Público & Pragmático

Direito administrativo e parcerias público-privadas na indústria farmacêutica

Autor

  • Guillermo Glassman

    é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

7 de maio de 2023, 8h00

Em 1989, Fancis Fukuyama, então vice-diretor da equipe de planejamento de política do Departamento de Estado norte-americano, propôs que o debacle dos regimes comunistas na virada da década de 1980 representava não uma contingência histórica, mas sim uma virada estrutural, que apontava para o fim das disputas ideológicas e universalização da democracia e do liberalismo no mundo [1].

Para Fukuyama, a dialética histórica hegeliana estava certa ao indicar que a evolução humana caminharia para um ponto culminante e perpétuo, mas teria sido distorcida pela leitura marxista que identifica esse momento final na solução da contradição entre capitalistas e proletários.

Para ele, o apelo da leitura materialista da teoria hegeliana teria contaminado todo o espectro do pensamento econômico e político ocidental, mas o equívoco estaria em que a antinomia dialética que move a história está na consciência humana (e não apenas nos meios materiais de vida), concretizada pela oposição de visões de mundo antagonistas (ideologias, no sentido empregado pelo autor).

Dada essa premissa, Fukuyama faz a conhecida declaração do "fim da história" das relações internacionais e prevê (no longo prazo) a homogeneização do liberalismo político e econômico no mundo. Isso implicaria relações internacionais centradas em interesses puramente econômicos e os conflitos entre nações teriam impactos apenas regionais. Essa perspectiva pareceu reforçar a teoria das vantagens comparativas no comércio internacional e naturalizar a interdependência produtiva dos países nos mais diferentes ramos industriais, sendo o caso mais notório a relação entre China e Estados Unidos nas décadas seguintes [2].

A tese de Fukuyama causou controvérsia desde a sua apresentação em 1989 [3], porém parece ter povoado o imaginário dos analistas econômicos e de boa parte da comunidade política mundial. Não obstante, mais recentemente, dois eventos trouxeram à luz de forma mais evidente as limitações do liberalismo no campo industrial e de comércio exterior: a pandemia de Covid-19 e a guerra russo-ucraniana de 2022 (ainda em curso).

As evidências trazidas por tais circunstâncias apontam para a necessidade de diversificação da produção mundial de bens e insumos essenciais e reforço da indústria nacional, mediante atividade de fomento e atuação direta no domínio econômico, como verdadeiro elemento de segurança nacional.

Por exemplo, a dependência de insumos da Índia e da China para o abastecimento da indústria farmacêutica nacional é fragilidade já mapeada pala Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) [4]. De fato, a maior parte dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) usados para produção de remédios no Brasil vem do exterior e, dentre os fornecedores estrangeiros, Índia e China possuem enorme destaque (são os principais provedores do Brasil e do mundo).

Durante a pandemia, a Índia restringiu a exportação de diversos desses produtos, priorizando seu mercado interno, e a China enfrentou gargalos de produção (gerados por absenteísmo e pela política de lockdown estrito) [5]  o que acendeu o alerta mundial para a vulnerabilidade da cadeia de fornecimento desses insumos.

Por outro lado, estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta que a guerra na Ucrânia levou a severos impactos sobre mercados globais de insumos críticos para diversos produtos essenciais [6]. É o caso, por exemplo, dos fertilizantes nitrogenados, em que a Rússia respondia a 25% da demanda mundial e que teve sua produção drasticamente afetada já no início do conflito [7]. Tais impactos têm feito países e companhias reavaliarem a distribuição mundial (geográfica) de suas cadeias produtivas e de suprimentos.

Os momentos críticos vividos pela humanidade nos últimos anos despertaram nos governos e no mercado a necessidade de buscar mecanismos para tornar suas cadeias produtivas e de suprimentos cada vez mais resilientes. Dois dos aspectos fundamentais nessa direção são o domínio de tecnologia e o reforço da estrutura produtiva nacional (de capital local ou estrangeiro, mas diretamente sujeita à jurisdição nacional). A participação do Estado parece ser fundamental para a construção e fortalecimento desse ecossistema de indústrias essenciais, nesse novo contexto.

