Opinião

Resolução e recomendação não são intercambiáveis: análise do ato que instaurou o NatJus

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2 de fevereiro de 2024, 17h15

Todos sabemos que o Conselho Nacional de Justiça edita atos normativos visando ao melhor desenvolvimento das atividades do Poder Judiciário. Um dos aspectos que causa preocupação e também merece atenção é a escolha da via normativa para a veiculação desses atos.

Deve-se assinalar que não se trata de uma mera questão de nomenclatura — resolução ou recomendação —, mas sim de definição dos respectivos conteúdos normativos, já que na linguagem jurídica esses dois termos não guardam entre si relação de identidade e nem são intercambiáveis (artigo 102 do Regimento Interno do CNJ).

Resolução 479/2022-CNJ
Refiro-me especificamente à edição, pelo CNJ, de normativo instaurador do chamado Sistema NatJus — a Resolução 479/2022-CNJ —, que implementou uma espécie de banco de dados para orientação dos julgamentos judiciais envolventes de questões de saúde, no que diz respeito aos tratamentos dispensáveis aos pacientes (artigo 4º da resolução). Esse banco armazena verdadeiras soluções das causas a serem reproduzidas pelos julgadores quando da elaboração das decisões judiciais em matéria de saúde.

É notório que a escolha do instrumento viabilizador do NatJus não foi acertada, já que é próprio das resoluções do CNJ a sua força imperativa, enquanto a modalidade sugestiva de soluções seria plenamente adequada, tendo em conta que um dos pilares da jurisdição é a liberdade de o juiz decidir as causas de acordo com o seu livre convencimento devidamente motivado.

Convém acrescentar que as previsões armazenadas no banco NatJus não exibem a assinatura dos respectivos responsáveis, de modo que qualquer questionamento a seu respeito esbarra inevitavelmente no desconhecimento da correspondente autoria (artigo 3º, § 1º  da Res. 479/2022-CNJ).

A resolução que implantou o NatJus, ao que se percebe, foi muito além dos limites e dos conteúdos que as proposições normativas do CNJ podem conter, pois adentrou inegavelmente em matéria que é expressamente reservada à lei, por ser matéria sancionadora, ao tipificar como infração administrativa punível a eventual inobservância de suas disposições pelos Magistrados (artigo 6º, IV da Res. 479/2022-CNJ).

Portanto, o instrumento adequado seria evidentemente a recomendação, também prevista no Regimento Interno do CNJ. Não hesito em afirmar que as resoluções não podem criar tipos infracionais ou sanções punitivas, pois essa função é típica e exclusiva do Poder Legislativo, sendo que sua criação somente pode derivar exclusivamente da lei. A reserva de lei do Parlamento para instituir infrações e sanções é uma das mais reverenciadas garantias individuais penais, remontando ao Marquês de BECCARIA (1738-1784) e consagrada pelos filósofos iluministas e pelos teóricos da Revolução Francesa.

Previsibilidade da ação estatal
Penso que se faz necessário relembrar o macroprincípio constitucional da estrita legalidade em matéria sancionadora, para assinalar que nele se insere como premissa incontornável a unicidade de fontes normativas. Sem essa unicidade, restaria inoperante aquela garantia constitucional, pois bastaria um ato administrativo e aquele solene preceito magno estaria afastado.

O notável professor Geraldo Ataliba (1936-1995), grande expoente do juspublicismo e acatado doutrinador do Direito Público, deixou lição de perene atualidade quando explicitou que

“o Estado não surpreende seus cidadãos; não adota decisões inopinadas que os aflijam; a previsibilidade da ação estatal é magno desígnio que ressuma de todo o contexto de preceitos orgânicos e funcionais postos no âmago do sistema constitucional (República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 171)”.

Separação de Poderes
A Constituição de 1988, como norma fundante da República e da sua estrutura jurídica, dedicou especial cuidado aos princípios inseridos no ordenamento que então surgia. Dentre os princípios que a compõem, o da separação de Poderes talvez seja o que mais mereceu atenção e cuidado. A atenção constitucional dispensada a esse princípio se estrutura como estratégia de defesa das garantias, sendo perfeitamente justificável, já que a época de elaboração da Constituição passava-se por delicado momento político no país.

