Opinião

Conscientização jurídica da violência contra a pessoa idosa

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15 de junho de 2022, 21h42

O tempo é inevitável. Essa verdade era, na mitologia grega, presidida por Chronos, o Deus do Tempo, que devorava as suas próprias criações, para indicar que nada escapa à sua voracidade. O tempo é uma dimensão que se pode medir pelas horas, minutos, dias, semanas, meses e anos. Sua força é implacável e não pode ser detida, e tudo o que é conquistado nesse tempo é efêmero e findável.

Para o poeta latino Ovídio Naso, o tempo é um "rato roedor e todas as coisas". O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que "o tempo é o único problema metafísico do homem", e para o poeta português Luis de Camões "muda-se o tempo, mudam-se as vontades, muda-se o amor, muda-se a confiança, que tudo na vida é feito de mudança, buscando sempre novas qualidades". Se tivermos a felicidade e a boa ventura de seguirmos existindo, todos nós envelheceremos com o passar do tempo.

Os dados das nossas estatísticas evidenciam que já não somos, como antes, um país de jovens, precisamos de novas estruturas para lidarmos com essa nova realidade. Aqui parece até contraditório o termo nova realidade, trazida pelo tempo… Voltemos à terra novamente.

À medida em  que envelhecemos, as nossas vulnerabilidades aumentam, sejam físicas ou mentais e, é justamente neste momento que as respostas em forma de projetos e políticas públicas devam ser dadas e que sejam efetivamente implementadas para que todos possam usufruir dessa fase de suas vidas de forma digna e humana, o que aliás é a base do nosso ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana.

Projetando-se essa reflexão no domínio jurídico, recorde-se que são os elementos fato, valor e norma, da famosa trilogia do professor Miguel Reale, os que, na sua concepção, compõem a estrutura do Direito. Essa concepção merece a maior atenção dos estudiosos dessa ciência, porque busca identificar, na essência do fenômeno jurídico, o elemento valorativo.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em seu livro "O Princípio Constitucional da Fraternidade. Seu Resgate no Sistema de Justiça" (Ed. d´Plácido. Belo Horizonte: 2019), vai além ao abordar o tema do conceito valorativo da norma, trazendo para a atualidade e para o (seu) universo, o dos magistrados, a necessidade de uma nova visão, que tenha por finalidade a provocação do aplicador do Direito, fazendo que passe a perseguir, como objetivo e missão, uma nova postura, que o faça enxergar que a justiça é mais que aplicar a lei ou a norma, ao caso concreto.

Vivemos hoje em uma sociedade plural e dinâmica, liquida, para utilizarmos o termo do professor Zygmunt Bauman, pois ali naquela controvérsia específica que o julgador tem suas mãos existe um universo de questões aflitivas para um ser humano. Por maiores e mais diversas que sejam essas questões, com seus ambientes, seus medos e seus dramas desconhecidos de nossa realidade, o princípio universal da fraternidade, é o ponto de convergência que falta aos magistrados, para que passem a adotar uma atitude humanizada.

A atitude humanizada retira a norma de seu ambiente frio e inerte, trazendo o dispositivo legal à realidade, fazendo com que se concretize, alcançando o seu fim, ou seja, a iniciativa do parlamento que a elaborou de forma genérica e abstrata, em nome da vontade popular.

Os direitos dos idosos são assegurados por diversos diplomas normativos brasileiros, valendo destacar a Constituição Federal de 1988, a Política Nacional do Idoso (Lei 8.842/94), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), e o Fundo Nacional do Idoso (Lei 12.213). Há, ademais, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional versando esse delicado e importante tema:

Projeto de Lei 4.438/21 — Senado — Simone Tebet — foi encaminhado à Câmara dos Deputados
Projeto de Lei 4.626/2020 — Câmara dos Deputados — Hélio Lopes, Daniel Freitas, Alex Santana, Lucas Redecker e outros — aguardando apreciação pelo Senado
Projeto de Lei 3.295/21 — Câmara dos Deputados — Daniela do Waguinho — Aguardando a designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família
Projeto de Lei 2.346/21 — Câmara dos Deputados — Eduardo Barbosa — Aguardando o parecer do relator na Comissão de Finanças e Tributação

