Opinião

O exame do objeto sempre em busca de uma verdade, e não apenas de uma solução

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11 de setembro de 2023, 10h25

Fato, valor e norma são a famosa trilogia que, na concepção do professor Miguel Reale (1910-2006), compõe a estrutura do Direito. Essa concepção merece a maior atenção dos estudiosos dessa ciência, porque busca identificar, na essência do fenômeno jurídico, o elemento valorativo.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em seu livro O Princípio Constitucional da Fraternidade; seu Resgate no Sistema de Justiça (Editora d'Plácido, Belo Horizonte: 2019), vai além ao abordar o tema do conceito valorativo da norma, trazendo para a atualidade e para o (seu) universo, o dos magistrados, a necessidade de uma nova visão, que tenha por finalidade, a provocação do aplicador do direito, fazendo que o mesmo passe a perseguir, como objetivo e missão uma nova postura, que o faça enxergar, que a justiça é mais que aplicar a lei (norma) ao caso concreto.

Vivemos hoje em uma sociedade plural, dinâmica e líquida, para utilizarmos o termo do professor Zygmunt Bauman (1925-2017), pois ali naquele caso concreto, em mãos do julgador, existe um universo de questões que por maiores e diversos que sejam, com seus ambientes seus medos e dramas, são desconhecidos de nossa realidade.

O princípio universal da fraternidade é o ponto de convergência que faltava aos magistrados, para que passem a adotar uma atitude humanizada, tirando a norma de seu ambiente frio e inerte, trazendo o dispositivo legal à realidade, fazendo com que se concretize, alcançando o seu fim. Nesse contexto, cite-se parte de brilhante trecho do mestre Francesco Carnelutti (1879-1965), em sua obra Metodologia do Direito:

A verdade é que também o arbítrio do legislador tem seus limites ou, em outras palavras, que também o legislador, se bem impõem leis aos homens, obedece ás leis da natureza. Pode por exemplo, mandar que um homem que se, cometeu determinada ação, deixe de viver; mas não pode obter que morra sem que lhe matem. São, pois, as regras que estão sobre o direito as que buscamos para ensinar a construir, a manobrar, a observaras regras que estão dentro do direito; em outros termos, buscamos a lei da lei. Aqui que a ciência do direito, diferentemente não só das ciências matemáticas, físicas ou biológicas, como também das outras ciências sociológicas, encontram-se desde de seus primeiros passos em um imbróglio pela dificuldade de distinguir entre o dado e o resultado de seu labor (Edijur. Leme: 2018, p. 21).

No entanto, é possível identificar junto à fraternidade o fenômeno da palingenesia iuris politici (ressurreição) do Direito Político, imbrincada nas realidades políticas e jurídicas, que são distintas, mas harmonizáveis.

Isso porque em contexto de transição para a pós-modernidade e com vistas a evitar o esvaziamento substancial do conceito de Constituição, o chamamento a reduzir as distancias entre a normatividade constitucional e a realidade sócio-política  que se pretende regular é inexorável.

A grande originalidade do pensamento do professor Reale pode ser identificada, precisamente, nesse dado axiológico ou valorativo que ele incluiu na sua aludida concepção, para indicar que o conceito de justiça ingressa no conceito de Direito ou o integra.

A questão conceitual do Direito esteve, durante muito tempo, avessa aos conteúdos de justiça, devendo-se isso, com toda certeza, à grandiosa repercussão intelectual que favoreceu o pensamento positivista e legalista, mais afeito ao exame de aspectos experimentais, do que à consideração de aspectos tidos por metafísicos.

O jurista e historiador professor Nelson Saldanha (1933-2015) apreciou esse ponto da evolução do conceito de Direito, tendo encontrado, entre as razões do quase abandono da questão da justiça, a vitoriosa ascensão do legalismo e do seu cortejo de compreensões formalistas auxiliares.

Para os seguidores do pensamento legalista, pensamento que granjeou, inegavelmente, enorme e expansivo prestígio, a lei era tudo, isto é o mundo do Direito começava e terminava na leitura da lei.

