Público & Pragmático

Estratégia Nacional da Saúde e o futuro das parcerias tecnológicas do SUS

Autor

  • Guillermo Glassman

    é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

15 de outubro de 2023, 8h00

Com o início do governo Lula 3, a União retomou a pauta de reindustrialização do país. A mais recente prova disto é o lançamento da Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde ("Estratégia Nacional") no último dia 26 de setembro[1], formalizada por meio do Decreto nº 11.715/2023.

A estratégia estabelece diretrizes para orientar os investimentos, públicos e privados, nos segmentos produtivos da saúde e em inovação, na busca de soluções produtivas e tecnológicas voltadas à redução da vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e à ampliação do acesso a medicamentos e equipamentos médicos. É preciso compreender o histórico, o contexto e as implicações jurídicas dessa iniciativa para que laboratórios públicos e privados enfrentem os desafios inerentes ao atendimento a esse chamado e aproveitem as oportunidades que surgirão — disso depende o sucesso efetivo da Estratégia Nacional.

Nas diferentes oportunidades em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve à frente do governo federal, a pauta da reindustrialização foi organizada por políticas industriais (PI) de indução à produção e desenvolvimento tecnológico em território nacional formalizadas por programas específicos, como a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), lançado em 2004 e sucedida pela Política de Desenvolvimento Produtivo, em 2008, e pelo Plano Brasil Maior (PBM), em 2011 [2].

Perpassa essa herança institucional a ideia de que, para fins de reindustrialização, é preciso estabelecer, no âmbito da PI, uma faceta setorial seletiva (PI vertical) que priorize setores econômicos escolhidos de acordo com sua capacidade para multiplicar os efeitos do fomento estatal (externalidades positivas), por exemplo, na geração de empregos qualificados e renda, retenção de cérebros, diminuição de déficit na balança comercial, aumento de produtividade e ampliação da competitividade da economia brasileira a partir do incremento da capacidade de inovação em segmentos econômicos estratégicos. A saúde, especialmente a indústria farmacêutica, sempre foi considerado um dos ramos prioritários ao longo desse período.

No plano acadêmico, em paralelo, o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) foi desenvolvido também no início dos anos 2000, sob a liderança de Carlos Gadelha[3]. O conceito do Ceis apresenta uma base analítica que reúne diferentes segmentos industriais e de serviços interdependes (cadeias produtivas), num ambiente institucional próprio e comum, no setor da saúde. A coincidência temporal entre a formação das bases da PI do PT e a conceituação do Ceis não é casual, mas, ao contrário, representa o surgimento do recorte analítico necessário à implementação dos programas de reindustrialização no segmento.

Também não é acaso a retomada atual da pauta desenvolvimentista nem o foco dado, neste contexto, à saúde. O mesmo Carlos Gadelha idealizador do conceito do Ceis assumiu, ainda em janeiro, a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do Ministério da Saúde (MS).

O primeiro passo para a operacionalização da retomada da indução estatal no setor ocorreu em abril (Decreto nº 11.464/2023), com a recriação do Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Geceis). O órgão interministerial tem papel consultivo e de articulação importante para a instituição de políticas públicas de fomento ao CEIS pelo uso do poder de compra do Estado e pelo financiamento para a produção e pesquisa locais.

A edição do Decreto nº 11.715/2023 em setembro é o segundo passo de grande relevância no restabelecimento do fomento à produção e pesquisa nacionais no setor. A Estratégia Nacional, por ele prevista e regulada, está marcada pela busca de autonomia tecnológica e segue o que foi apregoado pela ministra Nísia Trindade em julho no discurso de abertura da 17ª Conferência Nacional da Saúde: "Temos que garantir a nossa autonomia em medicamentos, vacinas e em equipamentos básicos, como foram os respiradores. A pandemia mostrou o quanto somos dependentes de importação desses suprimentos" [4].

O governo Bolsonaro havia reduzido a compra de medicamentos por meio das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), principal instrumento da PI dos governos do PT para o setor da saúde, com queda de 52% destes gastos em 2018 e suspensão de 19 das 85 parcerias então vigentes [5]. Já é possível afirmar que esse movimento pivotou. Entretanto, espera-se que a retomada das PDP venha acompanhada de importantes alterações no marco normativo dessas parcerias.

As PDP não contam com previsão legal específica, sendo, até então, regidas pelo Decreto nº 9.245/2017 (que institui Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde), pelo Dec. n. 10.001/2019 (que dispõe sobre o Comitê Deliberativo das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo e a Comissão Técnica de Avaliação das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo) e pela Portaria n. 2.531/2014 do Ministério da Saúde (incorporada pela Portaria de Consolidação n. 5/2017)[6].

O Decreto 11.715/2023 revogou os decretos n. 9.245/2017 e 10.001/2019. Apesar de não inviabilizar o funcionamento das parcerias (já que sua regulamentação mais detalhada está justamente na Portaria n. 2.531/2014), esse movimento dá clara indicação de que haverá em breve a revogação também do quanto regulamentado diretamente pelo MS, com substituição por novo marco.

A iminência da alteração do marco regulatório das PDP foi reforçada pelo Acórdão 2015/2023 proferido na sessão plenária do dia 27 de setembro pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A decisão foi proferida no âmbito do processo 034.653/2018-0 que tem por objeto o acompanhamento das PDP até então firmadas, conferindo especial atenção ao cumprimento das determinações assentadas no Acórdão 1730/2017-Plenário.

O Acórdão 1730/2017-Plenário teve grande importância para a demarcação do regime jurídico das PDP ao reconhecer a licitude do modelo (a despeito da ausência de previsão legal expressa) e determinar alguns parâmetros mínimos de regularidade, como a necessidade de observância, na seleção do parceiro privado, dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública (CF, artigo 37) e dos artigos 3°, 4°, 26 e 41 da Lei nº 8.666/1993 (apesar de não exigir especificamente a realização de licitação prévia, mas sim chamamento público).