Essa atuação estatal, naturalmente, deve ocorrer por meio de instrumentos jurídicos desenvolvidos no âmbito do direito administrativo. Entretanto, os avanços neste campo têm sido lentos, tanto do ponto de vista normativo como doutrinário. É o que se observa, por exemplo, na modelagem de parecerias público-privadas na indústria farmacêutica.

A Constituição de 1988 atribuiu ao Estado brasileiro o desafio de garantir assistência farmacêutica integral num país com dimensão continental, enorme diversidade demográfica e marcantes diferenças socioeconômicas. Numa indústria caracterizada pela inovação (com tratamentos cada vez mais complexos e mais caros), a ação do Estado é crucial, por exemplo, para fomentar a produção de medicamentos comercialmente pouco atrativos (para o tratamento das chamadas "doenças negligenciadas" [8]). Mas a fragilidade demonstrada pelas cadeias de fornecimento global e, especificamente, pela de Insumos Farmacêuticos Ativos, aponta a conveniência de fomento estatal no setor para além de casos específicos como o das doenças negligenciadas.

No Brasil, o atendimento da demanda por medicamentos é realizado tanto por fornecedores estrangeiros como nacionais (privados e públicos) cujas cadeias produtivas formam o Complexo Econômico e Industrial da Saúde [9] (Ceis), conceito utilizado para mapear e acompanhar o desenvolvimento dessa malha produtiva.

Nas últimas décadas, diferentes iniciativas têm se apresentado para mitigar os riscos que a dependência do mercado estrangeiro no campo farmacêutico implica para o desenvolvimento dos serviços de saúde brasileiros. O ponto crucial desses projetos é a absorção de tecnologia por atores nacionais (privados e públicos) e suas externalidades positivas. Esses empreendimentos orbitam a estrutura brasileira de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais, tendo por integrantes notáveis a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan.

Dentre as iniciativas empregadas para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, as mais destacadas são as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (PDP). Esses ajustes canalizam a demanda do Sistema Único de Saúde (SUS) por um determinado produto para laboratórios públicos que se associam à indústria privada para o atendimento dessa demanda. O ganho de escala permite a negociação da transferência dessa tecnologia de tal modo que ao final do projeto o parceiro público deve alcançar a independência produtiva [10].

O modelo das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos não utiliza o regime da Lei nº 11.079/2004 (Lei das Parcerias Público-Privadas). Tais ajustes consistem em contratos administrativos de transferência de tecnologia entre laboratório público e laboratório privado, secundados por termo de compromisso firmado pela União (Ministério da Saúde) que convenciona a convergência da demanda do SUS.

As PDPs não preveem, por exemplo, investimentos na infraestrutura produtiva do laboratório público pelo contratado privado e esta lacuna tem se provado uma das principais causas de insucesso desse tipo de "parceria".

O modelo das PDPs é complexo e sua modelagem jurídico-institucional segue em evolução [11]. Entretanto, parcela relevante da demanda pública por medicamentos já vem sendo atendida nessa modalidade. Por outro lado, a arquitetura para a absorção de tecnologia farmacêutica via parceria público-privada (PPP), pensada em princípios da década de 2010, permaneceu estagnada.

123RF
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A única PPP farmacêutica efetivamente implementada no país foi contratada em 2013 tendo por objeto a gestão, operação, modernização (adequação de infraestrutura), manutenção de planta industrial pública e o fornecimento de medicamentos à Fundação para o Remédio Popular (Furp) — laboratório oficial do Estado de São Paulo) [12].

Sua modelagem, elaborada pelo governo do estado de São Paulo, teve dificuldades ao enfrentar as especificidades regulatórias da indústria farmacêutica brasileira e do mercado público de medicamentos, o que ficou atestado, por exemplo, pela rescisão antecipada ocorrida em agosto de 2022 [13].

