Opinião

É urgente a formação de profissionais da mediação na perspectiva de gênero

Autores

  • Juliana Ribeiro Goulart

    é advogada professora da Unisociesc doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina e conselheira da Comissão de Mediação e Conciliação do Conselho Federal da OAB.

  • Gabriela Jacinto Barbosa

    é mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Cesusc membra do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) membra do Grupo de Pesquisa e Estudos GFAM professora da Faculdade Cesusc e advogada.

14 de abril de 2024, 14h25

Os meios adequados de solução de conflitos têm conquistado cada vez mais espaço no sistema de Justiça. Um desses meios é a mediação, que pode ser conceituada como uma forma de tratamento dos conflitos em que uma terceira pessoa, denominada mediadora, incentiva o diálogo entre as partes, para que elas próprias criem saídas proveitosas de satisfação mútua.

A mediação na modalidade judicial vem sendo aplicada especialmente no âmbito do Judiciário nos casos de Direito das Famílias, com a elaboração de acordos que resolvem questões adicionais à dissolução de união estável ou divórcio, como: alimentos, guarda, regulamentação da convivência, entre outros. Contudo, há que se ter o cuidado com o seu uso indiscriminado, especialmente nos casos que envolvam violência.

A sessão de mediação não suspende medidas judiciais, tampouco pode ser cenário para a ocorrência ou perpetuação de estereótipos de gênero. O motivo é obvio: a sessão de mediação não foi criada para se renovar violências. Pelo contrário, a mediação é uma forma não adversarial e não violenta de tratar os conflitos, ou seja, um chamamento ao diálogo e à escuta.

Perspectiva de gênero no âmbito da mediação

No que diz respeito ao processo judicial, destaca-se o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, que passou a vigorar em outubro de 2021 [1], tornando-se obrigatório em março de 2023 pela Resolução nº 492 do CNJ. O protocolo é considerado um instrumento de transformação para que o Poder Judiciário busque eliminar preconceitos, estereótipos e repetição de desigualdade nos julgamentos. Contudo, o mecanismo nada menciona quanto à mediação.

Enquanto esse caminho é pavimentado, precisa-se pensar em algumas diretrizes, que serão capazes de suscitar e levantar questões pertinentes à perspectiva de gênero para novos horizontes interseccionalizados no âmbito da mediação, e que a sua aplicabilidade não incorra em danos e perpetuação de violências.

Aponta-se, inicialmente, a importância dos cursos permanentes de mediadores judiciais, que certamente, possuem um papel fundamental; mas, também, parece urgente revisar a ementa presente no Anexo I da Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que trata do conteúdo programático do Módulo Teórico dos cursos de formação.

Ele deve ser atualizado expressamente na perspectiva de gênero, para tratar do tema atinente à violência doméstica e familiar, que permeiam as relações de diversas famílias no Brasil e desaguam nos tribunais cotidianamente. A proposta está em consonância com a ODS 5 (igualdade de gênero) da Agenda ONU 2030, um compromisso firmado no protocolo.

O ambiente promovido pelos mediadores, por exemplo, deve garantir que as mulheres sejam acolhidas, e que o procedimento seja conduzido com empatia e com qualificação técnica apropriada. Não é incomum comum que as mulheres sejam compelidas a participarem de sessões de mediação contra a sua vontade, ou que as sessões sejam conduzidas por pessoas não capacitadas para lidarem com as questões de gênero (Goulart, 2023, p. 29).

Spacca

No que diz respeito à mediação para processos que envolvam as mulheres, Oscar Chase lembra que alguns estudos indicam que os meios alternativos expandem a desvantagem da parte hipossuficiente, como no caso de sujeição obrigatória em casos de violência doméstica à mediação. Isso pode ser explicado, segundo o autor, porque os mediadores ao reforçarem a participação dos sujeitos na composição, adotam uma postura de neutralidade, mesmo quando as pessoas estão em alguma desvantagem. Se por um lado isso significa que estão dando oportunidade para que os próprios interessados resolvam suas questões, acaba por expressar valores e um potencial fortalecimento do poder de barganha de quem está em posição vantajosa (2014, p. 185).

No passado, diferenças entre homens e mulheres serviram como justificativa para deixá-las à margem da sociedade, marginalizando seus direitos, justificando, inclusive, as desigualdades de gênero. Porém, na atualidade tais diferenças, passam a indicar a responsabilidade de toda e qualquer instituição que preze pelos direitos humanos, e que devem, necessariamente, incorporar em suas práticas uma análise de gênero (Crenshaw, 2002, p. 172).

É bastante comum que os mediadores não leiam o processo antes de iniciar uma mediação. Isso significa dizer que muitas vezes são surpreendidos com expressões estigmatizadoras e violentas já reproduzidas do processo e que ecoam para os espaços de fala oportunizados pela mediação. Não é incomum que mediadores tomem conhecimento de que o conflito envolve violência de gênero durante a narrativa das partes.

Por conta disso, é importante que nas ações atinentes ao Direito das Famílias, antes de iniciada a sessão, seja mencionado o compromisso do Poder Judiciário em rechaçar qualquer forma de violência de gênero, sob pena de encerramento da mediação. O mediador é quem dirige o procedimento e como tal, não pode permitir que mulheres sejam revitimizadas ou violentadas. Nesses termos, tal conduta não configura qualquer ofensa à imparcialidade.

