Opinião

Litigância predatória: agora é a vez das instituições financeiras?

Autor

  • Tiago Gomes de Carvalho Pinto

    é desembargador do TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) doutor em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professor de Direito Tributário da Faculdade Milton Campos.

14 de dezembro de 2023, 6h03

Vem-se discutindo, amiúde, a repercussão no Sistema de Justiça naquilo que se denominou de “litigância predatória”, com grave reflexo no acesso à justiça, bem como nos nefastos efeitos no custo dos serviços jurisdicionais.

Consiste tal prática no ajuizamento de um volumoso número de ações judiciais, com mesma causa de pedir e pedido, muitas vezes fracionados em processos distintos. São ações de massa, geralmente distribuídas em desfavor de instituições financeiras, telefônicas, planos de saúde e outras tantas empresas, prestadoras de serviço em geral.

O exacerbado número de processos, com o traço de abuso de direito e fraude, levou a Corregedoria-Nacional de Justiça a editar a recente Diretriz Estratégica nº 7 mediante a qual visa, para este ano de 2023, a promoção de esforços no sentido de regulamentar e controlar tal prática.

A reação à litigância predatória levou, ainda, o Superior Tribunal de Justiça a apontar como relevantes as discussões processuais que circundam tal temática, o que culminou no reconhecimento do Tema Repetitivo 1.198, ainda pendente de julgamento.

Eis que a litigância, com traços de abuso de direito, vem sendo, mais recentemente, praticada pelas instituições financeiras, sobretudo nos processos que envolvem busca e apreensão de bens garantidos por alienação fiduciária.

Neste sentido, constatou-se, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que as instituições financeiras ajuizam ações de busca e apreensão, nos termos do DL 911/69, sem prévio recolhimento de custas judiciais para, em seguida, postular a sua extinção, com pedido de cancelamento de distribuição, a teor do que disciplina o artigo 290, do CPC, argumentando inexistir interesse no prosseguimento da demanda por ter havido acordo extrajudicial entre as partes – rogando, com isto, portanto, o não pagamento das despesas processuais em razão da superveniente transação.

A rigor, o STJ vem adotando o entendimento segundo o qual, quando a parte desiste da ação antes da citação do réu, é possível que ela não promova o recolhimento das custas processuais (AREsp n. 1.442.134/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, DJe de 17/12/2020).

Todavia, não é disto que se trata a hipótese em destaque, até porque os precedentes do STJ não abordaram os princípios processuais como o da cooperação e da boa-fé, tampouco as peculiaridades da situação evidenciada pelas instituições financeiras, a revelar, ao que tudo indica, nítido abuso de direito.

Ademais, tem-se que tais julgados tampouco atentaram para o fato de que a norma processual em comento, que trata da isenção de custas judicias, não se aplica aos processos em curso perante a Justiça estadual, como logo se verá.

Com dados de jurimetria, o Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a partir da elaboração da bem fundamentada Nota Técnica nº 10/2023 (DJe 13/11/2023), apontou que, desde janeiro de 2020 até o mês de julho do corrente ano, pouco mais de 60 mil ações de busca e apreensão com alienação fiduciária foram distribuídas, sendo que quase 25 mil iniciais vieram desacompanhadas da guia de pagamento das custas.

Desse universo, ainda, em torno de 50 mil ações foram objeto de desistência, valendo-se, como regra, do pedido de “cancelamento da distribuição”, para fins do que se extrai do artigo 290, do CPC, visando o não recolhimento das custas.

Este é o ponto a soar claro abuso de direito por parte das instituições financeiras ao distribuírem as ações de busca e apreensão e, incontinente, procedem ao seu cancelamento, sem pagamento das custas judiciais.

Evidentemente que tal prática — logo que obtido o intento dos credores com a satisfação do crédito extrajudicialmente — repercute em todo o sistema de Justiça, na medida em que impacta o custo do serviço jurisdicional, abarrota, mais ainda, o já intenso trabalho dos servidores, magistrados e demais sujeitos do processo, além de, inegavelmente, ensejar grave dano ao Erário.

À luz de tais considerações, o que se propõe a explicitar é que as custas judiciais não podem deixar de ser pagas pelas instituições financeiras em tais circunstâncias, a despeito de se basearem no já noticiado artigo 290, do CPC.

Conquanto a desistência seja um ato unilateral e direito do autor, na hipótese levantada pelo Centro de Inteligência do TJ-MG, por meio da elaboração da Nota Técnica nº 10/23, há, nitidamente, uma ação engendrada das instituições financeiras para se valer do serviço jurisdicional de sorte a impor ao devedor os ônus do processo, sob os efeitos do DL 911/69, para, logo que satisfeito seu intento, sobretudo com a formalização extrajudicial de um acordo, requerer o cancelamento da distribuição.

