Opinião

Elon Musk em clave jurídica: o que o Direito deve responder

Autor

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

14 de abril de 2024, 6h06

As declarações recentes de Elon Musk, dirigidas especialmente a um ministro do STF, tem o potencial de desestabilizar Poderes. Os juristas encarregados de elucidar o Direito para a opinião pública, que já conseguiram cancelar qualquer debate acerca de corrupção, hoje silenciam quanto aos pontos-chave das denúncias de Musk.

Em seus comentários, prendem-se às hipérboles e ofensas subjetivas do bilionário, para não enfrentar temas jurídicos simples, porém nucleares. Incorrem, assim, em nova omissão grave, ao não reformular as perguntas que a grande imprensa lhes lança, porque conscientes de que mantêm sob segredo as claves jurídicas da cizânia.

Aqui tentaremos, humildemente, corrigir o norte das perguntas, a fim de que a grande mídia, se assim o desejar, deixe de ser palco para o espetáculo que o bilionário apresenta em escala mundial.

As três falsas perguntas

Qualquer um que já tenha trabalhado com estratégia analítica sabe que o segredo do estudo de um objeto é a escolha das perguntas que se formulam acerca dela. Do contrário, destrói-se a oportunidade de observação — quando não o próprio objeto —, sem que qualquer novidade seja aportada para o conhecimento.

Em matérias sociais, infelizmente, esse erro metodológico pode ser intencional. No caso de Musk, não é difícil aplicar um filtro analítico, que eliminaria ao menos três questões totalmente estéreis à observação jurídica do fenômeno.

Spacca
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(1) Primeira delas é saber o que move Elon Musk a buscar esse confronto. Parece estranho tentar eliminar as causas motivacionais de um problema, mas no direito é um procedimento necessário em grande parte das vezes.

Não fora assim, todas as delações premiadas deixariam de existir: afinal, não se pode esperar que um colaborador venha a delatar motivado pelo ímpeto de ver um Brasil melhor. Ele quer a diminuição da pena, portanto sua pureza de intenção é irrelevante ao ordenamento.

De modo análogo, imagino improvável que o bilionário, em meio a seus foguetes e megaindústrias, acredite que causar polêmica nos usuários tupiniquins do “X” incrementaria sua fortuna pessoal.

Ganhar força para sua ideologia liberal, aumentar poder em escala mundial ou vingar-se de quem censurou sua empresa são motivos que se podem cogitar, mas não contribuem na observação do problema nacional.

(2) Tampouco tem qualquer utilidade gastar tantas páginas da imprensa para perguntar se Musk deve cumprir a lei brasileira, porque a resposta positiva é evidente. Tema muito diverso é indagar se há impedimento para que lance críticas à interpretação/aplicação de norma, quando está a cumpri-la [1]. Ou a liberdade de afastar sua empresa do território nacional.

(3) Finalmente, haveríamos que ser muito econômicos em dissertar sobre as ofensas pessoais que o bilionário lança a nossas autoridades, porque se sabe que ninguém tem direito de ofender a honra alheia. A resposta do Estado, entretanto, deve-se limitar a esse bem jurídico.

As duas perguntas reais

As perguntas reais são as que elucidam o objeto de análise, porque guardam objetividade. Uma delas tem conteúdo mais amplo, outra mais restrito.

(1) A questão ampla é de fácil redação: por que as acusações de Elon Musk reverberam tanto?

Para essa questão temos resposta simples: o STF vem perdendo legitimidade, então acusações de abuso de poder ganham verossimilhança e alcançam o fértil terreno do descontentamento contido dos juristas menos tendenciosos.

Os inquéritos criticados por Musk há tempos ofendem aquela democracia que o Judiciário, antes de tentar impor à coletividade, deveria cultivar internamente: cada juiz tem sua fração predeterminada de poder, a que denominamos ‘competência’. O que antes pareceria elementar a qualquer jurista, nestes tempos demanda mais um parágrafo explicativo.

Descartando a obviedade de que uma investigação não pode ser aberta sem provocação pelo próprio julgador, que ademais figura como vítima, ou que a instância suprema é reservada para casos excepcionais da Constituição, poucos lembram a questão temporal mais básica, de que um inquérito é feito para elucidar atos já ocorridos.

Um inquérito inaugurado para perseguir fatos futuros perde sua natureza e se transforma em uma “vara preventa”, sem qualquer lastro legal. A inclusão de Musk como investigado, no inquérito aberto antes de seu aparecimento no cenário da crítica, é prova concreta desse desvio jurisdicional.