Ao conduzir perguntas para esclarecer o caso, os mediadores precisam ter cuidado e atenção, procurando evitar a criação de qualquer nova oportunidade de violência. É preciso estar atento para qualquer atitude de deboche, expressões machistas, e julgamentos morais que possam gerar nas mulheres situações de vulnerabilidades, decorrentes dos atos praticados nas sessões de mediação.

Quando participam de uma mediação, as mulheres devem se sentir seguras e aptas a dialogar com a outra parte. Importante também ficar claro que a mediação é um processo voluntário, e que ninguém pode ser obrigado a ali permanecer caso não se sinta confortável para abordar o conflito ou se encontrar com a pessoa com quem tem conflitos.

Fazendo uma analogia com o que preceitua o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, em eventual a aproximação dos sujeitos, algumas perguntas poderiam ser feitas, como, p.ex.: alguma das pessoas tem algum tipo de vulnerabilidade que possa tornar a sessão desconfortável? (CNJ, 2021, p. 45-54)

A abordagem sugerida pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que oferece uma estrutura valiosa para a compreensão e abordagem de situações sensíveis durante audiências judiciais, também deve ser aplicado nas sessões de mediação. A prática consideraria potenciais vulnerabilidades das partes, sendo fundamental para estabelecer as bases de um ambiente mais equitativo e respeitoso. Nesse contexto, é preciso também avaliar o uso de estratégias específicas, visando garantir a integridade e o bem-estar dos envolvidos.

Caso a parte deseje participar da sessão, quem lhes prestar assistência e orientação jurídica (advocacia ou defensoria pública) pode estabelecer como estratégia falar em nome dela para garantir que não haja novo ato de violência, ou pode-se pensar na utilização da mediação indireta, também chamada de “shuttle mediation[2], em que as partes têm apenas encontros individuais com os mediadores (virtuais ou presenciais), tudo a depender do caso concreto.

Escutar sem julgamento e o uso de linguagem de não-violenta

Por fim, seria bastante pretensioso conferir à técnica da mediação sozinha o poder de modificar as estruturas que discriminam ou estigmatizam. Sem dúvida, a mudança em direção a menores índices de violência contra as mulheres passam pela reflexão e pela ação crítica, que envolve famílias, comunidade, universidades, instituições públicas e privadas. E mais, passa pela compreensão fundamental das dinâmicas e estruturas de poder e de violências estruturais que se perpetuam na sociedade.

Contudo, é inegável que quando mediadores e mediadoras estão bem-preparados e capacitados adequadamente, de alguma forma estarão contribuindo para a tomada de consciência dos participantes envolvidos no sistema de Justiça sobre a importância de escutar sem julgamento, sobre a necessidade de utilização de uma linguagem de não violência, entre outros.

A mediação pode romper com a lógica de dominação e de aniquilação do outro como proposta cultural, como um percurso de emancipação individual e coletiva. A mediação pode dar vida aos direitos fundamentais, mas não deve jamais viabilizar que sejam violados. Nos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, estejamos especialmente vigilantes, pois como lembram Ana Lucia Sabadell e Lívia de Meira Lima Paiva (2019, p. 10), quando uma mulher busca o Poder Judiciário, ela não está situação de empoderamento.

Necessidade incontestável

Em síntese, a necessidade de formação dos profissionais da mediação judicial na perspectiva de gênero é uma realidade incontestável. No entanto, é importante reconhecer que os mediadores não são salvadores da pátria nem detentores de poderes mágicos para resolver todas as questões. A incorporação da perspectiva de gênero na formação dos mediadores é apenas um passo na direção certa, mas não é a solução definitiva para todas as complexidades dos conflitos familiares e de gênero.

É necessário um esforço contínuo e colaborativo de todas as partes envolvidas, incluindo instituições, comunidades e indivíduos, para enfrentar de maneira eficaz as desigualdades de gênero e a violência doméstica e familiar. A mediação, quando bem conduzida e embasada em práticas sensíveis ao gênero, pode contribuir significativamente para esse processo, mas deve ser vista como parte de um conjunto de medidas e não como uma solução isolada.

 


Referências

CHASE. Oscar G. Direito, Cultura e ritual: Sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Estudos Feministas, ano 10, n° 1/2002, pp. 171-188.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com perspectiva de Gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça. 2021.

SABADELL, Ana Lucia; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Diálogos entre feminismo e criminologia crítica na violência doméstica: justiça restaurativa e medidas protetivas de urgência. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 153/2019 | p. 173 – 206 | Mar / 2019 DTR\2019\23904.

GOULART, Juliana Ribeiro. Cultura de mediação na Administração Pública: uma abordagem para o apoio a gestantes e lactantes no serviço público. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Florianópolis, 2023.

[1] Para saber mais: protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf.

[2] Para saber mais sobre serviços de mediação indireta, acessar: https://directmediationservices.co.uk/shuttle-mediation-uk/.

 

Autores

  • é mestra e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mediadora judicial e professora da Faculdade Cesusc.

  • é mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Cesusc, membra do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), membra do Grupo de Pesquisa e Estudos GFAM, professora da Faculdade Cesusc e advogada.

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