Decerto, extrai-se clara ofensa à cooperação processual bem como ao princípio da boa-fé, na medida em que, partindo-se da premissa de que a instituição financeira preferiu o ajuizamento da ação, ao invés de promover, na máxima medida, transações e acordos pré-processuais com os devedores, o só fato de distribuir a ação de busca e apreensão já atrai para todos os sujeitos do processo a diretriz de se obter uma decisão de mérito, justa, célere e efetiva (artigo 6º, CPC).

A concretização da garantia constitucional do acesso ao Judiciário, com o posterior pedido de desistência dos processos, marca linha tênue da evidência do abuso de direito, porque, do contrário, haveria o recolhimento das custas logo que distribuídas as ações de busca e apreensão, tal como determina, aliás, a Lei estadual n. 14.939/03, que disciplina o pagamento das custas perante a 1ª e 2ª instância da Justiça de Minas Gerais.

Neste ponto, outro enfoque merece destaque na temática em questão, qual seja, a matriz tributária atribuída aos entes federativos.

O que se está a analisar não é a matéria de fundo, eminentemente processual disciplinada pelo CPC – competência esta, de fato, atribuída à União (artigo 22, I, CF/88), mas, sim, se poderia o legislador federal, como o fez com o art. 290, da lei processual, disciplinar a isenção de custas judiciais referentes à Justiça dos estados.

É consolidada a jurisprudência do STF (ADI 1145, Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, DJ 08.11.2002; ADI 948, Rel. Min. Francisco Rezek, Pleno, DJ 17.03.2000) de que as custas, as taxas judiciárias e os emolumentos — espécies de despesas processuais — são verdadeiros tributos, revestidos todos da natureza jurídica de taxa, porque resultam da prestação de serviço público específico e divisível (artigo 145, II, CF).

Com a Reforma do Judiciário (EC 45/04), reforçou-se, na inserção do artigo 98, §2º ao texto constitucional, a determinação de que as custas processuais serão revertidas às atividades da Justiça, de modo a evidenciar, com isto, a ideia de que as custas, na qualidade de taxas como tributos vinculados que são, possuem destinação afetada aos serviços os quais se legitimou sua criação.

Portanto, se as taxas, de competência comum a todos os Entes, remuneram os serviços públicos próprios da jurisdição, impõe-se verificar se há norma legal específica, no caso dos estados, que abordam esta temática.

E tal ideia se afigura essencial, porquanto a Carta Magna de 1988 abomina a denominada isenção heterônoma, porquanto “é vedado à União instituir isenções de tributos de competência dos estados, Distrito Federal e municípios” (artigo 151, III).

O citado artigo 290 do CPC, ao fundamento de disciplinar matéria processual, atinente aos efeitos da distribuição e seu cancelamento, face a desistência do processo, não pode, decerto, imiscuir-se em questão eminentemente afeta aos tributos de competência dos Estados — tal como ocorre com as custas (taxas) que remuneram os serviços jurisdicionais estaduais.

Portanto, já se impõe mesmo concluir que o dispositivo processual em comento não tem eficácia quanto às taxas recolhidas perante o Poder Judiciário de Minas Gerais, sob pena de esvaziar a competência tributária atribuída aos estados para disciplinarem seus tributos, além de impor grave dano ao princípio federativo.

Assentadas tais premissas, tem-se que a Lei estadual mineira nº 14.939/03, que dispõe sobre as custas devidas no âmbito da Justiça Estadual de primeiro e segundo graus, estabelece, em seu artigo 12, que as custas judiciais devem ser pagas (fato gerador) no ato da distribuição do processo, inexistindo, de outra sorte, qualquer dispositivo que isente o autor de seu pagamento, caso venha a cancelar a distribuição do processo, tal como vem praticando as instituições financeiras nas ações de busca e apreensão.

Assim, considerando o ordenamento jurídico em vigor e a realidade evidenciada no abuso de direito, tal como explicitado na Nota Técnica nº 10/2023, elaborada pelo Centro de Inteligência do TJ-MG, nos casos em que instituições financeiras ajuizem ações de busca e apreensão de bens alienados fiduciariamente sem prévio recolhimento de custas processuais e posteriormente postulem extinção processual, com o cancelamento da distribuição, não há que se falar em isenção das custas, posto que inaplicável, na espécie, o contido no artigo 290, do CPC, devendo, por conseguinte, a parte autora recolher as custas processuais iniciais, além de eventuais despesas processuais devidas.

Autores

  • é desembargador do TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), doutor em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professor de Direito Tributário da Faculdade Milton Campos.

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