Opinião

Responsabilidade estatal por titulação de terra indígena a particular

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30 de abril de 2024, 7h02

Este artigo pretende analisar a influência do julgamento do caso comumente denominado “marco temporal” na controvérsia relativa à responsabilidade estatal nas hipóteses em que particulares são privados de suas propriedades, após a demarcação e a homologação, em decorrência do reconhecimento das terras como de ocupação tradicional indígena.

O problema se coloca porque, em diversas hipóteses, a propriedade havia chegado a esses particulares por meio de um regular negócio jurídico, devidamente registrado no álbum imobiliário local, cuja cadeia se iniciara com a determinação pelo ente federativo de abertura de uma matrícula no registro de imóveis de uma propriedade rural e a posterior transferência desse mesmo imóvel a um particular, que pode ser o próprio desapropriado ou um proprietário anterior.

Nesse contexto, na medida em que as terras de ocupação tradicional constituem direitos originários dos indígenas, nos termos do artigo 231 da Constituição, e nesse contexto, são bens da União, consoante prevê o artigo 20, XI, da Lei Fundamental de 1988, a eventual transferência de propriedade de tais terras por um ente estatal — comumente um estado da Federação — a um particular se configura como venda a non domino, gerando para esse mesmo particular, quando reconhecida a ilegitimidade de seu título a posteriori, a pretensão indenizatória contra o aludido ente estatal.

Os tribunais pátrios vinham reconhecendo a procedência de pretensões dessa natureza, sob o argumento de que a venda a non domino e a subsequente desapropriação do particular consubstanciariam hipótese indenizável, não apenas porque os elementos configuradores da responsabilidade civil estariam presentes (ato ilícito, dano e nexo de causalidade), mas também porque a impunidade nessas hipóteses resultaria em enriquecimento sem causa do ente estatal.

Entendimento do STF

Em 21/9/2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.017.365, em interpretação do artigo 231 da Carta da República, rejeitou o posicionamento denominado “marco temporal”, fixando a tese de repercussão geral relativa ao Tema nº 1.031, explicitada em 13 tópicos, dos quais cabe destacar os seguintes:

“IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no art. 231, §6º, da CF/88; V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do art. 37, §6º da CF.”

Gustavo Lima/STJ

A leitura dos itens anteriormente transcritos induz ao entendimento de que os particulares com justo título de terras posteriormente reconhecidas como de ocupação tradicional indígena teriam (1) direito à indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias, nos termos do artigo 231, §6º, da Lei Fundamental, para o caso ocupação tradicional ou renitente esbulho contemporâneos à promulgação da Constituição; ou (2) pretensão contra a União para se verem indenizados de forma prévia pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis e, ainda, na impossibilidade de reassentamento, pelo valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for de seu interesse, para o caso de ausência de ocupação tradicional ao tempo da promulgação da Carta.

‘Questão a ser amadurecida’

Todavia, uma observação mais acurada dos votos que compuseram o acórdão que consubstanciou a notória decisão revelam muito sobre o entendimento do colegiado sobre a responsabilidade dos entes federativos na titulação de terras a particulares em tais hipóteses, em decorrência, escusado dizer, do disposto no artigo 37, §6º, da Constituição.

É de se verificar, nesse diapasão, trecho do voto do ministro relator Edson Fachin, quando afirmou que a “possibilidade de indenização por ato ilícito na venda de terras a non domino, em ação própria de natureza eminentemente reparatória, é questão a ser amadurecida pela doutrina e pela jurisprudência, mas não aparenta colidir, em meu sentir, com a vedação da concessão de indenização pelo fato de encontrar-se a área inserida em terra indígena”.

Essa ideia foi acompanhada pelo ministro Luís Roberto Barroso, que em seu voto aduziu que em “complemento à tese do ministro Edson Fachin relativamente à conclusão de Sua Excelência de número 9, em que Sua Excelência contemplava apenas o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. E eu acrescentaria: e também a indenização por ato ilícito do poder público por venda a non domino — ou seja, por quem não era proprietário —, a adquirentes de boa-fé”.

O ministro Cristiano Zanin caminhou na mesma trilha quando asseverou que se devia “admitir a responsabilização do Poder Público — inclusive demais entes federados, não se restringindo apenas à União — quando tiverem eles incorrido em ato ilegal, promovendo a transferência de terras supostamente dominicais para particulares, com a consequente titulação sobre terras originariamente indígenas, gerando expectativa ao particular de boa-fé”.

Responsabilidade estatal não foi afastada

Diante desse quadro, parece bastante evidente que o julgamento que rejeitou a doutrina do marco temporal, com as teses que consubstanciaram o Tema nº 1.031 do Supremo Tribunal Federal, não afastou, como poderia parecer em uma leitura açodada e superficial das referidas teses, a responsabilidade estatal tout court. Antes, foi confirmada a validade de eventual pretensão de particulares nos casos em que os entes federativos houvessem procedido com a transferência de imóveis a non domino, com fundamento no artigo 37, §6º, da Constituição.

Esse entendimento é reforçado, aliás, pela recente promulgação da Lei nº 14.701/23, que trouxe a seguinte determinação em seu artigo 11: “verificada a existência de justo título de propriedade ou de posse em área considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena, a desocupação da área será indenizável, em razão do erro do Estado, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição Federal”.

Para concluir, o julgamento do marco temporal não alterou a situação anteriormente existente. O STF, pelos votos anteriormente colacionados, assentou de modo insofismável a responsabilidade do ente federativo por venda a non domino de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, cujos proprietários viessem posteriormente a ver seus títulos de propriedade deslegitimados, com a consequente desapropriação.

A via permanece aberta, portanto, a eventuais ações de indenização contra os entes estatais nessas hipóteses.

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