Opinião

Por que a CLT não vale para análise de vínculo de trabalhador não hipossuficiente

Autor

  • Luiz Paulo Salomão

    é graduado na PUC de Campinas. Pós-graduando em Direito e Processo do trabalho pela mesma instituição. Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC-SP.

11 de janeiro de 2024, 18h26

O ano de 2023 foi marcado por um embate ferrenho entre decisões do TST e do STF.

Na maioria das vezes, o que se viu foi o Tribunal Superior do Trabalho reconhecendo fraudes em diversos formatos de trabalho e o Supremo Tribunal Federal revendo tais decisões para reconhecer a validade da relação jurídica. Vimos decisões sobre motoristas de aplicativos, médicos e engenheiros. O assunto foi a polêmica do ano para quem atua no direito do trabalho.

Nessa “guerra” de entendimentos, de um lado o TST, em uma perspectiva protecionista, reconhecia a existência de fraudes em relações de trabalho que fugiam do desenho previsto na CLT; de outro, o STF, em uma perspectiva muito mais voltada à autonomia da vontade, validava essas formas “alternativas” de trabalho.

Ainda que essa tenha sido a regra, uma decisão do TST mostrou que até para essa regra há uma exceção.

 Resumidamente, nesse caso bastante distinto, o pedido principal do reclamante era o reconhecimento de uma suposta fraude em uma prestação de serviços mantida por uma pessoa jurídica. O assunto era a famosa “pejotização”.

Aos leigos, a questão se resume ao seguinte contexto: uma pessoa prestou serviços por meio de uma PJ e alegava que teria trabalhado como um verdadeiro CLT. Alegava, resumidamente, que a empresa havia exigido esse formato para mascarar a relação empresa típica (CLT) com o objetivo de fraudar direitos trabalhistas.

Feito esse esclarecimento, vamos ao caso prático.

Resumidamente, ao julgar essa ação, que teve origem no Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo e era movida por um executivo com elevado grau de instrução, com subordinados e rendimentos próximos a R$ 50 mil, que havia obtido em sentença e acórdão o reconhecimento de suposta fraude, a 1ª Turma do TST reconheceu a validade da relação jurídica e afastou a suposta fraude.

A partir disso, já notamos que há uma distinção desse caso para a maior parte dos processos que envolvem o mesmo tema e que chegam ao TST.

Afinal, diferente do que se verifica usualmente em decisões sobre o tema, nesse processo, o TST afastou o reconhecimento da pejotização/fraude e reviu o vínculo de emprego, a partir do raciocínio de que ele “detinha autonomia de vontade, suficiência econômica e intelectual para escolher a modalidade contratual que lhe seria mais conveniente”.

Só isso já faz essa decisão relevante.

Afinal de contas, essa interpretação do TST reflete um posicionamento muito menos protetivo.

Além disso, a partir dessa interpretação, podemos observar um julgamento que deixa a presunção de contaminação da vontade do trabalhador de lado para analisar o caso a partir de nuances próprias da autonomia de vontade, suficiência econômica e capacidade intelectual para escolher a modalidade contratual mais conveniente.

Mas não é só isso que faz dessa decisão tão paradigmática.

O que chama a atenção nesse caso são as premissas que a 1ª Turma do TST adotou para reconhecer a validade da relação jurídica e afastar a decisão do TRT da 17ª Região, que havia mantido o entendimento de “pejotização” no aspecto de fraude da relação de emprego.

De forma sucinta, o TST rechaçou a fraude alegada com base no argumento de que a relação de emprego é a forma contratual estabelecida em lei para a proteção do trabalhador que não detém capacidade negocial plena e precisa da intervenção protetiva do Estado, e que isso não se aplicaria ao reclamante por sua capacidade de expressar sua vontade em razão de sua suficiência econômica e intelectual.

