Fábrica de Leis

Desoneração: o que se espera do artigo 113 do ADCT?

Autor

  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

30 de abril de 2024, 8h00

Na participação passada, chamava-se a atenção para a complexidade dos estudos legislativos, indicando, de forma especial, que tem aumentado o número de medidas provisórias que não são convertidas em lei, o que sugere uma crescente estratégia do presidente da República: editar medidas provisórias “feitas para cair”, já sabendo que não serão aprovadas, mas mesmo assim alcançar seu objetivo; ou usá-las como “balão de ensaio” de discussões polêmicas, que, fracassando na via das medidas provisórias, serão conduzidas em um segundo momento por meio de projeto de lei. O jogo entre Executivo e Legislativo vem mudando, e é preciso captar o fenômeno.

Entre os casos utilizados como exemplo, esteve precisamente a MP 1.202/2023, que reverteu a vontade legislativa qualificada pela derrubada de um veto presidencial resultante na promulgação da Lei nº 14.784/2013. Depois, o assunto foi comentado com mais detalhes em outro espaço. Mas, agora, como houve o ajuizamento da ADI 7633 pelo presidente da República, convém aproveitar a coluna Fábrica de Leis para tratar de mais um tema de processo legislativo que vem sendo sumamente mal assimilado pela jurisprudência: a aplicação do artigo 113 do ADCT.

A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro“.

Essa é a redação do artigo 113 do ADCT, incluído pela EC 95/2016, que instituiu o chamado novo regime fiscal, criando o chamado “teto de gastos”. Tal dispositivo foi inserido via emenda parlamentar durante os debates da PEC 241/2016, de iniciativa do então presidente da República Michel Temer.

A sugestão veio do relator na comissão especial, o deputado Darcísio Perondi (MDB-RS). Conforme se lê à página 50 do parecer, objetivo da norma é permitir “que os parlamentares estejam cientes, no momento da apreciação das proposições, do custo das decisões a serem tomadas, bem como de sua compatibilidade com o novo regime fiscal” (nessa última parte, referindo-se ao artigo 114 do ADCT). De fato, as despesas obrigatórias dependem da autorização e concordância do Congresso. Então, para que a estrutura do novo regime fiscal se mantivesse, seria necessário conhecer os impactos orçamentário e financeiro das proposições. Essa é a occasio legis do artigo 113 do ADCT.

Ocorre que o novo regime fiscal foi revogado. Com o advento da EC 109/2021, foi introduzido o inciso VIII ao artigo 163, que previu a aprovação de lei complementar para dispor sobre a sustentabilidade da dívida. A aprovação da LC 200/2023 materializou o regime fiscal sustentável. Nada obstante, permaneceu a exigência do artigo 113 do ADCT.

Chama-se a atenção para o fato de que o artigo 113 do ADCT não prevê a necessidade de que a estimativa de impacto orçamentário e financeiro indique a origem dos recursos necessários para cobrir a despesa ou renúncia de receita. Portanto, não se deve ampliar a exigência constitucional para abarcar tal demonstração da fonte de custeio, o que seria incompatível com a própria ratio da norma, cujo objetivo é simplesmente prover informação para subsidiar e fomentar o debate e a deliberação das proposições.

Impacto legislativo

Spacca

Da mesma forma, a ideia de uma “estimativa de impacto orçamentário e financeiro” não se confunde com uma análise de impacto legislativo (AIL), que passe pelas etapas de diagnóstico do problema, definição de objetivos, resultados esperados, estratégias, alternativas, etc. A estimativa de impacto não é um documento tão completo quanto uma AIL, não se espera que tenha o mesmo nível de detalhamento. Além disso, mesmo quando excessivos, os números apontados na estimativa não impedem os parlamentares de tomarem uma decisão eventualmente incompatível com a sustentabilidade fiscal no caso concreto. A equalização pode ficar para depois.

