Opinião

Da possibilidade de rescisória em sede de processos de prestação de contas eleitorais

Autor

  • Angelo Senna Molina

    é bacharel em Direito servidor efetivo do Tribunal Regional Eleitoral de Roraima pós-graduando em especialização em financiamento de campanha e prestação de contas anuais e eleitorais.

30 de abril de 2024, 9h16

A Justiça Eleitoral admite, atualmente, a hipótese de propositura de ação rescisória apenas quando versar sobre inelegibilidade, cuja competência exclusiva é do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com supedâneo no artigo 22, I, ‘j’, do Código Eleitoral, cuja redação é a seguinte: 

“j) a ação rescisória, nos casos de inelegibilidade, desde que intentada dentro do prazo de cento e vinte dias de decisão irrecorrível, possibilitando-se o exercício do mandato eletivo até o seu trânsito em julgado.” 

Tal dispositivo foi acrescentado no Código Eleitoral pelo artigo 1º da Lei Complementar (LC) nº 86/1996, que foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.459, e naquela oportunidade o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que são inconstitucionais os trechos em itálico e a expressão “aplicando-se, inclusive, às decisões havidas até cento e vinte dias anteriores à sua vigência”, constante do artigo 2º da LC nº 86/1996. 

Ademais, o TSE já apresenta entendimento sumulado no enunciado 33, que assim dispõe: “Somente é cabível ação rescisória de decisões do Tribunal Superior Eleitoral que versem sobre a incidência de causa de inelegibilidade”.

O fundamento principal para aplicação desse entendimento é a necessidade de segurança jurídica que vise a garantir a estabilidade do resultado das eleições, isto é, aquele proclamado pelas urnas. Sendo, portanto, incompatível com a celeridade exigida da Justiça Eleitoral, de modo que, repito, não afete a governabilidade, tampouco a estabilidade política decorrente de suas decisões. 

Pensar de modo diverso ensejaria contestações infindáveis dos resultados eleitorais, cujo precedente, daria azo à efetivo prejuízo da governança e confiança do sistema eleitoral. 

Desse modo, não sem razão, o assunto permanece pacífico até então na jurisprudência da Justiça Eleitoral.

A natureza jurídica da ação rescisória

A ação rescisória se destina, especificamente, a complementar e corrigir decisões já tomadas dentro do sistema judicial. Ela não é uma ação independente no sentido tradicional, mas sim um mecanismo de controle e revisão que depende da existência de uma decisão judicial anterior. 

Essa ação, apesar de autônoma, é totalmente dependente de uma ação principal, assim como acontece na ação de busca e apreensão, tutela cautelar antecedente, exceção de incompetência etc. Vale dizer, em bom português, não se intenta uma ação rescisória sem uma ação principal pretérita. 

O Código de Processo Civil (CPC), por sua vez, estabelece o seguinte em seu artigo 966: 

Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: 

I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; 

II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; 

III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; 

IV – ofender a coisa julgada; 

V – violar manifestamente norma jurídica; 

VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; 

VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; 

VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos. 

É cediço o que a questão do processamento e julgamento dessa ação compete ao tribunal que proferiu a última decisão de mérito ou ainda tribunal imediatamente superior, no caso de sentenças proferidas por juízes de 1ª instância.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nesse diapasão, considerando que no âmbito de competência da Justiça Eleitoral está a responsabilidade pela análise e julgamento das contas de campanha e de exercício financeiro dos partidos políticos, de acordo com as Leis nº 9.504/1997 e 9.096/1995, respectivamente. A revisão dessas decisões por meio da ação rescisória, em tese, é uma extensão lógica das funções dessa especializada esfera do judiciário.

Isso garante uma coesão no tratamento das questões eleitorais, mantendo todas as fases do processo desde o processamento e julgamento da prestação de contas até a possível revisão judicial posterior sob o mesmo sistema judiciário.

Passemos à natureza jurídica das prestações de contas no âmbito da Justiça Eleitoral.

Natureza jurídica das prestações de contas eleitorais e anuais

Desde 2009, com a minirreforma eleitoral apresentada naquela ocasião, os processos de prestação de contas anuais passaram a ter caráter jurisdicional devido à inclusão do parágrafo sexto do artigo 37 da Lei nº 9.096/1995, in verbis: “O exame da prestação de contas dos órgãos partidários tem caráter jurisdicional”. 

Sem embargo das incoerências decorrentes dessa alteração legislativa, o fato é que a Justiça Eleitoral aplica o aludido caráter judicial às prestações de contas partidárias anuais e, além do mais, ainda estendeu tal raciocínio às prestações de contas eleitorais, como bem asseverou Pereira (2018): “a doutrina e jurisprudência aplicam o caráter jurisdicional à prestação de contas eleitorais também”. 

