Opinião

O Direito dos esquecidos no rol dos procedimentos da ANS

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3 de março de 2022, 13h43

Os debates referentes à determinação da natureza do rol dos procedimentos, terapias ou medicamentos previstos pela ANS, transpassam as margens do direito contratual e consumerista. Ultrapassam mesmo os limites de uma pretensão jurídica, no seu sentido tradicional e ainda persistente, porque dizem respeito às relações de direitos fundamentais e humanitários, aos quais se tem dado respostas tímidas e muitas vezes evasivas.

O sempre referido ministro da Suprema Corte norte-americana Benjamin Cardozo assinalava que as questões jurídicas decididas pelas Cortes Superiores se destinam a orientar a vida jurídica de toda a sociedade, alcançando diretamente as pessoas, instituições e empresas que não integram o processo em julgamento. E veja-se que o ministro Cardozo não tinha em mente as ações coletivas, mas as individuais. Na sua opinião, a autoridade das Cortes é tal que as suas decisões regulam e normatizam o comportamento de todos. É que se dará com este julgamento.

Afastando-se a sempre indesejável alternativa autoritária da imposição de decisões previamente elaboradas, tem-se que cada julgamento judicial é, em realidade, um momento específico de criação jurídica, como enunciava o jurista e magistrado da Suprema Corte dos Estados Unidos Benjamin Cardozo, já citado. O ato do juiz, dizia Cardozo, é que completa, dando-lhe concreção e efetividade, o Direito que, ao ver do próprio julgador, deverá ter aplicação na solução do caso examinado. Essa orientação, aliás básica no pensamento jus-realista, se apoia na constatação objetiva de que as palavras das regras escritas possuem diferentes significados, inclusive no dicionário, como bem observou outro juiz da mesma Corte Superior, Oliver Holmes.

Por conseguinte, a interpretação das regras positivadas assume a indispensável função de ajustar a sua previsão às circunstâncias objetivadas no caso específico. Na dicção do jurista italiano professor Mauro Cappelletti, a interpretação é algo de que o juiz não poderá jamais se esquivar. Esse escritor faz a comparação entre as regras e as partituras de música, para observar que, por mais que o intérprete se esforce por permanecer fiel ao seu texto, ele será sempre, por assim dizer, forçado a ser livre, porque não há texto musical ou poético, nem tampouco legislativo, que não deixe espaço para variações e nuances, para a criatividade interpretativa.

E o professor Cappelletti completa a sua comparação, dizendo que basta considerar que as palavras, como as notas da música, outra coisa não representam senão símbolos convencionais, cujo significado encontra-se, inevitavelmente, sujeito a mudanças e aberto a muitas questões e incertezas. Essa cortante análise revela como a visão clássica ou tradicional do poder judicial ainda resiste valentemente em muitas instâncias julgadoras, sobretudo nas superiores.

Autores como o jurista americano professor Roscoe Pound, por exemplo, associam essa forma de ver o Direito com o que denomina fase pré-principiológica da compreensão jurídica, quando a ideia de Direito se encerrava nas palavras mágicas das regras escritas.

Naqueles longínquos primórdios, diz o professor Pound, supunha-se que a função do juiz consistia, simplesmente, em interpretar uma determinada regra de autoridade e de origem completamente extrajudicial, por um processo de dedução de seu conteúdo logicamente implícito, aplicando depois, mecanicamente, a norma assim dada e interpretada.

Qualquer jurista que devotar atenção a essas observações do professor Roscoe verá que, segundo o seu magistério, a decisão judicial deverá expressar uma manifestação de justiça, cuja determinação se descobre, somente, mediante o trabalho reflexivo dos juristas, o que leva à conclusão que os julgamentos superficiais ou rápidos não têm a possibilidade de captar o fundamento justo (ou de justiça) da questão jurídica examinada.

