Opinião

Enquadramento da 'mula' sob perspectiva do tráfico de pessoas

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12 de novembro de 2023, 6h00

O crime de tráfico de drogas possui enquadramento no artigo 33 da Lei nº 11.343, de 2006, que prevê em seu caput quais foram as condutas elencadas pelo legislador como passíveis de punição, quais sejam, “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Não raras vezes, os agentes do crime, ou seja, os traficantes de drogas ilícitas se valem de pessoas com baixo grau de instrução para fazer o transporte dessa droga, ficando responsáveis por introduzi-la em território nacional, especialmente através dos nossos aeroportos internacionais. Muitas vezes, essas pessoas nem sequer sabem a natureza ou a quantidade de droga que estão transportando e nem para onde ou para quem elas serão destinadas. Esses indivíduos são chamados pela doutrina e pela jurisprudência de “mulas” do tráfico, referência ao mamífero quadrúpede conhecido por ser um animal robusto, que é muito utilizado em todo o mundo para a carga dos mais diversos materiais.

Como esses transportadores costumam ser primários e de bons antecedentes, embora respondam pelo crime de tráfico de drogas, normalmente são beneficiados pela regra da redução da pena de um sexto a dois terços, aplicando-se o § 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, desde que não se dediquem às atividades criminosas nem integrem organização criminosa, o que pode levar à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos (artigo 44 do Código Penal), já que dificilmente a pena aplicada ultrapassará os quatro anos de reclusão.

Mas será que essa análise e a aplicação dessa minorante têm sido a necessária e adequada medida de justiça às milhares de “mulas”, homens e mulheres, que todos os dias atravessam as fronteiras do nosso país? Para responder a essa pergunta, precisamos fazer um recorte dessa situação sob a ótica do Protocolo de Palermo (protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças), que foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico através da edição do Decreto nº 5.017, de 2004 e do tipo penal previsto no artigo 149-A do Código Penal, incluído pela Lei nº 13.344, de 2016.

Segundo o artigo 3, alínea ‘a’, do Protocolo de Palermo, a expressão  “tráfico de pessoas” significa “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”.

É possível perceber que o tráfico de pessoas desenvolve-se através de uma ação ou ato (recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas), um meio (ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra) e uma finalidade ou objetivo (exploração, seja sexual ou relacionada ao trabalho ou até à remoção de órgãos).

A partir dessa ótica, podemos enxergar que o crime de tráfico de drogas, com utilização de “mulas” envolve o recrutamento de pessoas e acaba tendo por finalidade a exploração do trabalho daquela pessoa. Portanto, a ação e a finalidade são facilmente identificáveis. O componente, no entanto, que nem sempre está presente é o meio utilizado. Mas, não raras vezes, existem situações em que há “mulas que aceitam o trabalho” justamente porque são coagidas em razão da sua situação de vulnerabilidade.

E o interessante, nesse ponto, é que, diante desse contexto, primeiro, a pessoa deixa ser considerada agente do crime de tráfico de drogas e passa a ser encarada como vítima de tráfico de pessoas; e, segundo, o consentimento dessa vítima passa a ser considerado irrelevante “se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a” (alínea b do artigo 3 do Protocolo de Palermo).

Isso se deve ao fato justamente do meio empregado pelo recrutador, que se vale, como dito anteriormente, de mecanismos de “ameaça, uso da força, coerção, abdução, fraude, engano, abuso de poder ou de vulnerabilidade, ou pagamento ou benefício em troca do controle da vida da vítima” [1], que descaracterizam, minam o consentimento da vítima, muito próximo do que ocorre nos crimes de autoria mediata, porque, em ambas as situações, o agente, de certo modo, domina a vontade alheia.

Essa análise e distinção, por certo, não é fácil de ser feita, o que tem levado potenciais vítimas de tráfico de pessoas a responderem pelo crime de tráfico de drogas, ainda que na sua forma privilegiada (§ 4º do artigo 33 da Lei de Drogas), quando, na verdade, poderiam e deveriam receber o tratamento de vítimas, com direito não só a assistência e proteção (artigo 6), mas também ao repatriamento (artigo 8, ambos do Protocolo de Palermo).