Nessa linha de raciocínio, a decisão chama a atenção pela relevância dada a três pontos:

  • O primeiro ponto que chama a atenção é a importância que a 1ª Turma do TST concedeu à boa-fé objetiva. Mais do que reconhecer a necessidade de analisar o caso a partir da boa-fé objetiva, como forma de adequada verificação do caso a partir da expressão de vontade das partes, a decisão é extremamente feliz ao utilizar esse conceito como “critério de aplicação das normas trabalhistas”;
  • O segundo ponto, que funciona de modo complementar ao primeiro, se relaciona ao reconhecimento de que quando a autonomia da vontade é manifesta a partir das condições do trabalhador, estaria afastada a possibilidade de se reconhecer a contaminação da capacidade negocial a partir da percepção de hipossuficiente da CLT
  • O terceiro ponto, por fim, é o raciocínio de que a CLT é destinada à proteção do hipossuficiente e economicamente dependente, situação que faz presumir uma contaminação na manifestação da vontade do trabalhador, justificando a incidência do princípio da primazia da realidade sobre a forma. O que o TST disse no caso é que, “afastadas as premissas de hipossuficiência, não faz sentido fazer valer as regras protetivas que diferenciam o vínculo de emprego de outras modalidades contratuais previstas na legislação comum”.

Como se observa, não se trata de uma mera decisão sobre “pejotização”, mas uma verdadeira virada de chave. Afinal, ainda que esse seja um caso verdadeiramente isolado, a partir da análise da linha decisória desse caso, é possível observar um deslocamento interpretativo muito importante, principalmente para os casos que envolvam trabalhadores que não sejam hipossuficientes.

Somando-se a isso, essa decisão reforça alguns aspectos que julgamos profundamente importantes para a análise de casos que envolvam trabalhadores com suficiência econômica e intelectual, que, sabidamente, buscam o reconhecimento de vínculo de emprego após o encerramento da prestação de serviços, extraindo, assim, o “melhor dos dois mundos”: durante a prestação do serviço, obtém isenções fiscais e, após, com o vínculo reconhecido, recebem verbas trabalhistas típicas.

Nesse sentido, vemos que essa decisão tem a oportunidade primária de fomentar o equilíbrio entre as partes na análise dos casos trabalhistas. Afinal, permite que os casos que envolvam trabalhadores com discernimento, a partir de suficiência econômica e intelectual, sejam analisados pela boa-fé objetiva e não por um aspecto de hipossuficiência do trabalhador. Fica afastada, assim, a presunção deliberada de “enganação” do trabalhador, ao mesmo tempo que se privilegia os princípios da boa fé-objetiva e do não benefício da própria torpeza (venire contra factum proprium).

Resumindo, extraímos os seguintes benefícios para o julgamento desses casos:

  1. Maior relevância da boa-fé objetiva como critério de aplicação das normas trabalhistas;
  2. Uma maior sobriedade quanto à capacidade negocial e autonomia da vontade, especialmente quando manifesta a partir das condições do trabalhador;
  3. O afastamento da possibilidade “prévia” e “presumida” de se reconhecer a contaminação da vontade do trabalhador, especialmente quando ele se mostra um trabalhador com elevado grau de instrução e capacidade econômica e intelectual “fora da média”;
  4. Uma melhora na aplicação do regramento insculpido na CLT, que, se por um lado, é melhor aplicado à proteção do hipossuficiente e economicamente dependente; por outro, é corretamente afastado quanto às regras protetivas não se fazem aplicáveis a partir da situação concreta de um trabalhador que não é hipossuficiente, tampouco economicamente dependente;
  5. Por fim, vemos como um último benefício o impedimento de julgamentos que possam gerar grave desiquilíbrio na relação jurídica contratual, beneficiando aquele que, na teoria, precisaria de proteção especial, mas na realidade tem ampla condição negocial e faz opções consentâneas com seus interesses.

Diferentemente do que se observa na maior parte das decisões trabalhistas, no caso, não observamos a presunção de vício na manifestação da vontade pelo trabalhador. Do mesmo modo, não se observa nessa importante decisão do TST a ideia de “imperatividade das regras trabalhistas” e/ou da impossibilidade de “renúncia de direitos trabalhistas” independentemente da condição intelectual ou econômica envolvida.

Na decisão em análise, vemos que o TST muda consideravelmente a rota usualmente trilhada pela Justiça do Trabalho em um aspecto que julgamos extremamente razoável.

Afinal, ao reconhecer a condição intelectual ou econômica como aspecto de liberdade e presunção de expressão de vontade, com o afastamento da presunção de vício “automático” na vontade do trabalhador, essa decisão afasta duas interpretações “viciadas” da Justiça do Trabalho, que, em nosso entendimento, não só são bastante criticáveis, mas igualmente geradoras de injustiças quase sempre milionárias.