Corrobora essa colocação as normatizações trazidas pelo Tribunal Superior Eleitoral nas Resoluções nº 23.604/2019 e 23.607/2019, que tratam das prestações de contas anuais e eleitorais, respectivamente, ao exigir a constituição de advogado e a aplicação de preclusão dos atos processuais. 

Logo, todas as manobras judiciais eleitorais são passíveis em sede de processos de prestações de contas, tais como embargos de declaração, recursos, querella nulitatis, impugnação ao cumprimento de sentença, etc. 

Dessas ações, podem implicar aos prestadores de contas a aplicação de multa, a devolução ao erário, dentre outras sanções, excetuadas a declaração de inelegibilidade ou a cassação/cancelamento/indeferimento de registro de candidatura, de diploma ou de mandato.

Da aplicabilidade da ação rescisória nas prestações de contas eleitorais e anuais

Num breve resgate cronológico, se depreende que à época da edição da LC 86/1996 que restringiu a possibilidade da ação rescisória em ações eleitorais, a Justiça Eleitoral tratava as prestações de contas na seara administrativa.

Passados mais de 20 anos, as prestações de contas passaram a ter caráter judicial, conforme já assentado alhures. Ou seja, sequer poderia o legislador contemplar a possibilidade de ação rescisória nas prestações de contas porque elas eram de natureza administrativa. 

Acontece que, com o advento da mudança legislativa já mencionada, abre-se um novo horizonte para reflexão dos eleitoralistas sobre a aplicabilidade das ações rescisórias nas prestações de contas. 

Acompanhe o raciocínio. 

Eventual rescisão da sentença de mérito das prestações de contas anuais ou eleitorais tem o condão de alterar o resultado da votação? Pode ensejar a cassação de mandato, de diploma ou cancelamento do registro de candidatura? 

Para todas elas, a resposta é: não. 

Ora, se o fundamento da limitação da ação rescisória no TSE é garantir a estabilidade política decorrente do resultado do processo eleitoral levado a cabo pela Justiça Eleitoral, a admissão de ação rescisória nas prestações de contas em nada afetará o bem jurídico tutelado por aquela norma, muito pelo contrário, passa ao largo dela.

A rescisão limitar-se-ia a corrigir a imposição de devolução de valores ao erário ou dirimir aplicação de multas e as consequências secundárias decorrentes disso (suspensão de repasse de cotas de fundo público ou impedimento de obter quitação eleitoral). 

Conclusão

Ao permitir que a própria Justiça Eleitoral aprecie ações rescisórias relacionadas a decisões de contas eleitorais, reforça-se a eficiência e a especialização no tratamento desses casos. Este modelo evita inconsistências que poderiam surgir se diferentes ramos do judiciário tratassem aspectos diferentes do mesmo processo eleitoral, garantindo assim uma interpretação mais uniforme e especializada das leis eleitorais. 

Acrescido a isso, atender-se-ia o dispositivo constitucional de garantir o acesso dos jurisdicionados para prevenir ameaça ou lesão a direito. 

Portanto, o caráter acessório da ação rescisória e sua subordinação a uma decisão judicial preexistente confirmam a adequação de sua apreciação pela Justiça Eleitoral, consolidando a integralidade e a especialização necessárias para lidar com a complexidade das questões financeiras partidárias e eleitorais. 

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Referências

BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. [S. l.], 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/codigo-eleitoral-1/codigo-eleitoral-lei-nb0-4.737-de-15-de-julho-de-1965. Acesso em: 22 abr. 2024. 

Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. Dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 17 e 14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal. [S. l.], 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9096.htm. Acesso em: 22 abr. 2024. 

Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. [S. l.], 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 22 abr. 2024. 

PEREIRA, Brenda de Quadros. O CARÁTER JURISDICIONAL DO INSTITUTO PRESTAÇÃO DE CONTAS ELEITORAL E PARTIDÁRIA: DESENVOLVIMENTO, ASPECTOS NEGATIVOS E POSITIVOS. REVISTA DO TRE-RS, Porto Alegre, ano 23, v. 1, n. 45, p. 101-128, Julho/Dezembro 2018. Disponível em: https://ava.tre-rs.jus.br/ejers/pluginfile.php/2857/mod_resource/content/1/Revista_do_TRE-RS_-_45.pdf. Acesso em: 22 abr. 2024. 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.459, de 17 de março de 1999. Direito Constitucional e Eleitoral. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ação Rescisória. [S. l.], 22 abr. 2024. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=385508. Acesso em: 22 abr. 2024. 

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Súmula nº 33, de 24 de junho de 2016. Somente é cabível ação rescisória de decisões do Tribunal Superior Eleitoral que versem sobre a incidência de causa de inelegibilidade. [S. l.], 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/sumulas/sumulas-do-tse/sumula-tse-no-33. Acesso em: 22 abr. 2024. 

Autores

  • é bacharel em Direito, servidor efetivo do Tribunal Regional Eleitoral de Roraima, pós-graduando em especialização em financiamento de campanha e prestação de contas anuais e eleitorais.

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