Opinião

Capacidade e exercício de posições jurídicas existenciais na reforma do Código Civil de 2002

Autor

  • Fábio Calheiros do Nascimento

    é juiz de direito (TJ-SP) professor de direito civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie doutor e mestre em direito civil pela USP e mestre em direito político e econômico pelo Mackenzie.

3 de abril de 2024, 17h17

Personalidade sempre foi definida como sendo a aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações na ordem civil e, a partir disso, conceitua-se capacidade de direito como sendo a medida da personalidade, isto é, a aptidão para adquirir direitos e obrigações numa específica ordem civil. Capacidade de fato ou de exercício, por seu turno, é definida como sendo a possibilidade de exercer esses direitos ou cumprir essas obrigações por si, independentemente de representação ou assistência (1).

O Código Civil de 2002 promoveu razoável modificação do Código Civil de 1916 no tocante às hipóteses de incapacidade. Mesmo assim, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), o Código Civil de 2002 sofreu profunda alteração. Segue abaixo um quadro comparativo:

Exceção feita à redução de idade para a capacidade plena, o Código Civil de 2002 realizou mais mudanças de ordem formal do que de conteúdo no diploma anterior. Por exemplo, substituiu-se a expressão “loucos de todo gênero”, por ter se tornado pejorativa, por outra mais suave: “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil”.

Se o discernimento inexistia, a incapacidade era absoluta; se era apenas reduzido, a incapacidade era relativa. Deixou-se, ainda, de focar na causa da ausência de possibilidade de expressão da própria vontade para se focar no efeito, por isso os surdos-mudos não mais foram mencionados no diploma novo.

Diferentemente, o Estatuto da Pessoa com Deficiência promoveu alteração relevante no Código Civil de 2002 no tocante ao regime das incapacidades porque modificou a mens legis do regime das incapacidades.

Sob uma ótica contrária àquela vigente até então, de excluir aqueles que não se encaixavam nos padrões da sociedade (2), sobretudo para fins patrimoniais — leia-se, realização de negócios jurídicos com objeto conversível em dinheiro —, o referido estatuto fez com que todas as hipóteses que pudessem caracterizar deficiência passassem a ser consideradas como de incapacidade relativa.

Isso porque apenas os menores de 16 anos de idade foram deixados como hipótese de incapacidade absoluta. Critério puramente etário e objetivo. Todos aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade foram deslocados para a incapacidade relativa, colocando-se ao lado dos menores de 16 a 18 anos de idade, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os pródigos.

Exercício de posições jurídicas

Mais do que isso, e este é um ponto de extrema importância. A Lei nº 13.146/2015 escancarou a distinção entre incapacidade e o exercício de posições jurídicas existenciais (não patrimoniais). Em seu artigo 6º, ela estabeleceu que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Diz-se que ela escancarou, não que ela revelou, pois essa desvinculação já havia sido prevista na lei, em consonância com a Constituição, e, por conseguinte, a doutrina já tratava disso.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), por exemplo, estabelece a partir do seu artigo 15 um sem-número de posições jurídicas existenciais atribuídas às crianças e aos adolescentes, tais como liberdade de ir e vir; de opinião e expressão; de crença e culto religioso, dentre outros.

Isso significa, em tese, que crianças e adolescentes podem, por si, independentemente de representação e assistência exercer os referidos direitos e exigir dos outros, portanto, o respeito a eles. Claro que isso precisa ser interpretado cum grano salis, pois uma criança de tenra idade não pode ir e vir tão livremente, sob pena de se colocar em risco. Mas, de outro lado, não há como simplesmente negar-lhes esses direitos porque menores de 18 anos de idade, sob pena de retirar qualquer efeito jurídico da norma.

Spacca

Sendo assim, em uma interpretação sistemática com o disposto nos artigos 1630 e 1634, I, do Código Civil (3), cabe aos pais conceder-lhes liberdade de ir e vir de forma paulatina, na medida em que os filhos ganham autonomia.

