Opinião

Por que a expressão humana deve ser protegida pelo Direito? (parte 2)

Autor

  • Rafael Dilly Patrus

    é advogado sócio do Cremasco Dilly Patrus Peixoto e Leão Advogados consultor legislativo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG

17 de abril de 2024, 10h14

Continuação da parte 1

A liberdade de expressão propicia e fortalece o autogoverno do povo. Tal perspectiva, apesar de conectada com as ideias da identificação da verdade e da produção e propagação do conhecimento, parte de uma leitura menos liberal e mais republicana da liberdade. A visão liberal assume como valiosa a ausência de interferências do Estado na ação do indivíduo, ao passo que, pelo prisma republicano, importa menos que o indivíduo esteja a todo momento desimpedido e mais que ele seja livre para participar de quaisquer decisões que resultem em algum impedimento em sua ação. As perspectivas não são incompatíveis, mas seus enfoques são claramente distintos [1].

No debate público norte-americano, o argumento do autogoverno remonta ao fim do século 18. De acordo com James Madison, que é considerado por muitos como o “pai” da Primeira Emenda à Constituição de 1787 [2], a liberdade de manifestar-se publicamente, inclusive contra as políticas do governo, era essencial para estabelecer que o poder fosse controlado pelo povo, e não o contrário. Nesse sentido, a liberdade de expressão consistiria em um mecanismo de garantia do governo (não direto) do povo [3].

Liberdade de expressão como instrumento contra a tirania

No debate contemporâneo, a versão mais conhecida desse argumento encontra-se na obra de Alexander Meiklejohn. Segundo ele, proteger a liberdade de expressão é condição para que os cidadãos, posicionando-se autêntica e livremente no debate público, realizem o autogoverno popular em rejeição à tirania [4]. Conforme ele escreveu, “quando os homens governam a si mesmos, cabe somente a eles – e a ninguém mais – julgar a imprudência, a injustiça e o perigo. Isso significa que ideias imprudentes devem ser ouvidas tanto quanto as prudentes, as justas tanto quanto as injustas, as perigosas tanto quanto as seguras” [5].

O argumento sinaliza que, para oportunizar às pessoas que participem ativamente do debate público, contribuindo para a sociedade com suas ideias – não só ideias sobre o governo, a justiça e o bem comum, mas também opiniões sobre as noções difundidas e defendidas publicamente pelos outros –, é fundamental que a expressão seja livre. Quem dirá, afinal, que determinada posição é boa ou ruim, correta ou falsa, senão as próprias pessoas que, ouvindo-a na deliberação social, avaliarão criticamente seu conteúdo [6]? Restringir a circulação de determinado discurso em razão de seu conteúdo é, antes de mais nada, privar a coletividade de analisar e criticar tal discurso por conta própria; é outorgar a um grupo reduzido de pessoas – que atuarão como “censores”, agentes do Estado encarregados de identificar quais expressões podem e quais não podem ser veiculadas – o poder de decidir sobre a verdade e a justiça [7].

De acordo com essa maneira de pensar, a liberdade de expressão milita contra o governo de poucos e a opressão das minorias. Manifestar-se em público, sem amarras, é um instrumento poderoso contra a tirania [8]. Segundo escreveu o juiz Brandeis em Whitney v. California, os homens que fundaram os Estados Unidos, acreditando no “poder da razão aplicada na discussão pública”, rejeitaram o “silêncio imposto por lei”“o argumento da força em sua pior forma” – e, “reconhecendo as tiranias ocasionais de governos majoritários, emendaram a Constituição de maneira que as liberdades de expressão e reunião estivessem protegidas” [9]. Para a Suprema Corte norte-americana, portanto, a Primeira Emenda foi introduzida com os objetivos de assegurar a preservação de um espaço de autogoverno e neutralizar o perigo de despotismos sazonais.

Ou seja, o autogoverno é um prisma de raiz revolucionária. A revolução moderna é a luta pela liberdade contra a tirania: nela se expressam as insatisfações, indignações, revoltas e reivindicações dos oprimidos [10]. Sob a ideia do autogoverno popular, a defesa da liberdade de expressão remonta à gênese do Estado moderno, Estado que nasce e se alimenta da oposição de grupos menos favorecidos contra as injustiças sociais e políticas do Antigo Regime.

Liberdade de expressão como direito especial e as decisões da CIDH

Isso ajuda a explicar não apenas o apelo de James Madison – que viveu ativamente a guerra pela independência das colônias inglesas na América do Norte e o debate sobre a organização do Estado norte-americano –, mas muitas das opções feitas na fundação dos Estados Unidos, seja com relação à Constituição de 1787, seja no tocante à declaração de direitos incorporada em 1791, na qual se destaca a Primeira Emenda [11]. Quanto ao argumento específico do autogoverno, entretanto, a experiência mais recente dos países da América Latina é para nós igualmente importante – ou até mais importante, tendo em mente as peculiaridades do Direito brasileiro –, porque muitos desses países, vivendo uma transição do autoritarismo para a democracia, precisaram equacionar um novo regime de direitos, e nessa conjuntura a liberdade de expressão emergiu como um direito especial, um direito capaz de assegurar que, como enunciou Madison, o governo pertença ao povo, e não o contrário.