Essa leitura movimentava, apenas, a interpretação filológica dos seus termos e, às vezes, a pesquisa de qual teria sido a vontade insondável do ignoto legislador. A exegese dos textos legais escritos significava o alfa e o ômega, o começo e o fim da ciência do Direito, da qual estava ausente a preocupação axiológica, já que o centro dos problemas jurídicos era o estabelecimento de uma ordem permanente.

A inserção da justiça entre os componentes do Direito se espraiou para o questionamento da sua inserção (da justiça) nas próprias leis escritas. E isso foi fundamental para se admitir que os textos legais poderiam – e deveriam — passar pelo crivo valorativo posterior, exercido pela competência dos juízes.

Tal crivo poderia, eventualmente, detectar a injustiça de uma regra positiva e aí, nesse caso, se instalava o poderoso dilema de saber se a lei injusta seria aplicada como se não o fosse, tal qual se fazia com as leis que não ostentavam tal viés.

É evidente que as altas vozes de autorizados juristas e escritores se ergueram contra essa liberdade de julgamento judicial, advertindo que essa largueza cognitiva poderia conduzir a função dos julgadores a uma perigosíssima atitude política. Essa atitude levaria, cedo ou tarde, segundo a visão dos mais exaltados, ao predomínio judicial sobre os outros poderes, em particular contra o poder administrativo, que sempre reivindicou — e obteve — para si essa primazia.

Onde preponderam essas vozes, instalou-se o silêncio dos magistrados judiciais e ocorreu a redução da legitimidade de suas decisões. Em função dessa doutrina, passaram a ser toleradas — quando não abertamente desejadas — (i) a manutenção da condenação judicial de uma parte acusada subjetivamente ilegítima, contra quem não se apurou o cometimento de infração sancionável, (ii) a confirmação da aspereza de uma sanção penal manifestamente exagerada, (iii) a confirmação da exigência de um tributo declarado inconstitucional ou (iv) a indiferença à cassação de um benefício previdenciário decretada por autoridade pública incompetente, ou agressiva de um direito fundamental.

Observando criticamente o futuro do processo e pugnando por uma nova teoria geral do processo, a professora Ada Pellegrini Grinover (1933-2017), que foi exímia nessa matéria, põe em destaque, precisamente, a necessidade — e não apenas a competência — do juiz para atuar, quanto ao princípio do livre convencimento, no sentido de apurar o conteúdo de justiça das leis, dizendo que:

Esse importante princípio refere-se diretamente não só à apreciação da prova, relacionada com o julgamento, mas também para formar o seu convencimento quanto ao direito e justiça da solução a ser dada ao caso concreto (Ensaio sobre a Processualidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018, p. 153).

Esta lição da eminente mestra jurídica adverte que o compromisso dos juízes não fica restrito à aplicação das leis positivas, mas abrange, também, o problema de sua justiça, ou seja, a justiça das leis escritas. Isso leva à percepção de que se desenvolve a consciência dos juristas de que a justiça não está leis, mas no Direito que se encontra além delas.

O Regimento Interno do STJ dá sinal de acolher essa diretiva, tanto, que no seu artigo 255, § 5º, diz que, conhecido o recurso, a Turma julgará a causa, aplicando o Direito à espécie, com observância da regra prevista no artigo 10 do CPC.

Deve-se assinalar que o dispositivo regimental alude ao Direito, e não à lei. Aqui está a ideia de que aplicar o Direito não é o mesmo que aplicar a lei, embora, frequentemente, se empregue um termo pelo outro, causando equívocos de não pequena monta.

Outrossim, aplicar o Direito é, essencialmente, uma atitude ou uma convicção judicial verdadeira e autêntica que enaltece a incidência de certos princípios jurídicos na atividade julgadora. É essa atitude que impede que o juiz aceite que a solução da demanda que examina seja fornecida diretamente pela pura e simples leitura do texto legal. Esta é a semente da insurreição contra a tirania das leis escritas.

O sempre citado filósofo belga Chaim Perelman (1912 – 1984) escreveu, em 1976, um livro fundamental sobre essa inevitável nova função judicial, afirmando o seguinte:

A crescente importância atribuída aos princípios de Direito, no direito continental do pós-guerra, manifesta-se não apenas no número cada vez mais considerável de publicações consagradas a esta matéria, mas também na mudança de atitude das Cortes, mesmo as mais conservadoras e mais respeitosas da vontade do legislador (Lógica Jurídica. Nova Retórica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 117).

