Opinião

Quando a onda de choque da guerra em Gaza se estende ao Mar Vermelho

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6 de fevereiro de 2024, 17h23

Na noite de 11 para 12 de janeiro, os Estados Unidos e o Reino Unido bombardearam conjuntamente bases militares localizadas no Iêmen e controladas pelos houthis, um grupo rebelde que opera no Golfo de Áden e que afirma apoiar a causa palestina.

Estes bombardeios, renovados em 19 de janeiro pelos EUA, surgiram em resposta aos repetidos ataques dos houthis desde 19 de novembro de 2023 contra navios mercantes e comerciais em trânsito no Mar Vermelho, um eixo crucial de navegação para o comércio internacional, e após a adoção de uma resolução pelo conselho de segurança exigindo que os houthis pusessem imediatamente termo aos seus ataques.

Ataques dos houthis a navios justificados pelo apoio aos habitantes de Gaza
Os houthis, cujo nome faz referência a uma tribo iemenita que tem como líder espiritual muçulmano Badreddine al-Houthi, estão ativos no norte do país desde meados da década de 1990.

Inicialmente pacífico e motivado por reivindicações socioeconômicas, o movimento tornou-se um grupo armado no final da década de 1990, com o objetivo de se opor ao governo no poder.

Embora os houthis, apoiados pelo Irã, tenham tomado o controle de uma grande parte do país desde 2014, a coligação militar criada pela Arábia Saudita em 2015, composta por cerca de 15 países (incluindo o Egito e os Emirados Árabes Unidos), não permitiu o regresso ao poder do presidente Abdrabbo Mansour Hadi, atualmente exilado em território saudita, nem evitou que o conflito se arrastasse, provocando uma grave crise humanitária.

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O ataque a navios ligados a Israel, até que toda a ajuda humanitária necessária entre na Faixa de Gaza, foi reivindicado pelos houthis como um gesto de solidariedade para com os palestinos na guerra travada pelo Estado judeu contra o Hamas na sequência do ataque sofrido no seu território no passado dia 7 de outubro, que lhe vale ser hoje acusado de genocídio pela África do Sul perante o Tribunal Internacional de Justiça.

Este grupo armado faz parte do “Eixo da  Resistência“, uma aliança político-militar não oficial entre o Irã, a Síria e várias milícias que partilham uma hostilidade comum contra Israel, bem como os Estados Unidos. Como tal, o movimento dos houthis começou a receber apoio militar do Irã em 2015, sendo este apoio um meio para os iranianos enfraquecerem os sauditas a baixo custo.

Mais fundamentalmente, para os houthis, estes ataques são também, e sobretudo, uma forma de aproveitar a cobertura mediática da guerra em Gaza para trazer a guerra no Iémen de novo para o primeiro plano da cena internacional, uma vez que o país tem estado envolvido num delicado processo de saída da crise nos últimos dois anos.

Para combater os ataques dos houthis e garantir a segurança do tráfego marítimo no Mar Vermelho, em 18 de dezembro, os Estados Unidos lançaram a operação Prosperity Guardian (Guardiões da prosperidade), à qual rapidamente se juntaram o Reino Unido e, em menor escala, outros países, como o Bahrein, a Noruega, a Dinamarca e os Países Baixos.

Graças às patrulhas conjuntas de navios militares, a operação consiste em manter a liberdade de navegação e garantir a segurança dos navios que transitam por esta rota, tendo como alvo plataformas de lançamento de drones, depósitos de munições e até locais de fabrico de armas.

Os riscos são elevados, uma vez que cerca de 12% do frete marítimo mundial e 40% do comércio da Ásia com a Europa transitam por esta rota que separa a Península Arábica do continente africano. No entanto, desde meados de novembro de 2023, o número de navios porta-contentores diminuiu quase 70%, com muitos armadores a preferirem uma rota alternativa mais longa em torno do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, enquanto os prêmios de seguro explodiram para aqueles que decidem continuar a utilizar o Canal de Suez.

Ataques americano-britânicos no Iémen justificados pela legítima defesa
Os ataques americanos-britânicos no Iêmen surgiram após a adoção, em 10 de janeiro, da Resolução 2722 (2024) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com 11 votos a favor, nenhum voto contra e quatro abstenções (Argélia, China, Moçambique, Rússia).

Nesta primeira resolução do ano de 2024, o Conselho de Segurança condena veementemente os assaltos dos houthis contra navios mercantes e comerciais desde 19 de novembro de 2023, data do ataque e da captura do cargueiro Galaxy Leader, fretado por uma empresa japonesa, bem como da sua tripulação (§1).

Ao mesmo tempo que exige que os houthis “acabem imediatamente com estes ataques, que dificultam o comércio mundial e minam os direitos e liberdades de navegação, bem como a paz e a segurança da região, e que libertem imediatamente o Galaxy Leader e a sua tripulação” (§2), o Conselho de Segurança condena o fornecimento de armas aos houthis, em violação da sua Resolução 2216 (2015) (§5) e apela à “à cautela e à contenção, a fim de evitar uma nova deterioração da situação no Mar Vermelho e na região” (§9).

Reconhece igualmente que “o exercício dos direitos e liberdades de navegação pelos navios mercantes e comerciais deve ser respeitado, em conformidade com o direito internacional, e toma nota do direito dos Estados-Membros, em conformidade com o direito internacional, de defenderem os seus navios contra ataques, incluindo os que infringem os direitos e liberdades de navegação” (§3).

Na reunião do Conselho de Segurança de 12 de janeiro, tanto os Estados Unidos como o Reino Unido justificaram a sua ação com base na legítima defesa, uma exceção à proibição do uso da força armada consagrada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas.

Perante os ataques ilegais e injustificados cometidos pelo grupo dos houthis no Mar Vermelho, os dois Estados argumentaram que tinham tomado “medidas de autodefesa necessárias, proporcionadas e conformes ao direito internacional”, a fim de preservar a liberdade de navegação e de comércio, os Estados Unidos declarando ainda que os ataques direcionados contra instalações militares sob o controlo dos houthis tinham sido realizados de forma a minimizar qualquer impacto na população civil iemenita.

O delegado da Federação Russa, porém, afirmou que: “a liberdade de navegação, regida pela Convenção sobre o Direito do Mar [de 1982], não prevê o ataque a um Estado-Membro sob o pretexto de legítima defesa”, denunciando a interpretação arbitrária do direito internacional feita pelos Estados Unidos e seus aliados.

A este respeito, embora o artigo 51 da Carta das Nações Unidas tenha sido concebido segundo um esquema clássico que coloca frente a frente Estados, pode ser entendido como abrangendo qualquer entidade capaz de cometer um ataque armado, mesmo que o Estado onde se encontra a sua base territorial não seja de modo algum cúmplice.

Tratando-se de um grupo armado que ataca navios mercantes e comerciais em águas internacionais, uma intervenção militar por parte de Estados contra este grupo armado baseado no território iemenita só seria possível na condição, como salientou o delegado da Suíça, de se limitar “stricto sensu às medidas militares destinadas a interceptar ataques contra navios mercantes e navios de guerra, a fim de proteger os referidos navios e as pessoas a bordo”.

Assim sendo, “qualquer operação militar para além da necessidade imediata de proteger os referidos navios e pessoas seria desproporcionada” e, por conseguinte, não seria abrangida pelo parágrafo 3 da Resolução 2722 (2024).

Atendendo à situação de tensão que persiste na região, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, apelou a todos os Estados-Membros que defendem os seus navios contra ataques para que respeitem o direito internacional, instando também as partes envolvidas a evitarem uma escalada no interesse da paz mundial.

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