Essa possibilidade se torna ainda mais difícil de se concretizar quando analisamos o tipo penal previsto no artigo 149-A do Código Penal, que prevê como finalidade do crime apenas a remoção de órgão, tecido ou partes do corpo (inciso I); a submissão a trabalho em condições análogas à de escravo (inciso II); a submissão a qualquer tipo de servidão (inciso III); a adoção ilegal (inciso IV) e a exploração sexual (inciso V). Não há, portanto, a finalidade de recrutamento da pessoa para a prática de outros crimes.

Um estudo sobre vítimas de tráfico de pessoas exploradas para transporte de drogas, conduzido pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodoc), em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2022, constatou, em uma perspectiva comparada, que “outros países preveem expressamente em seus textos legais o cometimento de delitos como uma finalidade possível para o tráfico de pessoas”.

A título de exemplo, o estudo acima cita o artigo 177 do código espanhol, que prevê em seu tipo penal a possibilidade de incriminação do agente que pratica o delito com o propósito de “exploração para realizar atividades criminosas” (1.c) e o código penal uruguaio, alterado em 2018 para contemplar em seu artigo 4º, ‘A’, “outras formas de exploração” que não aquelas inicialmente previstas originalmente no tipo penal, tornando aberto o conceito de “exploração”.

Além disso, em ambas as legislações, a espanhola e a uruguaia, há previsão de que a vítima de tráfico de pessoas/seres humanos ou de exploração de pessoas ficará isenta de punição pelas infrações cometidas na situação de exploração sofrida, ressalvando a primeira que “desde que a sua participação nelas tenha sido uma consequência direta da situação de violência, intimidação, engano ou abuso a que foi submetida e que exista uma proporcionalidade adequada entre a referida situação e o ato criminoso realizado”.

O estudo da Unodoc, mencionado alhures, ressalta que, no Brasil, “a expressa previsão de que o cometimento de delitos possa estar diretamente relacionado à situação de exploração sofrida pela vítima de tráfico de pessoas, já esteve em pauta no Congresso Nacional”. Segundo o estudo, o Projeto de Lei do Senado n° 479 previa um parágrafo com a seguinte proposição:

§5º – A vítima de tráfico de pessoas ficará isenta da pena correspondente a infrações penais que tenha cometido em razão da situação de exploração por ela sofrida [2].

O Projeto de Lei do Senado nº 479 culminou na aprovação da Lei nº 13.344 de 06 de novembro de 2016, que alterou o Código Penal Brasileiro no tema de tráfico de pessoas. Porém, o texto do §5º inicialmente previsto no Projeto de Lei foi suprimido após a análise da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o que resultou na aprovação da Lei sem tal previsão [3].

Em que pese a nossa legislação não ter avançado nessa seara, é possível deduzir a partir da interpretação conjugada do Protocolo de Palermo e do artigo 149-A do Código Penal que as “mulas” do tráfico transnacional de drogas podem ser consideradas vítimas do tráfico internacional de pessoas.

Para isso, precisamos entender que os traficantes de drogas enquadram-se em três categorias principais, conforme tese de doutorado de Kelly e Serio, citados por Bruno Porangaba[4], podendo ser: (1) pouco organizados; (2) relativamente organizados; e (3) sofisticados em termos de organização. Esses últimos são assim descritos na referida tese de doutorado:

“(…) normalmente operam internacionalmente e são, por essa razão, os mais perigosos e difíceis de combater. Normalmente, dispõem de acesso a documentos falsos ou tem capacidade de falsifica-los, conseguem encontrar rotas alternativas quando um determinado caminho é bloqueado e contam com uma infraestrutura logística tanto nos países de trânsito quanto de destino.”

Nessa última categoria, portanto, os traficantes “possuem à disposição diversos mecanismos para cooptar pessoas, sobretudo quando o objetivo é traficá-las internacionalmente, o que justifica a amplitude de proteção“.[5]

E dentro da divisão de tarefas que se verifica dentro de uma “sofisticada” organização criminosa para tráfico transnacional de drogas, destaca-se a figura dos transportadores, ou seja, das “mulas”, que, “em decorrência da situação de vulnerabilidade econômica e social, se submetem aos riscos dos trabalhos no narcotráfico em troca de remuneração” [6].