Esse livro do professor Perelman — na verdade pouco seguido pelos juristas julgadores — poderia ter maior influência na formação do pensamento jurídico e judicial, pois não são poucas as vozes de juristas consagrados que o enaltecem. No entanto, ainda é escassa a sua repercussão na elaboração de decisões dos juízes e menor ainda na conformação de precedentes jurisprudenciais e sumulares.

Geralmente, basta ao Juiz encontrar um dispositivo legal e o entendimento que antes lhe parecia inconcebível passa a orientá-lo na tomada da decisão do caso que aprecia. Dificilmente o Julgador observa que a lei injusta traz em si o germe de sua inaplicabilidade e que a aplicação dos seus dispositivos, apesar desse déficit de legitimidade, importa em enorme prejuízo à Justiça.

A compreensão das leis como ordens e do Direito como sistema de organização dos poderes estatais atinge os píncaros do formalismo radicalizador, quando se instala nas grandes estruturas políticas dos estados autoritários — ou despóticos — se impondo de cima para baixo, como determinações verticalizadas.

O filósofo alemão professor Gustav Radbruch (1878-1949) escreveu páginas notáveis sobre esse fenômeno, denunciando veementemente as atrocidades cometidas pelo governo do seu país, nos anos iniciais da década de 30 do século 20, sob a legislação positivista do nazismo.

Foi super-relevante para a evolução do Direito — e da justiça a cargo dos julgadores — a contribuição filosófica do professor Miguel Reale, porque, graças a ela e à Teoria Tridimensional cuja paternidade lhe pertence, abriu-se o horizonte dos  juristas para as questões ontológicas, axiológicas e gnosiológicas do Direito.

Essa abertura fez com que os juristas notassem o fosso que separava a lei escrita e os valores — entre os quais o valor justiça prepondera como grande ausente — e isso teve o efeito de impor à aplicação judicial das leis positivas a sempre necessária e prévia atividade interpretativa do seu conteúdo, mediante apreciações ultrapassastes de seus textos.

A interpretação das regras escritas, sob esse ponto de vista, passa a ser o núcleo da atuação dos julgadores e pode ser sentida como o cotejo das dicções das leis com os princípios e os valores jurídicos circulantes no ambiente social, escritos — ou não — nas constituições políticas. Esse trabalho intelectual, porém geralmente não se verte e nem se concretiza em decisões, porque para isso se faz necessária a determinação da vontade e a disposição de inovar.

Mas a constatação da existência de leis injustas, coisa que os Juízes e os juristas deparam no quotidiano de suas atividades, nem de longe esgota o problema que elas provocam e que a reflexão judicial releva. Isso ocorre porque os julgadores teimam em avaliar a solução das injustiças mediante o emprego das previsões das próprias regras escritas.

O desafio da injustiça, na verdade não pode ser enfrentado e vencido se não por meio do emprego de técnicas ou entendimentos judiciais que transponham as regras escritas, até porque são elas — as regras escritas — as grandes usinas geradoras da injustiça.

O aferramento dos julgamentos judiciais aos escritos das regras sujeita o pensamento judicial a uma única avaliação possível da solução de uma demanda, qual seja, a lógica das prescrições legais estatais, como a única via praticável para a atuação dos julgadores.

Essa posição é francamente arbitrária, autoritária mesmo, por pretender reduzir a uma só e única medida a compreensão de valores que são, pela sua natureza e pela sua estrutura, manifestamente impossíveis de mensuração em abstrato.

A injustiça é uma coisa que se mostra em cada caso concreto, nas suas condições efetivas, singulares e irrepetíveis de tempo, de lugar e de modo. A compreensão desse universo de complexidades constitui uma tarefa que a regra geral, legalmente positivada, não pode prever.

E não o pode prever por que os homens, a vida e o tempo, as coisas que importam e fazem o mundo estão em constante movimento, que chega inesperado como um susto, uma onda a se expandir no firmamento.