Ao ter sido inserida no texto da Constituição, a norma do artigo 113 do ADCT, inevitavelmente, estabelece uma condição de validade formal, cria mais um parâmetro e amplia as hipóteses do controle judicial de constitucionalidade das proposições legislativas, especialmente as que concedem benefícios tributários. A novidade não passou desapercebida. Em um primeiro momento, a ausência de estimativa de impacto orçamentário e financeiro chegou a ser motivo de devolução da proposição ao autor. Mas rapidamente esse costume foi abandonado.

Já o STF vem conferindo um amplo alcance à norma. Na ADI 5.816, por exemplo, entendeu-se que o dispositivo inserido pela EC 95/2016, por expressar medida indispensável para o equilíbrio da atividade financeira do Estado, dirige-se a todos os níveis federativos. Ao julgar a ADI 6.303, restou assentado que a obrigatoriedade da estimativa não atenta contra a forma federativa ou a autonomia financeira dos entes. Nesse último julgado, eis as palavras na ementa:

Esse requisito visa a permitir que o legislador, como poder vocacionado para a instituição de benefícios fiscais, compreenda a extensão financeira de sua opção política“. Na ocasião, foi fixada a seguinte tese: “É inconstitucional lei estadual que concede benefício fiscal sem a prévia estimativa de impacto orçamentário e financeiro exigida pelo artigo 113 do ADCT.

No plano estadual, o dispositivo foi a causa de inconstitucionalidade de leis em diversas ações (ADIs 6.102, 6.080, 6.074, 6.152, 7.374, 5.882, 6.118, 6.090). No plano federal, até o momento, nenhuma lei foi declarada inconstitucional com base no descumprimento do artigo 113 do ADCT. Em algumas ocasiões, isso até teria sido cabível, mas, aparentemente, de lado a lado, optou-se por simplesmente silenciar essa discussão.

A petição inicial da ADI 7222 chegou a fundamentar o pedido de inconstitucionalidade da Lei 14.434/2022, que fixou o piso da enfermagem, na violação ao artigo 113 do ADCT. Em um primeiro momento, a tese chegou a ser encampada pelo ministro relator Luís Roberto Barroso, na primeira medida cautelar suspendendo o piso. Na ocasião, registrou que o estudo de impacto financeiro teria sido inadequado, pois, embora tivesse estimado o custo direto dos novos pisos salariais, “não comprovou a viabilidade econômica de sua implementação”.

Depois, ainda nesse caso do piso da enfermagem, o ministro acabou deixando o artigo 113 do ADCT de lado. Não se vai detalhar aqui o desenvolvimento das discussões da ADI 7.222, aqui mencionada tão somente para apontar a origem dessa tentativa de fazer incluir no artigo 113 do ADCT algo que ele não exige: a prévia e correspondente dotação orçamentária, além da própria estimativa de impacto. Como já se viu aqui, a exigência é descabida, mas, ao que tudo indica, será ordenado para o cumprimento da norma.

Pelo menos nesse caso o ministro relator acabou entendendo que se tratava de um vício “sanável”. Tanto, que acabou revogando em parte a cautelar após a aprovação da EC 127/2022, que instituiu a assistência financeira complementar, por parte da União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios e às entidades filantrópicas, para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira; e após a correspondente aprovação da Lei nº 14.581/2023, que abriu o crédito especial para atender a essa programação.

Controle de despesas

Toda essa volta foi necessária para chegar na decisão do ministro relator Cristiano Zanin, dada como cautelar na mencionada ADI 7633. O principal fundamento utilizado para suspender a eficácia dos artigos 1º, 2º, 4º e 5º da Lei nº 14.784/2023 foi precisamente o suposto descumprimento do artigo 113 do ADCT.

No que parece uma clara deturpação da exigência constitucional, o ministro chega a afirmar que “o controle do crescimento das despesas faz parte do devido processo legislativo” (p. 11). Ora, como já se indicou aqui, o propósito do artigo 113 do ADCT não é impedir que os parlamentares gerem despesas obrigatórias de caráter continuado.

Além disso, mais uma vez a expressão devido processo legislativo é utilizada como um coringa, uma carta na manga ou um superprincípio capaz de justificar a inconstitucionalidade com independência das prescrições da Constituição. Da decisão, extrai-se que o devido processo legislativo traria a obrigação de buscar sustentabilidade orçamentária ou responsabilidade fiscal, em novo uso da expressão para somar aos demais já existentes.