Spacca

Não sem razão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se valido especialmente da tese do autogoverno – da ideia de que, quanto mais livres as pessoas são para expressarem sua opinião em público, menor é a chance de o autoritarismo se apropriar do Estado – para decidir sobre violações à liberdade de expressão na América Latina.

Em 2001, a corte julgou o caso Ivcher Bronstein v. Peru, que trata de intimidações e retaliações sofridas por um peruano naturalizado em razão de críticas propagadas em seu canal de televisão contra o governo e as forças armadas do Peru. O Sr. Bronstein se havia naturalizado peruano nos anos 1980 e era sócio majoritário do famoso Canal 2. A partir de reportagens veiculadas em um popular programa denominado Contrapunto, foram feitas denúncias contra agentes do Estado por corrupção e graves violações de direitos humanos, e em resposta a isso o Peru cancelou a naturalização do Sr. Bronstein, forçando sua saída do quadro societário e do conselho de administração do Canal.

Em sua sentença, a corte recuperou a tese da dupla dimensão da liberdade de expressão e explicou que a liberdade de imprensa interessa à coletividade, devendo os jornalistas gozar de todos os meios necessários ao desempenho adequado de sua função investigativa e informativa, “já que são eles os que mantêm informada a sociedade, requisito indispensável para que esta goze de uma liberdade plena”, isto é, para que o povo determine o governo, e não o contrário [12]. Em subsídio a esse raciocínio, a corte fez duas citações importantes.

A primeira é ao Parecer Consultivo nº 5, solicitado pelo Estado da Costa Rica em 1985, ocasião em que a corte afirmou, pronunciando-se sobre a exigência do registro profissional de jornalistas, que, em uma sociedade democrática, devem ser garantidas “as maiores possibilidades de circulação de notícias, ideias e opiniões, assim como o mais amplo acesso à informação por parte da sociedade em seu conjunto. A liberdade de expressão se insere na ordem pública primária e radical da democracia, que não é concebível sem o debate livre e sem que a dissidência tenha pleno direito de se manifestar” [13].

A segunda citação é à decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos em Sürek and Özdemir v. Turkey, proferida em 1999. O caso diz respeito à violação à liberdade de expressão do proprietário e do editor-chefe de um jornal turco condenados criminalmente em virtude da publicação de uma entrevista com um comandante do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, uma organização considerada ilegal e subversiva na Turquia. A Corte Europeia pontuou que os limites das críticas contra o Estado e seus agentes são mais amplos do que os aplicáveis às falas sobre os cidadãos privados, e que, por isso, ninguém pode ser punido simplesmente por veicular discursos contrários ao governo, às instituições estatais ou às políticas públicas: “Em um sistema democrático, as ações e omissões do governo precisam se manter sujeitas a um escrutínio rigoroso, não apenas por parte das autoridades legislativas e judiciais, mas também da opinião pública” [14].

No julgamento dos casos Ríos e outros v. Venezuela e Perozo e outros v. Venezuela, a Corte Interamericana decidiu que, em contextos de polarização política exacerbada, intimidações, constrangimentos, perseguições e ataques físicos e verbais praticados contra trabalhadores e representantes de veículos de mídia com atuação crítica ao governo, ainda que os atos não sejam praticados oficialmente pelo Estado, implicam violação à liberdade de expressão, e que o poder público é responsável por manter a integridade, a segurança e a dignidade dos meios de comunicação. Em Perozo, as autoridades venezuelanas responsáveis por gerir a concessão do canal de televisão Globovision criticaram fortemente sua linha editorial, o que, conforme demonstraram as provas produzidas no processo, afetou negativamente o trabalho jornalístico dos trabalhadores do canal; a esse episódio seguiram intervenções em transmissões e outras práticas abusivas.

Diante dessas circunstâncias, a corte desenvolveu a tese de que comportamentos do poder público ou de agentes privados, quando estes ficam impunes, podem representar restrições indiretas à liberdade de expressão, minando a abertura necessária à livre circulação de ideias, opiniões e visões de mundo e, desse modo, comprometendo a responsividade do governo e das elites [15].

