pode imaginar.

Vamos à compreensão do que significa cada elemento da equação:

– PA: proposta de acordo;

– (vcv1*PB1 + vcv2*PB2 + vcv3*PB3…): somatório do Valor da Condenação Vitoriosa quanto a cada pedido (VCV), multiplicada pela Probabilidade (PB) de vitória (também quanto a cada pedido). Por exemplo, se temos um pedido de horas extras que vale R$ 10.000,00 com 50% de probabilidade de êxito, e um pedido de indenização de R$ 5.000,00 com 20% de chance de êxito, teríamos R$ 5.000,00 de horas extras (R$ 10.000,00 x 50%), somado a R$ 1.000,00 de indenização (R$ 5.000,00 x 20%);

– CR: significa Custo do Reclamado. Corresponde ao valor que o reclamado gastaria com a manutenção do processo até o fim, caso não se chegue ao acordo. No caso, como o reclamado deixaria de ter essa despesa, passaria a ser somada ao valor do acordo. Isso pode envolver por exemplo honorários periciais e estimativa de juros;

– DA: significa Desconto do Autor. Corresponde ao valor subjetivo que representa para o reclamante a solução imediata e certa do processo. Esse valor passaria a ser subtraído, na medida em que seria o “preço pago” para não se sujeitar à solução pela via tradicional da sentença. No caso, caberia apurar o quanto vale para o reclamante, em termos subjetivos, resolver o processo sem se sujeitar à incerteza e à espera da sentença. Nessa variável também poderia entrar eventual custo financeiro do reclamante, o que ocorreria, por exemplo, se tivesse uma dívida com juros superior ao que receberia no processo.

Eis a proposta metodológica de análise de risco e elaboração de propostas de acordo!

Para facilitar a aplicação da metodologia, e principalmente a etapa da definição da probabilidade, criei aplicativo que funciona em smartphones, denominado “SCAPA — Sistema de Cálculo de Proposta de Acordo”. Ao final da inserção dos dados, é gerada uma proposta de acordo a partir da análise de risco.

O aplicativo é gratuito e pode ser baixado na Apple Store e Google Play (pesquise pelo nome “Sistema de Cálculo de Proposta de Acordo” para encontrar, e não por SCAPA).

Outro detalhe importante é que o aplicativo também conta com ferramenta de cálculos, o que garante a adequação do valor considerado quanto a cada pedido.

Por fim, não há qualquer pretensão de que a presente proposta metodológica seja considerada a solução perfeita para a promoção da análise de risco. Porém, não há dúvida de que é mais eficiente que o “achismo” que geralmente prevalece, que de alguma forma lembra as decisões tomadas com base nos oráculos [11], e, que infelizmente, deixa de trazer o resultado de um bom acordo, que é o ganho para ambas as partes.


[1] Fórum multiportas trabalhista e PL nº 4.894/2019 (19 de setembro de 2023) [https://www.conjur.com.br/2023-set-19/rogerio-neiva-forum-multiportas-trabalhista-pl-48942019/].

[2] CLT, “Art. 765  Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas.”

[3] 6 anos de avanços da resolução adequada de disputas na Justiça do Trabalho (23 de setembro de 2022) [https://www.conjur.com.br/2022-set-23/rogerio-neiva-resolucao-adequada-disputas-justica-trabalho/]

[4] DAMODARAN, Aswath. Gestão estratégica do risco: uma referência para a tomada de riscos empresarias. Porto Alegre: Bookman, 2009, p. 27.

[5] PINHEIRO, Rogerio Neiva. Comportamento de escolha em negociações voltadas à solução consensual de conflitos submetidos ao Sistema de Justiça no Brasil. Tese (Doutorado em Ciências do Comportamento) – Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Processos Psicológicos Básicos, 2022.

[6] PINHEIRO, Rogerio Neiva. Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista, 3ª. Ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 90.

[7] FISHER, Roger; PATTON, Bruce; URY, William. Como chegar ao sim: negociação de acordos sem concessões. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

[8] KAHNEMAN, Daniel ; TVERSKY, Amos. Prospect theory: analysis of decision under risk. Econométrica, Chicago, v. 47, n. 2, p. 263 − 291, 1979.

[9] CLT Art. 840, “§ 1º  Sendo escrita, a reclamação deverá conter a designação do juízo, a qualificação das partes, a breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante.”

[10] IN 41/2018 TST, art. 12. § 2º Para fim do que dispõe o art. 840, §§ 1º e 2º, da CLT, o valor da causa será estimado…”

[11] BERNSTEIN, Peter L. Desafio aos deuses: a fascinante história do risco. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018, p. 19.

Autores

  • é juiz do Trabalho, autor do livro “Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista” (4ª edição), Mestre e Doutor em Ciências do Comportamento (UnB), foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST, integrou a Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do CSJT e o Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!