A primeira é a de que os trabalhadores não poderiam, mesmo por livre e espontânea vontade do empregado, renunciar a direitos trabalhistas e/ou se vincular a determinadas atividades a partir de formas de relação que se estabelecem a partir de regramentos externos à CLT. A segunda é que, estando presentes os requisitos do vínculo de emprego, esse deve ser reconhecido, independentemente da vontade das partes contratantes, por se tratar de suposta “norma de ordem pública”.

Essas ideias além de ignorarem a diversidade das formas de contratação, ignoram também a própria vontade dos trabalhadores como seres com autonomia e vontade. Sob a bandeira da proteção, a ideia de reconhecimento de “vínculo” a todo custo e independente da vontade das partes, o que se tem é uma construção que desequilibra relações e permite que pessoas com ampla condição negocial sejam tratadas de forma diversa. A decisão do TST que inspira esse texto deixa claro que isso não é bem-vindo.

Mais do que isso, o que se nota a partir desse entendimento do TST é que não se trata de “retirar” direitos de determinados trabalhadores, tampouco fazer a CLT valer uns, em prejuízo de outros.

A questão é outra: quando se verificar que a autonomia da vontade é manifesta, deverá ser afastada a possibilidade de se reconhecer a contaminação da capacidade negocial, a partir do que deve prevalecer o princípio da boa-fé objetiva, disciplinada na parte geral do Código Civil.

A interpretação nos parece mais adequada ainda quando observamos a redação do artigo 422 do Código Civil, que prevê que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Afinal, é fundamental que se proteja a expectativa legítima das partes quanto à contratação estabelecida no início da relação jurídica.

Assim, valorar o caso envolvendo trabalhadores não hipossuficientes a partir da boa-fé objetiva de ambas as partes do contrato, considerando que a prestação de serviços entre pessoas jurídicas ou entre pessoas físicas e pessoas jurídicas pode assumir variadas formas contratuais válidas e também atender aos anseios profissionais e empresariais de ambos os contratantes, sem que necessariamente se esteja diante de vínculo de emprego, aparenta refletir a forma mais adequada de analisar esse tipo de situação.

Superados esses pontos e ordenando-se o raciocínio, o que se pode extrair de tal decisão é que:

  1. A CLT é destinada à proteção do hipossuficiente e economicamente dependente, situação que faz presumir uma contaminação na manifestação da vontade do trabalhador, justificando a incidência do princípio da primazia da realidade sobre a forma.
  2. Afastadas as premissas de hipossuficiência, o que entendemos que deve ocorrer a partir da análise de aspectos que indiquem suficiência intelectual e econômica, as regras protetivas que diferenciam o vínculo de emprego de outras modalidades contratuais previstas na legislação comum não devem valer, sob pena de provocar grave desiquilíbrio na relação jurídica contratual;
  3. Quando a autonomia da vontade é manifesta e está afastada a possibilidade de se reconhecer a contaminação da capacidade negocial, deve prevalecer o princípio da boa-fé objetiva, disciplinada no Código Civil;

Assim, em uma espécie de ementa, o que temos é que se o trabalhador não é hipossuficiente, a partir da verificação de condições de suficiência econômica e intelectual, extraídas do caso concreto, o princípio da proteção e as regras da CLT para análise de vínculo de emprego devem ser afastadas com a análise do caso a partir da boa-fé objetiva e intencionalidade do trabalhador (ânimo de contratar), já que a relação de emprego visa a proteger o trabalhador que não detém capacidade negocial plena. (TST-373-67.2017.5.17.0121, 1ª T., j. 8/2/2023).

Deste modo, para além dos requisitos do vínculo de emprego, mais do que nunca o conceito de intencionalidade se faz necessário para a adequada análise dos casos que envolvam trabalhadores não hipossuficientes. Afinal, a intencionalidade reflete, justamente, a própria intenção declarada de que a contratação se desenvolveria, condição que vem se transmutando fortemente no cenário atual.

Como ensina Amauri Mascaro Nascimento: “uma pessoa humana pode trabalhar movida por finalidades as mais diversas. O animus contrahendi, isto é, a intenção de prestar serviços sob a forma de emprego é outra característica da relação de emprego, não fundamentada na lei, mas na doutrina“.

A decisão do TST nos parece reconhecer esse ensinamento e apontar um caminho não só para decisões mais justas, mas também para um maior equilíbrio nas relações contratuais.

Autores

  • é advogado trabalhista, graduado na PUC de Campinas. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela mesma instituição. Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC-SP.

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