Opinião

Descumprimento de normas trabalhistas pode levar à prisão 

Autores

  • Marcelo Ribeiro

    é pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca doutor em Direito pela Universidade de Lisboa mestre em Direito e Estado bacharel em Direito pela Universidade de Brasília sócio da área de Compliance Investigações e Penal Empresarial no Lefosse ex-procurador da República e ex-assessor de procuradora-geral da República junto ao Supremo Tribunal Federal.

  • Paulo Peressin

    é counsel da área da trabalhista do Lefosse

2 de março de 2024, 6h06

O ano de 2024 começa com uma questão tanto intrigante quanto interessante: os maiores editoriais de imprensa do mundo noticiaram a condenação à prisão de Muhammad Yunus, cidadão bengali contemplado com o Prêmio Nobel da Paz em 2006, por descumprimento de normas trabalhistas.

O empresário Muhammad Yunus foi Nobel da Paz

Yunus e outros três encarregados de uma empresa de telecomunicações da qual Yunus é fundador, chairman e administrador, foram condenados por, alegadamente, terem deixado de constituir fundos obrigatórios, tais como o Fundo de Contribuição dos Trabalhadores e o Fundo de Previdência. Yunus enfrenta mais de cem processos judiciais em Bangladesh por violações trabalhistas.

Independentemente da discussão sobre o acerto ou não desta decisão, a qual, a propósito, parece revelar disputas políticas subjacentes, o fato nos chama a atenção em razão de Bangladesh contar com uma legislação robusta (The Bangladesh Labour Act) que regulamenta não apenas as obrigações a serem observadas nas relações trabalhistas, mas, também, as penas a serem impostas em caso de condutas como, por exemplo, “pagamento de remuneração inferior ao salário-mínimo” (pena prevista de até um ano de prisão); “deixar de implementar acordo ou decisão judicial trabalhista” (até dois anos de prisão) ou “praticar greve ilegal” (pena de até seis meses de prisão).

Trata-se de uma espécie de legislação híbrida trabalhista-criminal, que visa dar maior efetividade às disposições legais aplicáveis às relações de trabalho. Assim também ocorre em países como o Malaui, em que os juízes na execução trabalhista têm a possibilidade de praticar atos que podem incluir a ordem de prisão do devedor trabalhista injustificado.

No Brasil, a CLT, a única menção histórica a uma eventual pena dizia respeito a potenciais infrações ao direito de greve, mas, que fora revogada há mais de duas décadas. O Código Penal CP, por sua vez, traz o artigo 203, prevendo pena de detenção e multa a todo indivíduo que frustrar, “mediante fraude ou violência”, direitos trabalhistas.

Portanto, a princípio, a impressão que fica é a de que o ordenamento jurídico brasileiro parece mais brando em relação a práticas que possam ser compreendidas como desvirtuamento de direitos trabalhistas, mas, a pergunta necessária é: seria possível uma condenação à prisão por descumprimento de normas trabalhistas no Brasil?

Há casos isolados que defendem prisão do devedor trabalhista. Há uma série de estudos, artigos e até mesmo decisões com argumentos relevantes a este respeito.

A prisão civil por dívida trabalhista estaria autorizada a partir de uma interpretação do artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, o qual admite a prisão por dívida “pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”, assim como também prevê o Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional sobre direitos humanos ratificado pelo Brasil e com eficácia acima da legislação ordinária, como previsto na Constituição.

Além dessa hipótese teórica, em que a prisão civil é bastante questionável, há outras possibilidades de discussão criminal envolvendo o descumprimento de normas trabalhistas e essas, sim, nos parecem bem mais relevantes sob a ótica jurídica.

Nos referimos ao descumprimento de normas ligadas à segurança, saúde e dignidade dos trabalhadores que, em maior ou menor grau, possam contribuir para violações à integridade física, emocional e civilizatória.

Infelizmente, não é raro nos depararmos com notícias sobre resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão ou, ainda, no exercício da advocacia trabalhista empresarial, sobre acidentes de trabalho com consequências graves, incluindo a morte de empregados ou prestadores de serviços.

Nessas hipóteses, a despeito de a norma trabalhista não trazer implicações expressas de cunho criminal, é certo que a investigação das condutas dos atores envolvidos pode culminar na condenação criminal dos responsáveis pela gestão das empresas em caso de constatação de ação ou omissão que possa ter contribuído para o resultado, além de uma quase pena secundária pela exposição dos envolvidos e da própria empresa nos meios de comunicação.

A análise das implicações criminais neste tipo de situação demanda acompanhamento e investigação aprofundados sobre as condutas, que podem compreender o recrutamento e contratação, eventualmente com equiparação, devida ou não, às figuras do aliciamento de trabalhadores para trabalhos em outros lugares do país ou mesmo para o exterior.

Isso sem contar com a própria figura do artigo 149 do CP, relativa à redução a condição análoga à de escravo. Para além da restrição à liberdade, ponto menos incontroverso na jurisprudência para a caracterização de crime, passa por um diálogo com as normas trabalhistas quando se discutem, por exemplo, os conceitos de “jornada exaustiva”, ou de “condições degradantes de trabalho”, o que já foi considerado suficiente para a caracterização do crime, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, outro ponto de contato entre eventual falta de cumprimento de normas trabalhistas e o direito penal reside no campo do acidente do trabalho.

Em relação ao tema, a observância das normas de segurança, a adoção dos equipamentos de proteção individual, a existência de treinamentos aos empregados são temas associados ao acompanhamento das causas dos sinistros e que possuem direta conexão também com a apuração de eventual negligência, ou mesmo de dolo eventual por parte dos responsáveis pela gestão dos empregadores, para além dos desgastes próprios que a própria investigação em si representa.

Portanto, ainda que sem a expressividade do caso asiático no ano que se inicia, a legislação brasileira possui um aparato criminal relevante e recomenda a interação interdisciplinar para o trato das questões relacionadas à legislação trabalhista, uma vez que os eventos, efetivamente, podem repercutir em múltiplas dimensões e perante variadas instâncias de controle e investigação.

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