Opinião

Congresso x STF: constitucionalismo x democracia?

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9 de fevereiro de 2024, 19h32

Em mais um capítulo da tensão entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal, a Casa Alta aprovou no final do último ano legislativo uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 8/21) que, primordialmente, busca limitar a concessão de cautelares monocráticas que tenham por objeto suspender a eficácia de leis (e de atos normativos das presidências dos poderes Executivo e Legislativo).

O presente texto pretende fazer uma breve contextualização dessa fricção doméstica, que em boa medida reproduz fenômeno encontradiço atualmente também em outras nações. E que, embora poucos queiram enxergar, tem potencial para adubar ainda mais o terreno do neofascismo e reforçar o desgaste ao Estado democrático de direito.

É fato que o novo constitucionalismo,[1] em sua dimensão política, veio ganhando força mundial ao longo das últimas décadas. E com ainda maior vigor em seu aspecto jurídico, especialmente em razão da expansão da jurisdição constitucional, sob o embalo da priorização dos direitos fundamentais. É o que se extrai das mais diversas ordens jurídicas encontradas nos países democráticos, mantidas desde o pós-guerra em simbiose e sob a atuação indutora dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, estes servindo àquelas como fontes supranacionais de direito.

Os principais aspectos relacionados ao constitucionalismo contemporâneo são assim resumidos por Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, na linha de outros manuais:

[…] o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.[2]

Naturalmente, como corolário desse processo, a atuação dos juízes e tribunais vem assumindo, na formação estatal contemporânea, um papel mais ativo, deixando de ser o mais subalterno dos poderes, como historicamente sempre foi. Daí a necessidade de “explicar a ampliação das funções da justiça, praticamente inevitável, porém perigosa do ponto de vista normativo”.[3]

Ativismo judicial e criminalização da política
Não são poucos os que, com efeito, enxergam no chamado protagonismo judicial hodierno a usurpação de tarefas próprias ao Legislativo. O órgão judicial — dizem esses críticos —, ao agir como intérprete livre da ordem constitucional, pode vir a criar o direito, invadindo ilegitimamente (e sem mandato popular) esfera própria ao Poder Legislativo.[4] Para destrinchar o tensionamento óbvio entre esses poderes, não raramente se desconsidera outra obviedade: o direito, mesmo os estudantes secundaristas já o sabem, não se abebera apenas das fontes normativas primárias, tampouco nelas se exaure, sendo fruto também das construções judiciais, doutrina, costumes etc.

Estudiosos advertem que desse criacionismo — ou ativismo judicial — derivaria parte dos reclamados excessos e abusos judiciais, inclusive os vivenciados nesta quadra em nosso País. Vicissitudes que, dentre outros campos de incidência, desbordariam inclusive na chamada “criminalização da política”. E não se lhes pode retirar a razão, basta lembrar dos espasmos lavajatistas da vida…

No embate entre Senado e STF, até Poliana o sabe, o que há, de fato, é uma trivial disputa de poder. E que, a depender da condução, pode levar ao suicídio de ambos.

Para usar Habermas: a “crítica à jurisdição constitucional é conduzida quase sempre em relação à distribuição de competências entre legislador democrático e justiça; e, nesta medida, ela é sempre uma disputa pelo princípio da divisão de poderes”.[5]

Klaus Günther, com razão, destaca o óbvio: o descobrimento ou a busca por normas implícitas pelo juiz não deve derivar nem de arbitrariedade nem de uma “intenção legislativa usurpadora”.[6]

Jeremy Waldron, tendo por foco a nação paradigmática global, também ilustra o preconceito judicial como fonte de tensão entre os poderes:

[…] nossa jurisprudência está repleta de imagens que apresentam a atividade legislativa comum como negociata, troca de favores, manobras de assistência mútua, intriga por interesses e procedimentos eleitoreiros – na verdade, como qualquer coisa, menos decisão política com princípios. […] Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à ideia de revisão judicial […] e ao silêncio de que, de outra maneira, seria o nosso embaraço quanto às dificuldades democráticas ou “contramajoritárias” que, às vezes, pensamos que a revisão judicial implica.[7]

Ou seja, segundo a principal vertente crítica ao criacionismo judicial, a partir da satanização e do enfraquecimento do Estado-Político, reverte-se ilegitimamente a gangorra do poder, beatificando-se e fortalecendo-se o Estado-Jurídico, de natureza (supostamente) técnica, portanto (supostamente) menos infenso às “impurezas” do meio político-partidário.

O descrédito crescente em relação ao front político, não raro com o aval e o estímulo midiático, exacerba o discurso legitimador da ilimitada judicialização da política e da satanização dos políticos de ofício.

Nessa linha, “o sucesso da justiça” — anota Antoine Garapon — “é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e pela perda do espírito público”[8].

Para o jurista francês, a judicialização do discurso político não encontraria limites, já que o fracasso do Estado provedor ambienta a progressão da justiça a ponto de autorizar “a transposição de todas as reivindicações e de todos os problemas perante uma jurisdição em termos jurídicos”.[9] Em sua visão, o espaço simbólico da democracia transfere-se paulatinamente do Estado-Político para o Estado-Jurídico.[10]

Esse tipo de lógica tem se mostrado incompleta e desfocada, para dizer o mínimo.

O silogismo é falso. Parte de uma cristalizada premissa civilizatória, própria ao Estado democrático de direito, como se fosse inquebrantável. Simplesmente desconsidera uma variável sinistra, sempre à espreita: o fantasma da tirania, a chaga do fascismo.

