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Aplicação da teoria da perda de uma chance probatória: entre o inquérito e a denúncia

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6 de fevereiro de 2024, 10h14

Na clássica obra “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, romance ambientado em um mosteiro medieval, o monge Willian de Baskerville, acompanhado de seu aprendiz Adso, é encarregado de investigar uma série de misteriosos assassinatos.

Em busca de desvendar “a verdade” por trás dos crimes, enfrentando diversos desafios e descobrindo pistas ocultas, Willian de Baskerville se transforma num detetive hábil que usa a lógica de Aristóteles, a teologia de Tomás de Aquino, os insights empíricos de Roger Bacon — mesmo em pleno século 14, época regada a superstições e disputas de poder dentro do clero.

A narrativa ocorre em período significativo da história, marcado pela evolução do pensamento da era medieval para o modo de raciocínio renascentista.

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

Nesse contexto, Willian de Baskerville encarna o humanismo, a lógica, as inovações intelectuais, a apreciação da ciência e a centralidade do ser humano. Enquanto isso, os demais personagens religiosos representam as concepções obsoletas e místicas que predominaram na Europa ao longo da Idade Média, paradoxalmente atuais no Processo Penal brasileiro.

A história de “O Nome da Rosa” demonstra a importância de não se ater apenas às evidências que se apresentam à primeira vista (prima facie), escrutinando a compreensão mais profunda da sequência de fatos do evento.

A investigação baseada em evidências, na lógica e no pensamento racional de Baskerville também deve ser observada no âmbito das investigações criminais e no momento de formação da opinio delicti do Ministério Público.

Princípio da presunção de inocência
No processo penal, a acusação não deve se limitar a buscar provas que sustentam apenas a sua (hipó)tese, mas também aquelas que possam exonerar o investigado da culpa, valorizando o princípio da presunção de inocência e evitando aventuras processuais com a avaliação de todas as chances probatórias.

Enfim, a função da Investigação Preliminar é a de apurar as circunstâncias do evento e não as que “incriminam alguém” (viés exclusivamente acusatório). Mas o cachimbo deixa a boca torta (vieses cognitivos e motivacionais).

Fala-se em examinar todas as chances probatórias para a formação da opinio delicti, porque o princípio da presunção de inocência impõe não apenas uma regra de julgamento. Antes, a presunção de inocência pressupõe uma regra de tratamento e uma regra probatória.

Esse dever de completude probatória, objetividade e imparcialidade reflete a essência da teoria da perda de uma chance probatória no âmbito do processo penal já na fase da investigação, possibilitando que todas as chances probatórias estejam à disposição do investigado para provar sua versão dos fatos e ao Ministério Público para formar convicção para o oferecimento da denúncia, sob pena de ausência de justa causa.

Trata-se de mitigar os riscos associados à ocorrência de erros (falsos negativos ou falsos positivos).

Perda de uma chance
Com origem de aplicação no âmbito da responsabilidade civil, a problemática nesse ramo do direito pela perda de uma chance foi objeto de estudo do professor italiano Giovanni Pacchioni, que analisou alguns casos clássicos da doutrina francesa indagando o que aconteceria naqueles casos em que alguém, mediante conduta culposa, privasse outrem da possibilidade de obter resultado diverso.

Assim, a teoria de perda de uma chance traduz a perda da possibilidade de buscar posição jurídica mais vantajosa que muito provavelmente alcançaria se não fosse determinado ato praticado.

No Brasil, além da produção civilista , um dos subscritores, em conjunto com Fernanda Mambrini, escreveu texto sobre o tema, acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do AREsp. 1.940.381, relatado pelo ministro Ribeiro Dantas e, mais recentemente, pelo ministro Teodoro Silva Santos no julgamento do Habeas Corpus 829.723.

No processo penal, a omissão na busca de provas cruciais pode levar a conclusões errôneas e injustas, afetando drasticamente o destino do acusado.

Portanto, a história de “O Nome da Rosa” serve como um lembrete para que a responsabilidade e o zelo, necessários nas investigações criminais, ecoem os princípios fundamentais que regem o processo penal e a busca pela justiça, máxime porque a vida real não deve ser confundida com a ficção.

Ônus da prova
No processo penal, o ônus da prova recai sobre a acusação, sendo um princípio basilar que sustenta a presunção de inocência, a lógica e a democracia. Quem acusa pretende alterar o estado inicial de inocente para culpado e, portanto, assume o ônus argumentativo em sua total extensão, sem a possibilidade racional de transferir tal ônus à defesa.

Deve-se ter em mente que o processo em si já é pena (pena simbólica de estar na condição de réu, como diz Aury Lopes Jr). Assim a teoria da perda de uma chance probatória no contexto do processo penal brasileiro merece aplicabilidade não somente na prolação da sentença, mas também durante as fases preliminares do inquérito e do oferecimento da denúncia.

Essa teoria emerge como instrumento de relevância crescente na salvaguarda dos direitos e garantias do investigado, tendo como base, pelo menos, três pressupostos fundamentais: (1) o ônus da prova, incumbido à acusação; (2) dever de objetividade do Ministério Público; e, (3) exercício da atividade investigatória em conformidade com o interesse público de punir culpados, evitando a acusações maliciosas, levianas ou enviesadas.