O jurista e filósofo escocês professor Neil Maccormick (1941-2009) expressou a grande aspereza dessa problemática, chamando a atenção dos estudiosos para a circunstância de que os juristas e os julgadores não costumam se deter nessas análises. Na verdade, tanto os juristas, como os julgadores sofrem as consequências de sua formação intelectual e acadêmica intensamente legalista, o que os leva a uma espécie de propensão incontrolável para buscar nas leis escritas e na sua aplicação fiel a solução dos problemas jurídicos.

Novamente se repete o costumado movimento de reproduzir a ciclo de secundarizar aquelas circunstâncias de tempo, de lugar e de modo que fornecem os reais conteúdo das demandas. E as questões terríveis e humanas, urgentes habitantes da existência, navegam no espaço soberanas, entre hemisférios túrgidos de tempo.

As demoras são réstias de esperança, em calendários que só contam o vento. A questão do tempo é um problema metafísico, mas a sua compreensão, como fator da justiça, é um desafio que os juízes podem resolver, desde que admitam que os fatos das questões sejam os vetores de suas soluções.

Quando os julgamentos minimizam ou desprezam essas circunstâncias de tempo, de lugar e de modo de ocorrência dos fatos, não dão urgência apenas a uma decisão idealizada, abstrata ou injusta, mas contribui para se difundir a noção de que o Direito está nas regras — ou é as próprias regras — impulsionando a tradicional compreensão de que saber Direito se resume em conhecer as regras.

O Direito, partindo do ponto de vista de uma macro visão fenomenológica, deve sempre que possível, considerar fatos e fatores antropológicos, fatores esses que nunca devem se afastar, nem deixar de dar a sua devida contribuição, porque não dizer a sua importância, a sua cultura, e no ambiente onde se está promovendo esta inclusão, através da informação dos direitos surge consequentemente a noção da cidadania, o ambiente social, o tempo, e a linguagem, dentre outras particularidades, de cada região já que a população do Brasil as tem como características plurais e enriquecedoras até pela nossa formação.

Ao se considerar essas importantes particularidades, a transmissão da mensagem que se pretende passar alcançará um maior número de pessoas, de forma a otimizar o objetivo de facilitar o reconhecimento e a compreensão da dimensão e do valor da cidadania. Essa questão passa a ser vista a partir de um fenômeno mais complexo, que além de primordialmente social assume obrigatoriamente, por força da Carta Magna de 1988, status constitucional, de normas programáticas vindo a ser também reconhecidamente um fenômeno de maior importância que, como dito anteriormente é um problema, antes de mais nada social, além de uma questão de ordem jurídica.

Assim nos ensina o professor Karl Olivecrona Karl Olivecrona, em mais um de seus tão importantes ensinamentos:

O juiz, por conseguinte, não é um atlas que sustenta o mundo do direito por sobre os seus ombros.  Encontra-se situado dentro do sistema jurídico; está condicionado por outros elementos do sistema, para cujo funcionamento contribui em colaboração com muitos outros órgãos.
O essencial é analisar que as tradicionais noções jurídicas, digamos as ideias correntes de direitos subjetivos e deveres, etc. pertencem aos contexto da realidade social; são, na verdade, um elemento importante desta e, por conseguinte, é impossível eliminá-las da ciência do direito.  Tem nela o seu lugar; o problema limita-se a descobrir que lugar se deve a elas atribuir, se é que a intenção é proceder cientificamente (Linguagem Jurídica e Realidade. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartir Latin, 2003, p. 32).

O magistrado deve sempre buscar a verdade, bem como examinar o processo, tendo em mente que cada caso é um universo, e não um número ou uma estatística a ser alcançada, como nos preleciona o sempre citado professor Michel Foucault: o exame do objeto sempre busca de uma verdade, e não apenas de uma solução.

Com essa postura, as questões metodológicas, ontológicas e gnosiológicas do Direito não são somente reduzidas, mas realmente eliminadas do pensamento jurídico.

 

BIBLIOGRAFIA
CARNELUTTI, Francesco. Metodologia do Direito. Leme: Edijur, 2018.
FONSECA, Reynaldo Soares da. O Princípio Constitucional da Fraternidade: Seu Resgate no Sistema de Justiça. Belo Horizonte: d´Plácido, 2019.
PELLEGRINI. Ada. Ensaio sobre a Processualidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018.
PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. Nova Retórica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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