Relembro que o mestre italiano professor Norberto Bobbio costumava dizer que a questão dos direitos humanos não é mais uma questão de sua identificação, mas uma questão de sua efetividade pela jurisdição. O professor Paulo Bonavides seguia essa linha de sustentação e dizia que a prova dos nove do processo judicial não é a legalidade da decisão, mas o seu conteúdo de justiça.

Tenho para mim que o exame e decisão deste processo põe em causa uma questão de direitos humanos e fundamentais, ou seja, uma questão cuja solução pertence muito mais ao domínio do humanismo e da sensibilidade moral do que ao domínio das regras postas pela autoridade do Estado.

O Brasil é país signatário da Convenção de Nova York, promulgada internamente no ano de 2009, através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, cujos artigos 4º, 25 e 26 assim preveem:

Artigo 4 – Obrigações gerais
1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. (grifou-se)

Artigo 25 – Saúde
Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação, que levarão em conta as especificidades de gênero. Em especial, os Estados Partes:
[…]
e) Proibirão a discriminação contra pessoas com deficiência na provisão de seguro de saúde e seguro de vida, caso tais seguros sejam permitidos pela legislação nacional, os quais deverão ser providos de maneira razoável e justa; (grifou-se)

Artigo 26  – Habilitação e reabilitação
1.Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pares, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e programas completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que esses serviços e programas (…).

Vale destacar que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi a primeira norma internacional de direitos humanos a ser promulgada no Brasil com força de emenda constitucional, conforme o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal e, portanto, trata-se de normativo formal e materialmente constitucional.

Mas esse nível hierárquico seria inócuo se os julgadores não se comprometessem com os objetivos maiores dessas regras ou fizessem com que a sua efetividade ficasse à mercê de previsões legais inferiores ou de ajustes outros de qualquer natureza, assim reduzindo a sua eficácia àquela que a tradição jurídica e judicial atribuiu aos direitos individuais clássicos.

Neste sentido, destacam-se os termos do artigo 4º, da Convenção:
"
i) Promover a capacitação em relação aos direitos reconhecidos pela presente Convenção dos profissionais e equipes que trabalham com pessoas com deficiência, de forma a melhorar a prestação de assistência e serviços garantidos por esses direitos"

Assim como o artigo 25:
a) Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível (…) Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação;

b) Propiciarão serviços de saúde que as pessoas com deficiência necessitam especificamente por causa de sua deficiência, inclusive diagnóstico e intervenção precoces, bem como serviços projetados para reduzir ao máximo e prevenir deficiências adicionais.

A constatação de que os termos da Convenção de Nova York tem status constitucional, por si só, já afasta a possibilidade de o rol da ANS ser taxativo. Como se extrai dos trechos acima destacados, a força constitucional da Convenção impõe especificidade no serviço de saúde e capacitação dos profissionais de saúde para o atendimento dirigido às pessoas com deficiência. A norma constitucional impõe o aumento dos direitos e não a sua restrição a um rol taxativo.

Registre-se aqui que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 2.095/RS (julgamento em 11/10/2019) afirmou que “o poder normativo atribuído às agências reguladoras deve ser exercitado em conformidade com a ordem constitucional e legal vigente”. Noutros termos, os atos normativos exarados pela ANS devem estar em conformidade não apenas com Lei 9.656/98, mas também com a Constituição Federal Brasileira, nela compreendido o texto da Convenção de NY.

O cumprimento da Constituição e a fidelidade às suas disposições integra-se nos deveres de todas as entidades públicas e privadas, compondo aquilo que o professor Raul Machado Horta chamava de sentimento constitucional, ao dizer, com a precisão de sua linguagem que não deve o Poder Judiciário tolerar o alastramento do fenômeno da desestima constitucional, ao observar que é de verificação corriqueira a afirmação de que o sentimento constitucional, exprimindo a adesão popular à constituição, não é generalizado, nem constante.

E frisava o eminente jurista de Minas Gerais que o sentimento constitucional, para assegurar a permanência da Constituição, não se resolve exclusivamente no mundo das normas jurídicas (…), mas decorre também da adesão à Constituição, que se espraia na alma coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional, assim se conjurando os colapsos paralisadores do acatamento ao texto fundamental.