Pois bem: em sua nova e recentíssima decisão (Acórdão 2015/2023-Plenário) o TCU determinou que o Ministério da Saúde deixe de celebrar novas PDP até que sejam estabelecidos mecanismos de avaliação da eficácia de transferências e internalização de tecnologias, além de outros aspectos de gestão não contemplados na Portaria n. 2.531/2014 (hoje, Portaria de Consolidação n. 5/2017), com determinação de reformulação das normas administrativas de regência das PDP.

Trata-se de relevante oportunidade para que diversas questões sejam melhor endereçadas no regime jurídico das PDP (como, por exemplo, a comparabilidade com preços praticados em pregões e as consequências do insucesso no processo de transferência de tecnologia). Para que o novo marco normativo das PDP traga soluções satisfatórias aos problemas enfrentados pelo modelo, é fundamental que o Ministério da Saúde ouça os principais atores envolvidos nesses processos – os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, a indústria farmacêutica privada (nacional e estrangeira) e outras indústrias da saúde (como a de equipamentos e dispositivos médicos), por meio de suas respectivas associações. Um dos grandes problemas do regime atual (estabelecido nas regras da Portaria n. 2.531/2014) parece ser, justamente, a ausência de soluções para a “dores” recorrentes desses players.

A Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (Alfob) está atenta ao tema que foi objeto de discussão no I Congresso dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil, realizado em agosto em Brasília, com a participação deste autor em um dos painéis temáticos. Entretanto, concomitantemente ao Decreto nº 11.715/2023 (que institui a Estratégia Nacional) foi publicado o Decreto nº 11.714/2023 dispondo sobre o Comitê Deliberativo no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, responsável por analisar e avaliar as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo.

Há, aqui, uma indicação negativa com relação ao diálogo com os atores principais que operacionalizam as PDP (laboratórios públicos e indústria privada): a composição do Comitê é "fechada", contando com representantes de Ministérios e (um) do Conselho Nacional de Saúde.

O artigo 6°, §3°, do Decreto 11.714/2023 permite que a Comissão Técnica de Avaliação (que assessora o Comitê) convide representantes de órgãos e entidades públicos e privados, nacionais ou estrangeiros, autoridades, especialistas e cientistas para colaboração, mas sem direito a voto e sem indicação de critérios para a escolha desses colaboradores eventuais.

Não parece razoável que laboratórios públicos e indústria privada estejam ausentes dessas instâncias deliberativas já que apenas estes têm a prática efetiva na implementação dessas parcerias e conhecem seus desafios específicos. Quanto a isso, é preciso compreender que os processos de transferência de tecnologia apresentam modo de formação, longevidade e a flexibilidade intrínseca que exigem uma dinâmica de regulação mais dialógica.

Tais características apontam para a necessidade de processo de negociação ampla entre os parceiros para a definição das bases dos acordos que operacionalizam as parcerias tecnológicas do SUS. Daí ser possível falar em lógica consensual no caso, em oposição à lógica da autoridade manifestada na formação de contratos de adesão com a imposição pelo Estado do conteúdo quase completo do ajuste. Nesse contexto, faz sentido que laboratórios públicos e privados tenham voz ativa nas instâncias deliberativas responsáveis pela política das PDP.

No governo Lula 3, não apenas as PDP serão retomadas e novas serão celebradas, como outros instrumento de parceria devem ganhar destaque: Encomendas Tecnológicas na Área da Saúde (Etecs), Medidas de Compensação na Área da Saúde (Mecs), Acordos de Compartilhamento de Risco (ACR), Parcerias Público-Privadas de administração de planta fabril farmacêutica pública (PPP) e outros modelos pensados a partir da Lei de Inovação Tecnológica (Lei nº 10.973/2004). Entretanto, haverá ajustes normativos, o mais iminente deles para as PDP.

O Acórdão 2015/2023-Plenário deve acelerar em muito esse processo e, por isso, trata-se do momento decisivo para o diálogo com os atores principais desses processos de transferência de tecnologia. É preciso que o Ministério da Saúde ouça os laboratórios neste momento, não apenas por uma questão de participação democrática legítima, mas também, e principalmente, porque não é possível desenhar uma política eficiente sem que de sua construção participem aqueles que "vivem" as parcerias no dia a dia.

 

 


[1] O lançamento da Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde foi divulgado em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/09/governo-federal-lanca-estrategia-nacional-para-o-desenvolvimento-do-complexo-economico-industrial-da-saude-com-investimento-de-r-42-bilhoes-ate-2026

[2] Para uma análise mais detalhada sobre a PI nos governos do Partido dos Trabalhadores, ver: ABDAL, Alexandre. Contribuição à crítica da Política Industrial no Brasil entre 2004 e 2014. Novos Estud., CEBRAP, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 437-456, mai./ago. 2019.

[3] GADELHA, Carlos Augusto Grabois. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Cien. Saúde Colet. 2003; 8(2):521-535.

[4] Íntegra do discurso disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/julho/arquivos/02-07-2023-discurso-ministra-integra-17a-cns.pdf

[5] JUNQUEIRA, Diogo. Sob Bolsonaro, farmacêuticas do país receberam menor investimento da década. UOL, 20/04/2020. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/reporter-brasil/2020/04/20/sob-bolsonaro-farmaceuticas-do-pais-receberam-menor-investimento-da-decada.htm>.

[6] Sobre o tema, ver: GLASSMAN, Guillermo. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos. Londrina: Thoth, 2021.

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