Não se pode esquecer que, mesmo nos regimes totalitários modernos, é mantida a tripartição de poderes, ainda que de “fachada”, embora de fato assentados na supremacia do Executivo.

Descrédito da política e do Judiciário
A demonização da política não vem propiciando a canonização da Justiça. Não na era da pós-verdade. Aos olhos de grande parte da população, ambos os setores públicos submergem em descrédito, conforme atestam inúmeras pesquisas sobre a confiança da população nas instituições.

O que poucos querem ver é que o mundo mudou e muito rapidamente.

Aquele ambiente de política civilizada, propício a ajustes pontuais para aparar arestas entre poderes, já não existe mais. O conforto da retórica das obviedades utópicas não dá conta de sobreviver numa atmosfera em que há risco concreto à sobrevivência da democracia.

Ainda assim, despende-se mais energia em estudar formas de aplainar imperfeições pontuais do sistema democrático do que de cuidar de sua própria sobrevivência em face da ameaça neofascista.

Os antidemocratas estão infiltrados nas instituições democráticas como há muito tempo não se via.

Nos desforços periféricos de “aperfeiçoamento democrático” corre-se o risco de permitir que sejam inoculados ainda mais componentes corrosivos ao Estado democrático de direito.

A desmoralização ou demonização dos poderes democráticos está alimentando o neofascismo e o seu demagógico discurso “antipolítica”. E que instrumentaliza a idiotia das redes sociais.

Novas lideranças travestidas de antipolíticas, mas sedentas de poder político, pregam práticas fascistas, discriminatórias, intolerantes, odientas, em ritmo acelerado de desconstrução dos pilares democráticos. Fazem-no sem qualquer responsabilização.

E o campo democrático segue ocupado com a discussão posta em termos de tensão, de contraposição entre os poderes.

Quando o mais inteligente seria a concentração de esforços para garantir a coexistência e complementariedade das instituições detentoras do poder soberano estatal. Seu papel de, ombreadas, lutar pela preservação da democracia e dos interesses maiores da sociedade. Poder soberano estatal, aliás, que é essencialmente uno: a tripartição é meramente funcional, para eficiência de seu exercício. O estabelecimento de mecanismos internos de freios e contenção se dá, antes de tudo, para garantia do cidadão, e não dos próprios órgãos de poder.

O oba-oba da hora, essa tensão parlamento/judiciário, acaba não sendo mais um simples capítulo da boa e velha batalha por poder. Apenas aparenta ser. Ela disfarça, na verdade, um avanço coletivo ao abismo, alheia ao estado de fragilização que acomete a democracia brasileira. Um jogo de perde-perde.

No esforço de delimitação entre o essencial e o orbital, não se pode esquecer que a jurisdição constitucional atribuída pela Constituição ao órgão da cúpula judiciária se mostrou vital para evitar um golpe definitivo à democracia nesta última quadra.

De outro lado, a formação parlamentar vertente, prenhe de antidemocratas infiltrados, parece ter optado pela sanha da cogestão orçamentária, longe de se legitimar, ao menos por ora, ao papel de guardiã-mor constitucional.

A conclusão é que o pressuposto para se desenhar algum realinhamento entre parlamento e Corte Suprema, para fins da guarda e validação do ordenamento constitucional, não se faz presente no atual momento político.

Antes de tudo, é necessário garantir a sobrevivência do próprio Estado democrático de direito, ainda convalescente, com feridas profundas. A partir de então, e só então, pode-se caminhar para esse tipo de debate, que, para ser legítimo, deve ser em muito ampliado, franqueando o efetivo ingresso de todos os destinatários. No caso, toda a sociedade.

Infelizmente parece que, ao mote de aperfeiçoar o modelo tripartite de poder, seguimos patinando em diversionismo irrefletido. E de portas abertas para o capeta.

 


[1] Para os objetivos da presente passagem, enfatiza-se como traço marcante do constitucionalismo seu objetivo de garantia dos direitos humanos em face do poder estatal. Ou seja, o constitucionalismo visto sob o aspecto de conferir “a juízes não eleitos o poder de contestar as decisões dos poderes executivo ou legislativo designados democraticamente, a partir do momento em que elas violam, a seus olhos, os direitos do homem assegurados pela Constituição” (DWORKIN, Ronald. A democracia e os direitos do homem. In.: Robert Darton; Olivier Duhamel (Orgs.). Democracia. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 156).

[2] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, mar./abr./maio, 2007. p. 11. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 22.12.2009.

[3] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro, 2003. Vol. I. p. 300.

[4] Os críticos do criacionismo judicial advertem que, ao “gerar direito” no caso concreto para regular fato passado, a atuação do órgão judicial pode surpreender as partes litigantes, revelando consequências jurídicas e obrigacionais que não lhes eram possíveis supor ao tempo dos fatos e de suas condutas, de modo a incrementar a insegurança jurídica, havida por excessiva em nosso País.

[5] HABERMAS, Jürgen. Ibidem, p. 298.

[6] GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004. p. 410.

[7] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.2.

[8] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 48.

[9] Ibidem, p. 47.

[10] Ocorre que além da questão teórica acerca da legitimidade ou não dessa transferência de poder do Estado-Político para o Estado-Jurídico emerge a necessidade de uma análise empírica: estaria o Judiciário (ao embalo desse crédito e desse novo espaço) promovendo em seu ativismo, de modo preponderante, as políticas e diretrizes sociais próprias ao “aperfeiçoamento” da democracia e ao bem comum buscados no ideal constitucional, ou estaria, também, em boa medida, utilizando-se de seu ampliado espaço de atuação como instrumento de conservação e de aprofundamento das iniquidades e desigualdades sociais?

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