Um genitor que age assim, portanto, não está descumprindo a lei; ao revés, está cumprindo-a corretamente. E se é assim, se algo acontece com a criança ou adolescente que está indo ou voltando da escola, por exemplo, não pode ser tido como responsável por omissão.

De certo modo, é um risco que se corre para permitir que os menores de 18 anos de idade, ao atingirem a maioridade, tenham adquirido autonomia suficiente para exercerem plenamente todos os direitos que lhes são reservados.

Cuida-se de interpretação que está em harmonia com outras normas de grande importância do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dispõe o artigo 6º dessa lei que na interpretação dela levar-se-ão em conta, dentre outros fatores, os fins sociais a que ela se dirige e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Estabelece o artigo 15 dessa lei, por sua vez, que a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Esse mesmo raciocínio é útil para tratar da liberdade religiosa, que envolve a liberdade de culto. Questiona-se se os pais poderiam obrigar seus filhos a envolverem-se com determinada religião (4), embora não o queiram.

Uma vez que a eles é atribuída a liberdade de crença e culto, por certo que a melhor resposta é que, na medida em que adquirem autonomia para decidirem por si só o que pretendem nesse campo, não lhes pode ser negado esse direito (5).

Daí, por exemplo, existir a compreensão de que um menor de 18 anos pode decidir por receber a transfusão de sangue, independentemente de seus pais serem Testemunhas de Jeová, pois cabe a ele decidir se segue essa fé e, no caso positivo, em que medida.

Em termos doutrinários, de há muito é defendida essa noção de que a capacidade civil de exercício deve ser compreendida por uma ótica dúplice, diferenciando-se posições jurídicas patrimoniais de não patrimoniais ou existenciais. Pietro Perlingieri, precursor da noção de direito civil-constitucional, trata dessa diferença ao analisar a questão do poder familiar. Diz ele:

“É necessário superar a rígida separação, que se traduz em uma fórmula alternativa jurídica, entre minoridade e maioridade, entre incapacidade e capacidade. A rígida contraposição entre capacidade e incapacidade de exercício e entre capacidade e incapacidade de entender e de querer, principalmente nas relações não-patrimoniais, não corresponde à realidade: as capacidades de entender, de escolher, de querer são expressões da gradual evolução da pessoa que, como titular de direitos fundamentais, por definição não-transferíveis a terceiros, deve ser colocada na condição de exercê-los paralelamente à sua efetiva idoneidade, não se justificando a presença de obstáculos de direito e de fato que impedem o seu exercício; o gradual processo de maturação do menor leva a um progressivo cumprimento a programática inseparabilidade entre titularidade e exercício nas situações existenciais.” (6)

 A ideia em tela já está estampada em diplomas legislativos estrangeiros, dos quais merece destaque o Código Civil suíço, um dos primeiros a diferenciar direitos patrimoniais e não patrimoniais no tocante à capacidade. Em tradução livre, seu artigo 19 c diz que as pessoas capazes de discernimento, mas privadas do exercício dos direitos civis, exercem os seus direitos estritamente pessoais de forma autônoma, ficando reservados os casos em que a lei exija o consentimento do representante legal. (7)

Em outros países

O Código Civil argentino de 2015 também estabeleceu regras próprias para o exercício de certos direitos por parte dos relativamente incapazes, conforme segue:

Artículo 26. (…)

Se presume que el adolescente entre trece y dieciséis años tiene aptitud para decidir por sí respecto de aquellos tratamientos que no resultan invasivos, ni comprometen su estado de salud o provocan un riesgo grave en su vida o integridad física.

(…)

A partir de los dieciséis años el adolescente es considerado como un adulto para las decisiones atinentes al cuidado de su propio cuerpo.

O Código Civil francês seguiu linha semelhante, se bem que menos explícita quanto ao exercício de posições jurídicas não patrimoniais dos menores de idade ao estabelecer recentemente, por modificação de lei de 19 de fevereiro de 2024, que os pais devem envolver os filhos nas decisões que lhes dizem respeito, de acordo com sua idade e grau de maturidade (7).