Assim, tem-se que o rol da ANS estabelece a listagem mínima e obrigatória a ser seguida pelos planos de saúde, de modo que a restrição de tratamento/medicamento prescrito pelo médico configura-se como uma verdadeira negação ao direito à saúde é solerte violação às normas constitucionais vigentes.

Vista a questão sobre o aspecto constitucional, tem-se que, do ponto de vista estritamente contratual/consumerista o rol taxativo frustra a expectativa legítima do segurado em obter um atendimento médico hospitalar constante e com serviço de qualidade superior àquela oferecida pelo Sistema Único de Saúde.

Tal expectativa é incrementada pelo fato de que, geralmente, nas tratativas que antecedem à assinatura do termo/contrato entre as partes, os consumidores têm acesso somente às informações ligadas à cobertura dos planos, sem a exposição de questões técnicas tais como um extenso rol da ANS. Os tratamentos e medicamentos adotados pela ANS possuem linguagem técnico-científica, de tal modo que, grande a maioria dos brasileiros pagantes de seguros de saúde desconhecem a existência de um rol ou dos significados dos elementos da sua lista, o que notadamente agrava a sua vulnerabilidade frente às entidades contratadas.

A recusa de tratamentos/medicamentos com base na tese de que o rol da ANS é taxativo, pode levar o consumidor a ter a sua expectativa de prestação de serviço frustrada e onerá-lo duplamente, seja por ter que arcar com o tratamento que acreditava já haver custeado a partir do pagamento das mensalidades do plano, seja por precisar recorrer ao SUS, que diante de sua complexidade e insuficiência de recursos, pode demorar ou até mesmo não fornecer o serviço com a qualidade que se espera.

Considerando estes pontos, deve-se ainda ter em vista a tutela diferenciada que o Estado direciona aos consumidores, tendo em vista a sua presumida vulnerabilidade.

Sabe-se que o direito contratual é regido pelo principio da função social e que, em grau superior, o direito privado é regido pelo principio da aplicação horizontal dos direitos fundamentais. Nesta senda, as relações obrigacionais submetem-se à exigibilidade do cumprimento de uma função social, que pode ser determinada como o cumprimento dos direitos da dignidade da pessoa humana e demais garantias fundamentais correlatas.

De acordo com a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma, sendo abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento quando essencial para garantir a saúde ou a vida do segurado.

Neste segmento, por anos vem decidindo nossos tribunais que se a medicação, o exame ou o tratamento foram prescritos pelo médico especialista que acompanha o paciente, não cabe ao Plano de Saúde discutir ou obstar o seu fornecimento.

Destaque-se aqui os termos da Súmula 302, do STJ, no sentido de que há abusividade da cláusula contratual de plano de saúde que limite no tempo a internação hospitalar do segurado.

Nessa mesma linha, a jurisprudência pátria vem adotando o entendimento de que o rol da Agência Nacional de Saúde é exemplificativo, devendo a seguradora cobrir procedimentos e medicamentos não elencados quando imprescindíveis para o tratamento do segurado e prescritos pelo médico assistente, uma vez que incumbe ao profissional de saúde indicar a terapêutica necessária à cura ou melhoria da qualidade de vida do seu paciente e não a Seguradora.

Em conclusão, é pertinente pontuar, com base nos ensinamentos de Dworkin, que o direito e as relações sociais correlatas, devem ser interpretados sob a égide dos postulados constitucionais. Neste sentido, como visto ao longo da presente argumentação, a Constituição garante tanto a proteção do consumidor, quanto a tutela, no mais alto grau, do direito à saúde, que no caso de limitação de oferta ou cumprimento de serviços tais como os aqui debatidos, serão indevidamente restringidos.

Por fim, defende-se a manutenção do entendimento de que o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar é meramente exemplificativo, pois a partir de tal entendimento garante-se a proteção de uma alta gama de consumidores e cidadãos que precisam da assistência de saúde para poderem ter uma vida digna.

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