Opinião

Vínculo aplicativo-entregador: a preservação da autoridade das decisões do STF

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8 de fevereiro de 2024, 6h07

Encontra-se na pauta da 2ª sessão extraordinária do plenário do Supremo Tribunal Federal, prevista para esta quinta-feira (8/2), o julgamento da Reclamação Constitucional 64.018, interposta em face de decisão do TRT da 3ª Região, que reconheceu vínculo de emprego entre trabalhador que faz serviços de entrega e empresa que explora o ramo de delivery através de plataforma eletrônica (Processo 0010323-12.2020.5.03.0016).

A reclamação também alcança decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que negou seguimento ao agravo de instrumento interposto em face da decisão que inadmitiu o recurso de revista neste mesmo processo.

O ministro relator da reclamação decidiu, em sede de medida cautelar, que “a decisão reclamada, ao reconhecer vínculo de emprego entre o entregador e a plataforma, em um juízo de cognição sumária, parece desconsiderar as conclusões do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-RG), que permitem diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT”.

A matéria encontra-se indexada, no âmbito do STF, ao cumprimento da ODS 8, da agenda 2030, da ONU (promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos).

E podemos dizer que, efetivamente, do julgamento desta demanda depende a preservação da autoridade de centenas de julgados da corte constitucional afetos aos Direitos Humanos Sociais, notadamente no que diz respeito aos outros 551 processos tarjados com a ODS 8, pelo próprio STF, em seu painel de monitoramento do cumprimento da Agenda 2030.

Não é por acaso que a ODS 8 está sustentada na política do “pleno emprego”, e não de “pleno trabalho”. O contrato de emprego não representa uma mera alternativa contratual, perspectiva que ignoraria a própria história e teleologia do direito do trabalho, enquanto “sistema jurídico coordenado, (que) tem na relação empregatícia sua categoria básica, a partir da qual se constroem os princípios, regras e institutos essenciais desse ramo jurídico especializado” (Delgado, 2023, p. 47).

Como a relação de emprego representa a categoria básica do direito do trabalho, situação jurídica reconhecida na nossa ordem jurídica, com status de direito fundamental, no artigo 7º, I, da CF/1988, não é demais dizer que depende do julgamento da RC 64.018 a preservação, ou não, da autoridade da própria Constituição e de importantíssimas decisões do próprio Supremo afetas à promoção do trabalho decente.

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No ensejo de ilustrar o que isso representa, vale aqui rememorar alguns dos inúmeros julgamentos históricos da nossa corte constitucional, cuja efetividade supõe a preservação da centralidade da relação de emprego, enquanto relação jurídica básica, em torno da qual gravitam todas as normas de proteção ao trabalho humano.

Recentemente, em dezembro de 2023, o STF julgou procedente o pedido constante da ADO 20, fixando tese no sentido de que “existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade, prevista no artigo 7º, XIX, da Constituição”, pelo que ficou “estabelecido o prazo de 18 meses para o Congresso sanar a omissão apontada”.

Trata-se de importante julgamento afeto ao mundo do trabalho em sua interseccionalidade voltada à garantia da proteção integral à criança e ao adolescente (artigo 227, da CF/1988).

A decisão segue a esteira de outros importantes julgamentos do STF ligados à temática das licenças parentais e à garantia do convívio familiar, como a proferida, em 2022, nos autos da ADI 6327, na qual fora definido que “a fim de que seja protegida a maternidade e a infância e ampliada a convivência entre mães e bebês, em caso de internação hospitalar que supere o prazo de duas semanas, previsto no artigo 392, §2º, da CLT, e no artigo 93, §3º, do Decreto nº. 3.048/99, o termo inicial aplicável à fruição da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade deve ser o da alta hospitalar da mãe ou do recém-nascido, o que ocorrer por último, prorrogando-se ambos os benefícios por igual período ao da internação”.

Ocorre que, na medida em que as licenças parentais contam com sua principal matriz regulatória no âmbito da CLT (artigos 392 e 473, III), decidir pela facultatividade da verificação da relação de emprego representaria o próprio esvaziamento da autoridade de tais importantes decisões.

Sem relação celetista, políticas de proteção sucumbem
Se a relação celetista passar a representar uma mera “opção contratual”, na afirmação da tese, data vênia simplista e reducionista, no sentido de que existem “diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT”, o alicerce primário para a incidência das licenças parentais restaria rompido, relegando ao abandono crianças nascidas no seio de famílias sustentada por pais que não possuem mais do que uma bicicleta e uma caixa térmica para retirarem o sustento familiar.

Sem a relação de emprego e a incidência cogente da CLT, sucumbem importantes políticas voltadas à proteção à maternidade e à paternidade, em sentido convergente a diversas políticas de antidiscriminatórias, como as que dizem respeito à busca pela erradicação de:

  • a) distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho, em razão de estado de gravidez;
  • b) discriminações ou rescisões de contrato de trabalho associadas ao estado de gravidez;
  • c) violações ao direito à estabilidade gestante;
  • d) violações ao direito à licença-maternidade;
  • e) violações ao direito à licença-paternidade;
  • f) violações ao direito ao meio ambiente e ao horário de trabalho adequados ao atendimento à condição pessoal da gestante;
  • g) violações ao direito aos intervalos de jornada de trabalho para amamentação;
  • h) violações ao dever de disponibilização de local apropriado à guarda dos filhos, no período da amamentação, por parte das empresas a tanto obrigadas;
  • i) violações aos deveres patronais associados ao pagamento de salário-maternidade e salário-família.

Ainda sob a perspectiva do retrocesso na doutrina da proteção integral (artigo 227, da CF/1988), encontra-se dependente do julgamento da RC 64018 a preservação da autoridade da ADI 2.096, através da qual o STF veio a decidir que a Constituição de 1988, em convergência com os compromissos firmados pelo Brasil no âmbito internacional (Convenção sobre o Direito da Criança, Convenção OIT nº 138, Convenção OIT nº 182 e a meta 8.7 da Agenda 2030), consagrou a abolição da exploração do trabalho infantil de caráter estritamente econômico e a elevação progressiva da idade mínima de admissão para o trabalho e o emprego, enquanto direitos fundamentais.

Os mecanismos de inserção dos jovens no mundo do trabalho adequados à preservação dos seus direitos fundamentais encontram-se extensamente regulamentados nos artigos 424 a 441 da CLT. Decidir que a mediação do trabalho por empresas que exploram serviço digital seria incompatível com a relação de emprego ampliaria a possibilidade de exploração do trabalho infantil plataformizado.

E a mesma lógica de esvaziamento da teleologia de decisões do próprio Supremo se aplica a inúmeras outras políticas de preservação de direitos fundamentais, como as que dizem respeito à erradicação do trabalho escravo, à preservação da saúde e segurança no meio ambiente do trabalho, etc.

Portanto, muito mais do que suposta lesão à autoridade dos julgados expressamente referidos na decisão interlocutória que afetou o julgamento da reclamação constitucional a plenário (ADC 48, ADPF 324, RE 958.252, ADI 5835 e RE 688.223), deste julgamento depende a preservação do próprio caráter indisponível dos direitos fundamentais, bem como a autoridade de centenas de julgados do Supremo Tribunal Federal pertinentes à afirmação da dignidade da pessoa humana.

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