Opinião

Por uma reforma pontual e equilibrada do Código Civil

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15 de abril de 2024, 18h19

Segundo a mitologia grega, Sísifo era o primeiro rei e fundador de Éfira, o qual teria irritado os deuses ao trapacear a morte. Ao morrer, Sísifo foi punido no “mundo subterrâneo”, tendo sido condenado, por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, apenas para que, próximo ao seu destino, a pedra rolasse novamente montanha abaixo, por meio de uma força insuperável, obrigando o condenado a reiniciar todo o seu trabalho.

O mito parece retratar muito bem a carência de propósito que o jurista brasileiro deve enfrentar, especialmente diante de regime jurídico absolutamente avesso às tradições e, especialmente, à estabilidade e segurança jurídica.

Já nesta altura da história, seria razoável presumir que superamos a premissa de que o Direito se encerraria no texto. De que a pacificação social haveria de ser retilineamente estipulada nos artigos dos códigos, os quais, aplicados por juízes que seguem a lei, ditariam a solução dos conflitos.

Sísifo, de Ticiano (1549)

A lei, sozinha, não resolve muita coisa. Seu conteúdo necessita de tempo, de uso, para se consolidar. O texto, produzido a partir de signos linguísticos, admite muitos significados, e necessita ser confrontado com a realidade para que, de julgado em julgado, nós, juristas, possamos consolidar os melhores significados possíveis. Aqueles significados inadequados, interpretações indevidas, devemos nós as identificar.

É conhecida a lição de Piero Calamandrei, para quem “a ciência jurídica deve servir a tornar mais clara e fácil a aplicação da norma ao caso prático, a aumentar, com suas sistematizações racionais, o grau de certeza do direito, isto é, a tornar sempre mais inteligível a compreensão das regras prescritas pelo legislador ao agir humano e a colocar o indivíduo em condições de calcular, com antecipação, com previsões sempre mais seguras, as consequências jurídicas de suas próprias ações” [1].

Todo esse processo consome tempo. A lei não fica pronta quando é publicada, ou mesmo quando entra em vigor. Muito diferentemente, a lei somente estará pronta, a regular a sociedade de modo eficaz, depois de colocada em prática, aplicada e reaplicada, de modo que o Direito – e o cientista do Direito – possa consolidar sua melhor aplicação.

Um processo lento e salutar

Ressalte-se. Não estou falando aqui de nosso famigerado sistema de precedentes. Pautado na mera autoridade e no poder, pelo qual rapidamente um pequeno grupo de magistrados define, com base em suas convicções pessoais, quais seriam os significados possíveis a partir do texto. Muitas vezes para, pouco tempo depois, descobrir os erros e ter de voltar atrás.

Falo, diferentemente, de um processo lento e salutar, que envolve centenas, quiçá milhares de indivíduos, partes, advogados, promotores, juízes, de primeiro e segundo grau, aplicando as normas e avaliando a pertinência de sua aplicação, até que, como um produto natural da experiência, alguns consensos mínimos sejam atingidos a partir da sua melhor ou pior aplicação.

Spacca

Como Sísifo recebera a pedra de mármore no sopé da montanha, nós, juristas, recebemos a nova lei como apenas o início de nosso percalço. Seguindo com a pedra em longo caminho acima, tortuoso e lento, e na medida em que sentimos que o tempo e o esforço estão próximos de nos garantir o objetivo, de certeza e pacificação social, vem o legislador de modo desfreado e nos arremessa novamente ao início da jornada.

Tal como os deuses, o legislador nos pune, nos castiga por termos um dia tentado enganar o caos, matar a incerteza que ameaça e aterroriza todo homem que precisa do Direito.

Isso não significa que, em nome de nosso objetivo de estabilidade, devemos fazer um pacto de petrificação, pensar no engessamento eterno do Direito. Para chegarmos ao cume da montanha não necessitamos, fundamentalmente, de uma renúncia absoluta ao novo.

Mudanças pontuais e a maturidade dos sistemas jurídicos

A jurisprudência e a doutrina, mesmo diante do texto antigo, defasado, têm mostrado  enorme resiliência em regular situações novas, mediante interpretação e construção de conceitos mais adequados a nosso tempo.

A alteração legislativa — muitas vezes maléfica — pode ser evitada por uma interpretação racional do sistema. Giogio Del Vecchio, após constatar a impossibilidade de o legislador prever todos os fenômenos sociais futuros, a serem regulados pela lei, constata que se é exigido do jurista, não apenas um grande esforço para a interpretação das leis vigentes, de modo a adequá-las às novas exigências sociais, como também uma maior colaboração no trabalho de inovação do direito [2]. Igualmente Rosa Nery, para quem “o jurista é aquele que efetivamente transforma a realidade a partir de seus argumentos científicos” [3].

Ademais, e efetivamente quando se mostrarem inevitáveis alterações do texto, diante da necessidade de quebra de alguns paradigmas estabelecidos com o tempo, adotá-las deve significar a menor renúncia possível à estabilidade e à segurança jurídica. É dizer: aos ganhos arduamente atingidos com a pedra e a lenta subida da montanha. Mudanças pontuais são representativas de sistemas jurídicos maduros, como o francês, e muitos outros, que ainda mantém a estrutura jurídica do Código Civil de 1804.

As mudanças devem ser lentas, e devem refletir a sociedade. O Direito regula e altera a estrutura social, tem enorme potencial transformador, mas não pode ser confeccionado a partir de uma vontade idealizada, de um despotismo esclarecido, que visa a mudar forçosamente o arranjo social, impor valores subjetivos do legislador, em detrimento da ontologia social.

Uma reforma sim. Pontual e equilibrada. Um novo Código inteiro e transvertido de reforma, prematuro, seria apenas um castigo, a nos impor toda uma nova odisseia, sofrida, lenta custosa, e aparentemente sem nenhum propósito.

 


[1] CALAMADREI. Pierro. “La certezza del diritto e la responsabilità della dottrina.” Opere Giuridiche. Vol. I. Napoli: Morano Editore, 1965, p. 174.

[2] DEL VECCHIO, Giorgio. La crisi della scienza del diritto. Modena: Società Tipogratica Modenense, 1933, p. 5.

[3] NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. “Responsabilidade da doutrina e o fenômeno da criação do direito pelos juízes”. In: FUX, Luiz, NERY JR, Nelson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Processo e Constituição. Estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006, p. 428.

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