Conclui Bruno Porangaba que, “através de artifícios fraudulentos, pessoas (“mulas”), que vivenciam uma situação de vulnerabilidade social e econômica, podem vir a ser recrutadas ou aliciadas para que as suas forças de trabalho sejam exploradas exaustivamente, colocando em risco a sua dignidade, liberdade individual e vida, em prática similar à de escravatura”. [7]

Nesses casos, “as ‘mulas’ do tráfico transnacional de drogas não mais seriam responsabilizadas pelo delito de tráfico transnacional de drogas com a causa de diminuição de pena (artigo 33, §4º c/c artigo 40, I, ambos da Lei n. 11.343/2006), estando amparadas por uma das causas supralegais de exclusão da culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa”. [8]

Portanto, a depender das circunstâncias do caso concreto, em especial quando comprovada a situação de extrema vulnerabilidade ecônomica e social da “mula”, e presentes as definições do artigo 3 do Protocolo de Palermo e/ou os elementos tipificadores do artigo 149-A do Código Penal, poderemos estar diante de uma vítima do tráfico de pessoas e não de agente criminoso que praticou “tráfico privilegiado”.

Referências
ALVES FILHO, Francisco. Infância Perdida. Revista IstoÉ, maio de 1997, p. 49 apud SOUZA, Adelson Batista de. O crime organizado e o narcotráfico: uma análise doutrinária e jurisprudencial. Monografia (Monografia em Direito) – Universidade Tuiuti do Paraná, 2002.

Estudo sobre vítimas de tráfico de pessoas exploradas para transporte de drogas. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2022. Disponível em https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/mjsp-lanca-estudo-sobre-vitimas-de-trafico-de-pessoas-exploradas-para-transporte-de-drogas/livro-trafico-de-pessoas-transporte-de-drogas-portugues-versao-2-1-1.pdf. Acesso em 06 de fevereiro de 2023.

KELLY, R. J., MAGDAN, J.; SERIO, K. D. Illict Trafficking: A Reference Handbook. California: ABC-CLIO Inc, 2005 apud PIRES, Mônica Sodré. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: condicionantes domésticos dos Estados e formação da agenda brasileira. São Paulo: Tese de Doutorado – Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, 2017, pp. 24-25, apud RODRIGUES, Bruno Porangaba. A “mula” do tráfico transnacional de drogas como vítima do tráfico internacional de pessoas: uma análise crítica a partir do filme Maria Cheia de Graça (Maria, Llena Eres de Gracia). 2018, 110 fls. Monografia (Bacharelado em Direito) – Programa de Graduação em Direito. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018

Projeto de Lei do Senado n° 479, de 2012. Autoria: CPI – Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas no Brasil – 2011. Disponível em https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pls-479-2012. Acesso em 08 de fevereiro de 2023.

Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Unodc.org, 2023. Disponível em: < https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html >. Acesso em 06 de fevereiro de 2023.

[1] Disponível em: < https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html >. Acesso em 06 de fevereiro de 2023.

[2] Projeto de Lei do Senado n° 479, de 2012. Autoria: CPI – Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas no Brasil

– 2011. Disponível em https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pls-479-2012.

Acesso em 08 de fevereiro de 2023.

[3] Estudo sobre vítimas de tráfico de pessoas exploradas para transporte de drogas. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2022, p. 27.

[4] KELLY, R. J., MAGDAN, J.; SERIO, K. D. Illict Trafficking: A Reference Handbook. California: ABC-CLIO Inc, 2005 apud PIRES, Mônica Sodré. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: condicionantes domésticos dos Estados e formação da agenda brasileira. São Paulo: Tese de Doutorado – Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, 2017, pp. 24-25, apud RODRIGUES, Bruno Porangaba. A “mula” do tráfico transnacional de drogas como vítima do tráfico internacional de pessoas: uma análise crítica a partir do filme Maria Cheia de Graça (Maria, Llena Eres de Gracia). 2018, 110 fls. Monografia (Bacharelado em Direito) – Programa de Graduação em Direito. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018, p. 87.

[5] Idem. Ibidem, p. 88.

[6] ALVES FILHO, Francisco. Infância Perdida. Revista IstoÉ, maio de 1997, p. 49 apud SOUZA, Adelson Batista de. O crime organizado e o narcotráfico: uma análise doutrinária e jurisprudencial. Monografia (Monografia em Direito) – Universidade Tuiuti do Paraná, 2002, p. 20.

[7] Op. cit, p. 89.

[8] Idem. Ibidem, p. 90.

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