Tal ilação é corroborada pelo seguinte trecho, em que o relator afirma que o artigo 113 do ACDT “obriga o legislador a compatibilizar a realidade econômica com as necessidades sociais, dando concretude ao princípio da sustentabilidade orçamentária. É o parâmetro que o próprio legislador se auto impôs e que passa a integrar o devido processo legislativo” (p. 16).

Com isso, está-se afirmando que os parlamentares ficariam tolhidos em suas decisões na hipótese de uma estimativa apontando grande impacto. É dizer, os parlamentares estariam obrigados a não aprovar um projeto nessa situação, o que parece um claro salto lógico quanto à exigência prevista no artigo 113 do ADCT.

Da obrigação de que a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita seja acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro não se extrai a determinação de não criar ou aumentar gastos públicos. No Brasil, ao menos por enquanto, não existe dispositivo semelhante ao artigo 79 da Constituição do Peru, que retira totalmente a iniciativa parlamentar nessa hipótese. O próprio STF — por ocasião do julgamento do Tema 917 da Repercussão Geral — já reconheceu a possibilidade de iniciativa parlamentar em projetos que gerem aumento de despesas para o Executivo.

Basta compulsar a tramitação legislativa do PL 334/2023 (cuja derrubada do veto resultou na Lei nº 14.784/2023 objeto da ADI 7633) para verificar que o artigo 113 do ADCT foi atendido no parecer do senador relator Ângelo Coronel (PSD-BA), aprovado perante a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Desse documento, destaca-se o seguinte trecho:

“Contudo, reiteramos os impactos positivos sobre o mercado de trabalho, emprego e renda da medida. Embora o gasto tributário da desoneração seja estimado pela Receita Federal do Brasil em R$ 9,4 bilhões, o efeito positivo à economia supera os R$ 10 bilhões em arrecadação — considerando o acréscimo de mais de 620 mil empregos dos 17 setores desonerados em 2022 e o decorrente crescimento de receitas advindas de impostos e contribuições” (p. 2, grifos adicionados).

Especificamente para a redução da contribuição previdenciária sobre a folha dos municípios de 20% para 8%, registrou-se:

“Embora a medida tenha um impacto relevante sobre os serviços prestados pelas prefeituras, reforce os caixas dos entes federados e possibilite uma vida melhor para as pessoas nas regiões mais necessitadas, não há impacto fiscal ao setor público, pois se trata de um aperfeiçoamento do pacto federativo — a União deixa de arrecadar a contribuição dos municípios, tendo efeito líquido neutro ao setor público. Em números, o governo federal deixaria de arrecadar R$ 9 bilhões anualmente, valores reduzidos diante dos benefícios aos demais entes federados” (p. 4).

Como se vê, foram apresentadas informações sobre o impacto da medida ainda por ocasião do debate parlamentar do PL 334/2023. Então, ao menos no caso concreto da ADI 7.633, não restam dúvidas de que o artigo 113 do ADCT foi cumprido. No agravo regimental apresentado pela advocacia do Senado, ainda se lançou o argumento de que a mera prorrogação de renúncia de receita — como ocorre com a Lei nº 14.784/2023 — não estaria sujeita ao requisito em comento. De fato, tal interpretação caberia na disposição constitucional em comento e chegou a ser defendida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 6.632, conforme a minuta de voto que circulou à época da discussão, embora a ação tenha acabado prejudicada.

Seja como for, o fato é que o caso da desoneração deverá aprofundar a compreensão sobre o que exige o artigo 113 do ADCT e qual é seu alcance. Se a interpretação do STF for muito exigente e tornar difícil o seu cumprimento, não se duvidaria de uma futura revogação da norma constitucional pelo Congresso Nacional. Até mesmo para que deixe de ser utilizada no jogo da judicialização do processo legislativo. Definitivamente, não é o que se espera do artigo 113 do ADCT.

Autores

  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB), advogada do Senado Federal, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha), doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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