Através da informação e do reconhecimento dos direitos e obrigações que detêm, ocorrerá consequentemente o descortinamento e o aparecimento da real noção da identidade e do conceito de cidadania, plenamente usufruível pelas pessoas idosas. O reconhecimento desses conceitos, que até podem parecer à primeira vista simples, torna-se o agente de transformação social quando incorporado ao patrimônio intelectual do cidadão.

Os artigos 229 e 230 da Constituição trouxeram, de forma geral, o princípio da solidariedade familiar e social quanto à proteção da pessoa idosa. Assim, "os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade".

Nesse sentido, em que pese uma abordagem constitucional generalista, carente, por exemplo, de uma classificação etária para a pessoa idosa, os fundamentos da Constituição nos impõem respeito, proteção e promoção de dignidade ao idoso. Ocorre, contudo, que a realidade tem mostrado que o acesso aos direitos fundamentais para esse grupo em todo país não é plenamente contemplado.

Diariamente, nossos idosos sofrem violações de seus direitos, por discriminação, por exclusão social, abuso financeiro, violência física e psicológica, negligência e grande parte dessas violações são subnotificadas, o que dificulta a identificação e a construção de soluções. Com a pandemia da Covid-19, segundo a OMS, um em cada seis idosos no mundo sofreu algum tipo de abuso no ano de 2020. No Brasil a conjuntura não se distancia dessa realidade, conforme dados da Agência Brasil, a partir de apanhados do Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no ano de 2020 foram registrados cerca de 77 mil denúncias de violação de direitos dos idosos.

Destaque-se que o número representa um aumento de 53% em relação ao ano de 2019. Dados do mesmo canal apontam que os casos de violência patrimonial contra a pessoa idosa, em 2019, tiveram um aumento de 19% e que, em 2020, com o isolamento social imposto pela pandemia, a situação tornou-se mais crítica.

Tal circunstância desencadeou a aprovação pelo Plenário do CNJ da Recomendação 46, de 23/6/2020, dispondo sobre medidas preventivas para que se evitem atos de violência patrimonial e financeira contra pessoa idosa, no âmbito das serventias extrajudiciais e dos serviços notariais. A recomendação estabelece, no seu artigo 2º, que "havendo indícios de qualquer tipo de violência contra idosos nos atos a serem praticados perante notários e registradores, o fato deverá ser comunicado imediatamente ao Conselho Municipal do Idoso, Defensoria Pública, Polícia Civil ou Ministério Público".

As ações apresentadas constituem passos relevantes para subsidiar o desenho de iniciativas voltadas à implementação e ao fortalecimento de políticas de efetivação dos direitos dos idosos. Mas ainda há muito a ser feito.

Para além da importância de estudos da violência contra um grupo de pessoas vulnerabilizadas, é imperioso se discutir políticas públicas, medidas jurídicas, judiciais e extrajudiciais, a serem adotadas em prol de um grupo social que assume relevância, clama por participação e necessita ser tratado com respeito pelos órgãos públicos brasileiros.

É essencial avançarmos, seguindo um modelo de cooperação, como o inaugurado e amadurecido na central judicial do idoso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, iniciativa que merece louvores aos dirigentes da corte de Justiça e todos os servidores que se dedicam às suas tarefas nesse setor do atendimento às pessoas.

A manhã do dia de hoje, quando se relembra o Dia da Conscientização Jurídica da Violência Contra a Pessoa Idosa, lançou o TJ-DF em Brasília, em conjunto com o MP-DF, importante instrumento para a correção de distorções seculares: trata-se cartilha "Quem Nunca". Ela nos adverte que devemos voltar os olhos para nós próprios e percebermos a nossa indiferença. O poema de Cecília Meirelles, "Como se Morre de Velhice", relembra exatamente essa situação:

"Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença)"

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