Recorde-se que a estratégia da separação de Poderes atende ao objetivo de desconcentração do poder estatal, coroada que foi pela derrubada dos príncipes e a implantação dos princípios constitucionais, na expressiva síntese do surgimento do constitucionalismo atribuída ao professor José Ortega y Gasset (1883-1955). As revoluções liberais ocidentais fizeram triunfar a ideia de que o poder estatal deve ser limitado, baseando-se na lição antiga (mas sempre atual e de comprovada constatação) que a concentração de poderes (atribuições ou funções) leva tendencialmente ao despotismo.

A Assembleia Nacional Constituinte firmou, entre nós, posicionamento de repulsa aos sistemas ditatoriais concentradores. Em diversos dispositivos, a Constituição de 1988 observou cuidadosamente quais os limites que deveriam ser normatizados, impondo barreiras ao poderes do Estado e aos seus vários agentes para a defesa de possíveis violações oriundas do próprio poder estatal.

A lição de Paine
Para elucidar o quão antigo é o debate pela defesa dos direitos e garantias fundamentais, Thomas Paine (1737-1809) elabora uma ácida crítica ao antigo regime de sua época e ao sistema econômico vigente. Para ele, o cerceamento de direitos inatos ao homem pelo Estado seria o principal motivo da miséria.

Para Paine, um dos fundadores dos Estados Unidos, só existirá governo soberano e democrático se garantidas a proteção da soberania popular e da liberdade pelo Estado. É de sua obra que se retiram estes ensinamentos:

 “No hay duda que los hombres, hablando de constituciones y gobiernos, conciben dos nociones distintas y separadas; de lo contrario ¿a que serviría separar y distinguir esos términos? Una Constitución no es el acto de un gobierno, sino de un pueblo que constituye un gobierno; y el gobierno sin una Constitución, es poderío sin derecho” (Derechos del Hombre;, Editorial Alianza., Espanha, 2014, p. 50).

Cláusula pétrea
Esses imperecíveis fundamentos doutrinários foram reafirmados pelo parlamentar brasileiro Ulysses Guimarães, então presidente da Assembleia Nacional Constituinte em seu discurso de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988:

“Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais (…). O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento (…)”.

A concretização da separação de Poderes e a sua elevação à condição de princípio, inserida no artigo 60, § 4º, III da Constituição, como cláusula pétrea, buscou coibir a concentração de poderes em uma única pessoa ou grupo. Os poderes constitucionalmente reconhecidos decorrem de uma distribuição de funções e atividades há muito verificada, consagrada na Revolução Francesa, graças à elaboração do Barão de Montesquieu (1689-1755), que advertiu:

 “Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor” (O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: 1982).

Para assegurar a tripartição dos Poderes, a Constituição de 1988 deixa claro que os Poderes constituídos são independentes, autônomos, especializados e exercidos por órgãos distintos, de forma que a cada poder são atribuídas funções típicas relacionadas com a essência do órgão e da atividade por este desempenhada, e atípicas que fogem do seu escopo precípuo, mas necessárias para o equilíbrio entre eles. Atividades exercidas de forma simultânea e interligadas graças ao sistema de freios e contrapesos impedindo-se que um poder extrapole suas atribuições usurpando competências e funções dos demais poderes.

O artigo 2º da Constituição é claro quanto à tripartição dos Poderes: são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Assim como a leitura do artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:

“Art 16 –  sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”

Observa-se que mesmo revestida da couraça principiológica, a separação de Poderes não é absoluta, o que possibilita que em circunstancias pontuais ocorra a preponderância de um princípio sobre o outro, sem caracterizar usurpação de competência. Essa é a conclusão que à leitura do artigo 5° da Constituição de 1988, como comenta o ministro Alexandre de Moraes:

“Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tão pouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. (Constituição do Brasil interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2011, p. 96).

Conclusão
O que emerge com solar clareza é que nenhum ato administrativo tem a força de sobrepor-se à Constituição. Por essa singular e insuperável razão, os atos emanados do CNJ — e de qualquer outro órgão devem reverência aos princípios e aos valores constitucionais, sendo totalmente desvaliosos os argumentos esmerilhados em favor do margeamento da Constituição.

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