As fragilidades na concepção da PPP podem ser identificadas em diversos elementos de uma modelagem que não enfrentou os desafios fundamentais do projeto, como, por exemplo, o impacto do controle total da demanda pelo Concedente (com possibilidade de "desidratação" pela aquisição via Atas de Registro de Preço) e pela ausência de precificação específica da tecnologia transferida.

Não obstante o insucesso dessa experiência, diversas lições podem ser colhidas de uma investigação aprofundada do caso. A análise dos erros dessa modelagem jurídica (especialmente alocação de riscos) e econômico-financeira associada a um estudo comparativo às estruturas de PPP bem-sucedidas em outros setores econômicos no Brasil e em outros países pode permitir a construção de diretrizes para um novo modelo viável.

O estabelecimento dessa alternativa (uma modelagem viável e eficiente para PPP de indústria farmacêutica) é possível, e o insucesso da experiência em São Paulo não deve ser entendido como um ponto final para esse tipo de contrato porque é preciso construir alternativas jurídicas para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde.


[1] Fukuyama, Francis. The End of History? The National Interest, no. 16, 1989, pp. 3–18. JSTOR. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/24027184>. Acesso em: 18/03/2023.

[2] SIRIPURAPU, Anshu; BERMAN, Noah. The Contentious U.S.-China Trade Relationship. Council on Foreign Relations (CFR), 02/12/2022. Disponível em: <https://www.cfr.org/backgrounder/contentious-us-china-trade-relationship>. Acesso em: 19/03/2023.

[3] Veja-se sobre isso, por exemplo: Fukuyama, Francis. Reflections on the End of History, Five Years Later. History and Theory, vol. 34, nº 2, 1995, pp. 27–43. JSTOR. Disponível em: <https://doi.org/10.2307/2505433>. Acesso em: 19/03/2023.

[4] RESENDE, Leandro. Dependência de insumos da Índia e China é "problema estrutural", diz ex-Anvisa. CNN Brasil, 17/01/2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/saude/dependencia-de-insumos-da-india-e-china-e-problema-estrutural-diz-ex-anvisa/>. Acesso em: 19/03/2023.

[5] HARNEY, Alexandra. China's coronavirus-induced supply chain woes fan concerns of possible drug shortages. Reuters, 11/03/2020. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-pharmaceuticals-ap-idUSKBN20Y1C7>. Acesso em: 19/03/2023.

[6] OECD. The supply of critical raw materials endangered by Russia's war on Ukraine, 4 Ago. 2022. Disponível em: < https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/e01ac7be-en.pdf?expires=1679246732&id=id&accname=guest&checksum=F55D1E4538EF6A9BF174A7C19B0D9DA3>. Acesso em: 19/03/2019.

[7] HAMILTON, Eric. The global supply chain consequences of the Russia-Ukraine war, 21 Fev. 2023. UNIVERSITY of FLORIDA News. Disponível em: <https://news.ufl.edu/2023/02/russia-ukraine-global-supply-chain/>. Acesso em 19/03/2023.

[8] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 1, fev. 2010, p. 200-202. Disponível em: http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102010000100023&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 04/03/2019.

[9] SILVA, Gabriela de Oliveira; ANDREOLI, Gustavo Luis Maffe; BARRETO, Jorge Otávio Maia. Políticas públicas para o desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil. Comunicação em Ciências da Saúde, v. 27, n. 1, dez. 2017. Disponível em: http:// bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/politicas_publicas_desenvolvimento.pdf. Acesso em: 01/05/2019

[10] GLASSMAN, Guillermo. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamento. Londrina: Ed. Thoth, 2021.

[11] GLASSMAN, Guillermo. A importância do PL 1505 para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde. Jota, 18/07/2023. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-importancia-do-pl-1505-para-o-complexo-economico-e-industrial-da-saude-18072022>. Acesso em 19/03/2023.

[12] Os documentos públicos relacionados à PPP da FURP estão disponíveis no endereço: http://www.parcerias.sp.gov.br/Parcerias/Projetos/Detalhes/114.

[13] O Termo de Rescisão Contratual da PPP da Furp foi publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 12 de agosto de 2022, Poder Executivo, Seção I, p. 219.

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