Opinião

A revogação do Perse e a (in)segurança jurídica

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9 de abril de 2024, 7h03

Ao longo da Covid-19, de triste memória, a administração tributária tentou, reconheça-se, enfrentar a crise devastadora que se desenhava, especialmente para um setor que é essencial para a economia brasileira como um todo: o setor de eventos.

Tratava-se da Lei nº 14.148/2021. Criou-se um Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). O setor entusiasmou-se, investiu quanto pode. Tem-se a impressão de que o governo quer desmobilizar o programa.

O objetivo principal do programa emergencial consistia em esforço nacional para mitigação dos efeitos da pandemia no setor de eventos, que ainda não se recuperou, ainda que se tenha notícia de muito investimento, pelo que o incentivo, do ponto de vista econômico, é uma necessidade que ainda permanece. Lutemos pelo incentivo.

No entanto, o setor, ainda pelejando com os efeitos da crise, foi surpreendido no fim do ano passado com uma efetiva revogação do regime de isenções, por força da Medida Provisória nº 1.202/2023. Não nos esqueçamos, trata-se de medida provisória, e não de lei; isto é, medida provisória não é lei, tem força de lei (artigo 62 da Constituição).

Do ponto de vista contábil, o Perse fixou um regime de isenções, com exigências implícitas e explícitas de contrapartidas, o que revela um conjunto de isenções ditas onerosas.

Perse foi criado para ajudar setor de eventos

A matéria é regulada pelo artigo 178 do Código Tributário Nacional, no sentido de que salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o princípio da anterioridade.

Vale dizer, a revogação da isenção exige que se respeite a anterioridade, tanto a anterioridade relativa ao exercício fiscal, quanto a anterioridade nonagesimal.

A MP 1.202/2023 rompe a regra geral das medidas provisórias (artigo 62 da Constituição) por força do fato de que o princípio da anterioridade projeta os efeitos financeiros da revogação da isenção para 2025, o que é claríssima demonstração de que não se pode falar de urgência.

‘Traição’

Além disso, a adesão ao Perse substancializou uma confiança do setor na Administração. O setor sente-se traído, em virtude da MP nº 1.203/2023, o que chama a odiosa cláusula do venire contra factum proprio.

O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento sobre matéria conexa no contexto da Súmula 544, quando definiu que isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa (é o caso da isenção veiculada pelo Perse) não pode ser livremente suprimidas, como pretende o governo.

Há também fortíssima produção jurisprudencial em casos também conexos, que apontam para uma tendência jurisprudencial em favor do setor. O caso mais emblemático deu-se no julgamento do RE 564.225-RS, relatado pelo ministro Marco Aurélio, no sentido que há dever de observância ao princípio da anterioridade, na hipótese de revogação de benefício fiscal.

A experiência nos revela que essa tendência jurisprudencial será mantida, dada a identidade com a razão de decidir.

Tem-se, de fato, uma isenção onerosa. Deve-se cumprir o fixado na lei que deu ensejo ao modelo, quando se acenou benefício até 2026, que agora se pretende revogar, com base em argumentos arrecadatórios.

Em face da insegurança causada pela não aprovação da MP, bem como pela também insegurança que decorre dos impasses causados no contexto do Projeto de Lei nº 1.026/2024, o presidente do Senado decidiu, em 1º de abril de 2024, prorrogar por mais 60 dias os efeitos da MP que dá origem a toda a celeuma.

O empresário do setor, no entanto, questiona, o que fazer, ao ensejo de obrigações tributárias vincendas. A revogação dos benefícios do Perse, do modo como veiculados pela MP n 1.202/2023 é inconstitucional e ilegal.

Inconstitucional e ilegal

A revogação do Perse pela MP é inconstitucional porque atentou contra um direito adquirido (artigo 5º, XXXVI, da Constituição). É ilegal porque retirou isenção onerosa sem respeitar o disposto no artigo 178 do CTN. Essa ilegalidade certamente será declarada pelo STF, por força de uma tradição decisória que remonta à Súmula 544.

Uma ampla gama de alternativas se desenha para o empresário aturdido com a insegurança que paira sobre a matéria. Há hipótese de depósito dos valores, para garantia em ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária. Há hipótese (mais arriscada, dada a insegurança que ronda o tema) de eventual proposta de ação declaratória de inexistência de relação jurídico tributária, independentemente do depósito dos valores.

Bem entendido, nos dois casos, com os riscos da sucumbência. E há também a hipótese de se aguardar ulterior autuação do Fisco, matéria a ser discutida administrativamente, até o Carf, e também judicialmente.

A MP não foi convertida em lei. Tem força de lei. Em matéria fiscal, que é o núcleo e o vértice da ordem econômica, o postulado da legalidade é absoluto. Persiste a insegurança jurídica, que demanda intervenção judicial.

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