O diploma português também não foi tão enfático quanto ao exercício de posições jurídicas existenciais, em geral, por parte dos menores de idade, mas, ao menos no tocante à liberdade religiosa, dispôs em seu artigo 1886 que somente até os 16 anos de idade cabe aos pais decidir sobre a educação religiosa dos filhos. Sendo assim, a contrario sensu, depois disso, mesmo ainda incapazes os filhos para outros fins, não podem os pais tomar a decisão por eles.

Pois bem, embora o Código Civil de 2002 tenha sido elaborado a partir de uma ótica menos patrimonialista, pois se reconhecia que o Código Bevilaqua era marcado por isso, o que se percebe pelas observações acima é que, no que diz respeito à capacidade, ele não deixou de sê-lo.

As alterações que o Estatuto da Pessoa com Deficiência impôs a ele, nesse tópico, melhorou-o, por torná-lo mais inclusivo. Mas uma outra alteração era necessária para que a diferenciação entre posições jurídicas patrimoniais e existenciais ficasse evidente no tópico relativo à capacidade.

A proposta de alteração feita pela comissão está em consonância com as observações acima, pois o artigo 4º do Código Civil passaria a ter a seguinte redação:

Art. 4º São relativamente incapazes para o exercício pessoal dos atos de natureza patrimonial da vida civil:

I — os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos;

II — aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por relativa falta de discernimento por causa psíquica ou por dependência química, enquanto perdurar esse estado;

III — os pródigos.

Parágrafo único.

(…)

O caput do referido artigo já ressalta que a capacidade de que se trata está vinculada ao exercício pessoal dos atos de natureza patrimonial da vida civil. Os atos de natureza não patrimonial, ou seja, o exercício de posições jurídicas de natureza existencial, por sua vez, passará a ser regido por preceito normativo específico, cuja redação é a seguinte, segundo a proposta:

Art. 4o-A. É reconhecida a autonomia progressiva da criança e do adolescente, devendo ser considerada a sua vontade em todos os assuntos a eles relacionados, de acordo com sua idade e maturidade.

É digna de encômios a proposta em tela porque positiva algo que já pode ser inferido do sistema jurídico, segundo a melhor doutrina, mas por meio de normas esparsas. Além disso, equipara a lei civil brasileira ao que há de mais avançado em termos de legislação acerca da capacidade civil.

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Referências
1 – BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda Editora, 2007, p. 108-133. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1995, 58-65. CAPITANT, Henri. Introduction à l’Etude du Droit Civil. Paris: A. Pedone Éditeur, 1912, 143-146. GONÇALVES, Luiz da Cunha. Princípios de Direito Civil Luso-Brasileiro. v.1. São Paulo: Max Limonad, 1951, p. 80-81.

2 – GARCIA, Maria. In. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 / coordenação de Flávia Piva Almeida Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa – 2. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019, p. 29-37.

3 – 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.

Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação;

4 – “(…) objetivando fornecer um conceito que não seja apenas fenomenológico, podemos conceber religião como expressão de fé, criação e manutenção de relação com o sagrado, que se manifesta por meio de símbolos estruturados institucionalmente.” (NASCIMENTO, Fábio Calheiros Direito à identidade. São Paulo: Almedina, 2024, p. 145)

5 – NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 75.

6 – PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 260.

7 –  Droits strictement personnelsArt. 19c14 Les personnes capables de discernement mais privées de l’exercice des droits civils exercent leurs droits strictement personnels de manière autonome; les cas dans lesquels la loi exige le consentement du représentant légal sont réservés.

8 – Les personnes incapables de discernement sont représentées par leur représentant légal, sauf pour les droits qui ne souffrent aucune représentation en raison de leur lien étroit avec la personnalité. (alteração legislativa decorrente da lei de 19 de dezembro de 2008; em vigor desde 1º de janeiro de 2013)

9 – 371-1. (…) Les parents associent l’enfant aux décisions qui le concernent, selon son âge et son degré de maturité.

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