Objetividade e conformidade
A objetividade e a conformidade implicam na obrigatoriedade de investigar e apresentar provas tanto a favor quanto contra o arguído, garantindo assim um julgamento justo e imparcial.

Vale lembrar que o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, que prevê no seu artigo 54, item 1, alínea “a”, que “A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.”

É inválida a referência ao Estatuto de Roma como “enfeite/adereço”, levando-se a sério a diretriz objetiva quanto aos deveres do agente investigador.

A falha do Ministério Público em não apresentar ou requerer provas que poderiam beneficiar o investigado, conduz à ausência de justa causa pela perda de uma chance probatória, pois não forma certeza a respeito de indícios de autoria e materialidade, inviabilizando o dever de accountability vertical da intervenção penal.

Esse estado de coisas é especialmente crítico quando o Ministério Público desiste ou negligencia quanto a provas acessíveis, viáveis e factíveis, potencialmente exculpatórias.

Mundo híbrido
Por exemplo, no contexto cada vez mais híbrido (analógico e digital), como aponta Luciano Floridi, configura perda de uma chance probatória a aquisição das câmeras de segurança do local do evento penal, das cercanias e das vias públicas, dos sensores ambientais, dos registros do smartphone nas ERBs, além dos múltiplos metadados disponíveis.

No mundo híbrido, provido de sensores por todos os cantos, a omissão dos agentes estatais na aquisição de “todas” as provas possíveis, razoáveis, disponíveis, sem risco pessoal, configura perda de uma chance probatória.

Em julgamento na 3ª Turma Recursal do TJ-SC [ApCrim 5001214-55.2020.8.24.0014, juiz Alexandre Morais da Rosa, decidiu-se:

“CRIMINAL. AMEAÇA. ART. 147 DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DEFENSIVO. PRELIMINAR DE CABIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL. NEGATIVA ANTECEDENTE DO BENEFÍCIO. INÉRCIA DA PARTE. AUSÊNCIA DE IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS. AUTOVINCULAÇÃO DA DEFESA AO COMPORTAMENTO PROCEDIMENTAL OMISSIVO. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE BOA-FÉ OBJETIVA, LEALDADE E DE COOPERAÇÃO PROCEDIMENTAL. DO CONTRÁRIO, PREVALECERIA A “NULIDADE DE ALGIBEIRA” OU A “GUARDADA NA MANGA”. ARGUMENTO REJEITADO. O PROCEDIMENTO CRIMINAL SE DÁ POR ETAPAS. EXAURIDA A ETAPA DA JUSTIÇA NEGOCIAL, COM A NEGATIVA DO BENEFÍCIO, A INÉRCIA VINCULA A DEFESA. MÉRITO. A PROVA JUDICIAL É A PRODUZIDA EM CONTRADITÓRIO, COM A GARANTIA DE HIPÓTESE ACUSATÓRIA ESTABELECIDA, IMEDIAÇÃO, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. VERSÃO DA VÍTIMA INCOERENTE COM O DEPOIMENTO DA ÚNICA TESTEMUNHA OUVIDA EM JUÍZO. NEGATIVA DO ACUSADO. CONTEXTO DOS AUTOS ENVOLVENDO PRÉVIA DIVERGÊNCIA ENTRE PRIMOS. GRAVAÇÃO DAS CÂMERAS DE SEGURANÇA NÃO ADQUIRIDAS PELA AUTORIDADE POLICIAL QUANDO DO REGISTRO DA OCORRÊNCIA. TENTATIVA DO ACUSADO DE OBTER AS CÂMERAS INEXITOSA. CONFIGURAÇÃO DA PERDA DE UMA CHANCE PROBATÓRIA POR PARTE DO ESTADO. ÔNUS DA PROVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE SUPERAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO (0,9). INCOERÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA O FIM DE ABSOLVER O ACUSADO, NOS TERMOS DO ART. 386, VII, DO CPP. “Tese nº 2: “Quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes”. (STJ, AgREsp 1.940.381, Min. Ribeiro Dantas)”

A teoria da perda de uma chance probatória constitui mecanismo democrático e essencial à integridade e conformidade do processo penal, assegurando que todos os aspectos sejam considerados desde a fase do inquérito até a sentença.

A sua plena aplicação é fundamental à garantia do processo justo e equitativo, reafirmando os princípios de presunção de inocência e do ônus da prova. Destaca-se a importância da atuação objetiva e diligente por parte do Ministério Público e das autoridades policiais, assegurando que nenhuma prova relevante seja negligenciada ou descartada, em respeito aos direitos fundamentais do arguido e à apuração dos fatos em conformidade com o Devido Processo Legal.

A lógica medieval é estranha ao contexto híbrido atual. Em síntese, a prova possível, viável e relevante, não adquirida por negligência, imperícia ou omissão dos agentes estatais, deve ser considerada em favor da defesa quando da valoração do conjunto probatório.

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