Opinião

A querela nullitatis como alternativa ao jurisdicionado vítima de litigância predatória

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21 de abril de 2024, 6h02

A litigância predatória é pauta necessária entre os operadores do Direito. Com elevado custo ao sistema de Justiça, o tema tem como último capítulo, ainda em aberto, o julgamento do Tema Repetitivo nº 1.198 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja matéria afetada discute o poder geral de cautela pelos magistrados, quando vislumbrados indícios da litigância predatória.

Cenário que foge ao rotineiro na litigância predatória, originada majoritariamente na captação ilícita de clientes, é o ajuizamento de ações em massa por “autores” que não contrataram os causídicos que postulam e sequer têm ciência da ação. Este último caso foi identificado em processo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ-RN) em que a “autora” somente tomou conhecimento da existência do processo após bloqueios em sua conta bancária após a condenação por litigância de má-fé no julgamento do recurso inominado.

O desfecho do caso é um dos três possíveis verificados em outros processos em que o mesmo causídico demandou em nome de terceiros contra a mesma instituição financeira, que aparece entre as cinco maiores litigantes no Juizado Especial daquele estado, no setor financeiro, que eram (1) a procedência da demanda com o pagamento da indenização ao causídico; (2) a improcedência da ação com a condenação do “autor” em custas e honorários, suspensa em razão da gratuidade da justiça; ou (3) a improcedência da ação com a condenação do “autor” em custas, honorários e litigância de má-fé.

É nesta última hipótese, que o “autor”, além de vítima da litigância predatória, é condenado a arcar com os custos da litigância que não propôs. A discussão do título judicial executado, no sistema dos Juizados Especiais, que não admite a rescisão de seus julgados [1] [2], reclamaria a oposição de embargos à execução para discussão da nulidade do processo em aplicação analógica do artigo 52, inciso IX, alínea “a”, da Lei nº 9.099/95 [3], mediante a garantia do juízo, que nem sempre é possível.

A querela nullitatis como alternativa

Uma segunda via, entretanto, surge com o ajuizamento da actio querela nullitatis insanabilis para discutir a nulidade da sentença, por vício que afeta o plano da existência do processo, demonstrando que jamais houve a outorga de poderes ao outorgante. O manejo da ação, reconhecida historicamente, é validado em precedentes mais recentes, a exemplo do julgamento da Ação Rescisória nº 569/PE pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça [4], que distinguiu a hipótese de cabimento da ação rescisória da querela nullitatis, sem prejuízo da aplicação do princípio da fungibilidade, desde que observada a competência.

Spacca

Para o STJ, a discussão da existência do processo, que afetaria a formação da coisa julgada, não admite a desconstituição do “julgado” que se apresenta nulo através da ação rescisória, mas a própria pretensão pela declaração da nulidade, no plano de existência e da validade, sujeita a impugnação pela querela nullitatis, como leciona Elie Eid [5].

O que foge ao comum nesses casos é a declaração de inexistência não advém do réu, por exemplo, que aduz não ter sido citado, mas do “autor” que jamais outorgou poderes ao causídico para demandar a ação. A situação, entretanto, não é estranha à doutrina, sendo referenciada pelas professoras Teresa Arruda Alvim e Maria Lúcia Lins Conceição, que apresentam a necessidade de visualização da existência do processo também sob o viés da capacidade postulatória [6] [7].

No caso, fundamentou a juíza do 8º Juizado Especial Cível da Comarca de Natal, após valorar o cotejo probatório, que “a presente ação anulatória leva ao convencimento de que de fato não houve manifestação da vontade por parte da autora quanto ao ajuizamento da ação originária, não podendo ser responsabilizada por ato ao qual não deu causa.”.

Assim, sob o viés da inexistência, a querela nullitatis serve de instrumento para demonstrar inexistência da outorga de poderes pela “autora” e desconstituir os atos praticados no processo que ensejam a condenação em custas e honorários sucumbenciais dos “autores” que não demandaram em juízo.

 


[1] Art. 59. Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei.

[2] Está em julgamento no STF a ADPF nº 615 que discute a possibilidade de apreciação de rescisão de decisão transita em julgado fundada em entendimento declarado inconstitucional. No processo foi deferida a liminar pelo min. Luís Roberto Barroso, que destacou que “pela literalidade do art. 59 da Lei n.º 9.099/1999, chega-se a uma situação jurídica excêntrica, na qual uma sentença inconstitucional proferida por um Juizado Especial, em cognição sumária, torna-se imune à impugnação, enquanto sentenças proferidas pelos demais órgãos judiciais, em rito ordinário, podem ser rescindidas. […] Isto porque a desconstituição de decisões judiciais inconstitucionais, mas do que tutelar interesses das partes, visa a preservar a supremacia da constituição, quer tenham sido elas proferidas no âmbito dos procedimentos ordinários, quer tenham elas origem em procedimento sumário, sumaríssimo ou especial.”. (https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5760306) STF. ADPF 615/DF. Rel. min. Luís Roberto Barroso. Pleno. Decisão Monocrática em 02/09/2019.

[3] Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: […] IX – o devedor poderá oferecer embargos, nos autos da execução, versando sobre: […] a) falta ou nulidade da citação no processo, se ele correu à revelia;

[4] STJ. AR n. 569/PE, Rel. min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, Julgado em 22/9/2010, DJe de 18/2/2011.

[5] Para o autor, a querela tem “cabimento voltado eminentemente para o reconhecimento de inexistência ou de ineficácia processual”. EID, Elie Pierre. Impugnação das decisões judiciais: reconstrução da relação entre Recursos e Ações Autônomas de Impugnação. São Paulo: JusPodivm, 2022. p. 208.

[6] “Em relação às partes, para que o processo exista é necessário que o procurador do autor, além de ser habilitado, tenha legitimidade para exercer concretamente o munus que lhe foi outorgado. Uma vez que o processo existe, a capacidade e a legitimidade processual são requisitos para a sua validade. Portanto, o pressuposto processual de existência é a “capacidade postulatória”, e os pressupostos de validade são, concretamente, a capacidade e legitimidade processual.“ ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria. Ação Rescisória e Querela Nullitatis [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/acao-rescisoria-e-querela-nullitatis-ed-2022/1712827575. Acessado em 14 abr. 2024.

[7] Pertinente ao tema, sem distinguir o cabimento da querela nullitatis que também afeta a hipótese de eficácia, o comentário de Fredie Didier Jr., na versão comercial de sua tese de titularidade, sobre a imprecisão lógica e técnica de que o ato praticado por procurador não outorgado enseja a inexistência do ato, ao comentar o art. 37 do CPC/73, vício não replicado na redação do art. 104, § 2º, do CPC/15. DIDIER JR., Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 8. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 161-163.

 

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