A posição do STF

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, merece destaque o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, em que se decidiu que a Lei nº 5.250, de 1967, a chamada Lei de Imprensa, não foi recepcionada pela Constituição de 1988. A ideia de que a liberdade de expressão e, mais especificamente, a liberdade de imprensa impedem que o Estado tolha a autonomia dos indivíduos ao proibir que determinados conteúdos sejam propagados e recebidos está presente em especial no voto do relator, ministro Ayres Britto, que leva às últimas consequências a perspectiva de que a regulação da mídia é um fator de erosão da democracia. Segundo ele, “é definitiva lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica” [16].

Com o entendimento de que a autorregulação da imprensa constitui “um permanente ajuste de limites em sintonia com o sentir-pensar de uma sociedade civil de que ela, imprensa, é simultaneamente porta-voz e caixa de ressonância” [17], e que, portanto, deixar que a mídia se autorregule é a única solução adequada à gestão democrática da comunicação, Ayres Britto declara que nenhum dispositivo da Lei de Imprensa foi recepcionado pela ordem constitucional.

Conclusão

Esses casos mostram como a liberdade de expressão é compreendida, em democracias recém-saídas de experiências autoritárias, qual um instrumento de neutralização do perigo da tirania. O governo tirânico é aquele que, sob o pretexto de tutelar a moral religiosa, os bons costumes e a estabilidade político-social, arvora-se na autoridade de, em substituição do juízo individual, decidir o que as pessoas podem e não podem falar e ouvir [18]. A tirania furta do sujeito a autogestão sobre sua própria vida pública; ela elimina a autonomia desse sujeito de dizer o que pensa e impede que ele, escutando as ideias e opiniões alheias, pondere suas crenças e convicções. Por outro lado, a liberdade combate a tirania ao garantir que os governados possam monitorar, fiscalizar, controlar e responsabilizar os governantes. Na segunda metade do século 20, poucos foram os lugares onde o problema da falta de liberdade – e da consequente precariedade (ou carência) do autogoverno – se fez tão evidente e marcante quanto na América Latina.

 


[1] SCHAUER, Frederick. The First Amendment as ideology. William and Mary Law Review, 33, 1992, p. 859.

[2] MORGAN, Robert J. James Madison on the Constitution and the Bill of Rights. Westport: Greenwood Press, 1988, p. 18.

[3] Cf. MADISON, James; KETCHAM, Ralph (ed.). Selected writings of James Madison. London: Hackett Publishing, 2006, pp. 221-228. Para a biografia de Madison, ver, por todos, KETCHAM, Ralph. James Madison: a biography. Charlottesville: University of Virginia Press, 1990.

[4] MEIKLEJOHN, Alexander. Political freedom. New York: Galaxy Book, 1965.

[5] Ibid., p. 27, tradução nossa. No original: “When men govern themselves, it is they – and no one else – who must pass judgement upon unwisdom and unfairness and danger. And that means that unwise ideas must have a hearing as well as wise one, unfair as well as fair, dangerous as well as safe (…).”

[6] O questionamento consta em MEIKLEJOHN, Alexander. Free speech and its relation to self-government. Clark: The Lawbook Exchange, 2011, p. 49.

[7] Ibid., pp. 78-82. Ver também POST, Robert. Constitutional domains: democracy, community, management. Cambridge: Harvard University Press, 1995, pp. 119-197 e 268-290.

[8] A ideia é igualmente desenvolvida, com referência a Madison, em LEWIS, Anthony. Freedom for the thought that we hate: a biography of the First Amendment. New York: Basic Books, 2009, p. 103.

[9] Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Whitney v. California, 274 U. S. 357. Washington/DC, 1927, § 42. No original: “Believing in the power of reason as applied through public discussion, they eschewed silence coerced by law – the argument of force in its worst form. Recognizing the occasional tyrannies of governing majorities, they amended the Constitution so that free speech and assembly should be guaranteed.”

[10] ARENDT, Hannah. On revolution. New York: Penguin Classics, 2006, pp. 132-170.

[11] Ver, por todos, ACKERMAN, Bruce. We the people: foundations. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1991, pp. 3-162.

[12] Cf. Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença em Ivcher Bronstein v. Peru. San José, 6 de fevereiro de 2001, p. 55.

[13] Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Parecer Consultivo nº 5: registro profissional obrigatório de jornalistas. San José, 13 de novembro de 1985, p. 17.

[14] Conselho da Europa. Corte Europeia de Direitos Humanos. Sentença em Sürek and Özdemir v. Turkey. Estrasburgo, 1999, p. 30, tradução nossa. No original: “In a democratic system the actions and omissions of the government must be subject to the close scrutiny nor only of the legislative and judicial authorities but also of public opinion.”

[15] Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença em Ríos e outros v. Venezuela. San José, 28 de janeiro de 2009; Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença em Perozo e outros v. Venezuela. San José, 28 de janeiro de 2009.

[16] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130. Brasília, 30 de abril de 2009, p. 32.

[17] Ibid., p. 35.

[18] DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 233.

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