É dispensável teorizar sobre os riscos procedimentais da criação informal de uma vara preventa, a concentrar em um poder quase-individual o amplo espectro da “defesa da Democracia”, porque a História e a prática já o demonstram.

Musk pode provar o que diz?

(2) A questão específica é ainda mais pontual, mas para ela não temos resposta: Musk seria capaz provar sua acusação concreta?

De tudo o que temos visto na imprensa, existe um único fato novo que merece ser aclarado pelo bilionário. Ele afirmou que, nos mandados que o Twitter “X” recebia do STF, não lhe era autorizado revelar ao usuário da rede social um fato nuclear a seu direito atingido: que sua exclusão das plataformas ocorria por ordem judicial.

Em outras palavras, a empresa era judicialmente obrigada a deixar o usuário às cegas em relação à origem da constrição do seu direito. Aqui temos um elemento grave, que merece ordem imediata de comprovação, sob pena de agravada calúnia.

Por simples amor à análise, trabalhemos a remota hipótese de que Musk venha a comprovar o único fato real que afirma. Nessa virtual ocorrência, os juristas teriam a tarefa de demonstrar à opinião pública a extrema gravidade da ação judicial, com a paciência de expor elementos de mais delicada sistematização. Tento colaborar nesse labor, resumindo a ilegalidade dessa remota hipótese em três pontos.

(a) Primeiro, quando o Estado restringe o direito do cidadão, concomitantemente este recebe o direito à defesa. E ela começa por saber que é o Poder Judiciário, e não uma empresa, que determinara a constrição.

Proibir a empresa de revelar ao principal interessado o motivo da redução de sua liberdade constitui uma ordem que, até onde alcanço saber, não tem paralelo em anos de democráticos [2];

(b) segundo, um magistrado deve zelar para que a empresa, qualquer empresa, tenha transparência, então não pode determinar que exista uma política de segredo, especialmente em “big companies”, que são fonte de poder extremo. Diferente seria que o segredo objetivasse uma investigação, com a interceptação telefônica, mas espero que esse não seja o caso;

(c) terceiro, se nos transportamos ao momento sensível de eleições, fica evidente que a (hipotética) ordem de ocultação do mandado judicial configuraria estratégia para fazer crer à sociedade que a supressão da conta do usuário é da cultura empresarial. E ao Estado, mais ainda ao Judiciário, é proscrita a tentativa de criar insidiosamente uma ordem moral, por mais altiva e adorável que ela possa parecer à maioria.

Em síntese, ao proibir uma empresa de revelar a existência da ordem judicial de que é alvo, não se estaria a manter o segredo de justiça: estar-se-ia a criar um Judiciário Oculto.

Simples solução

Mas a dissolução dessa remota porém assustadora hipótese é simples e nada escandalosa. Muito mais efetivo que colocar Musk liminarmente sob investigação seria intimá-lo ou apenas convidá-lo para que apresente prova do alegado, pontualmente quanto a esse mandado judicial de ocultação da verdade.

E isso pode ser feito, em minha opinião, pelo próprio Ministério Público, sem qualquer oitiva: basta requerimento de exibição de documentos que ele diz existir, num pedido de explicações elementar de quem prepara uma ação de calúnia (artigo 144 CP).

Instado a esse “disclosure”, o mais provável será que Musk se furte à apresentação de qualquer documento, e então o problema está superado. Basta a imprensa retirar o tema de pauta, ao total descrédito das palavras do bilionário.

Na quase inatingível hipótese de esses documentos aparecerem, dentro da Constituição haveria providências a tomar, demonstrando que não há ninguém acima da Lei Maior. Mas isso extrapola muito a virtualidade da análise dos fatos, no estado em que hoje se encontram.

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[1] A volta do uso da palavra “crítica” em lugar de “ataque”, aliás, deveria ser a primeira correção a se fazer quando se inicia a falar do tema. Com o perdão de desvelar a semântica, “crítica” pressupõe liberdade, enquanto “ataque” demanda reação.

[2] Já estudamos o tema em “Si el Estado Puede Mentir”, in: RODRÍGUEZ, Víctor, Delación Premiada: Límites Éticos al Estado, Botogá: Temis, 2019, p. 69

Autores

  • é professor Livre-Docente de Direito Penal da USP, membro do Prolam/USP e autor do livro “Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado”, com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina). Bolsista da Fundación Carolina/España, para professor convidado na Universidad de Granada e, pela Capes, na Autónoma de Madrid.

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