Concurso: é possível concorrer por cotas se deficiência foi adquirida após inscrição
20 de março de 2024, 7h06
O tratamento atualmente dispensado às pessoas com deficiência que buscam acesso aos cargos públicos privilegia o rigor formal a despeito da efetiva oferta de acessibilidade, em desarmonia com o que expressa o texto da Constituição e, de modo mais evidente, as normas inseridas na Lei nº 13.146/2015.
De acordo com o enunciado normativo previsto no artigo 2º, caput, da Lei nº 13.146/2015 considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que, em interação com uma ou mais “barreiras”, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
É precisamente por esse motivo que as normas contidas na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência estão vocacionadas para a superação desses possíveis entraves.
A propósito, o artigo 3º, inciso IV, alínea ‘e’ traz a lume o conceito de barreiras atitudinais, quer dizer, “atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas”.
E o que é igualdade? Para trabalharmos esse conceito de modo correto, deve-se anteriormente tecer algumas breves considerações quanto ao preceito da dignidade da “pessoa humana”.
Carmem Lúcia Antunes Rocha [1], com o brilhantismo habitual, assenta a respeito do tema que: “gente é tudo igual, mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro, o miolo é igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas”.
Antes de ser norma jurídica, a dignidade é o valor distintivo e insubstituível atribuído ao ser humano (e nele reconhecido) que o torna merecedor e titular de uma pretensão de respeito e proteção [2].O indivíduo é respeitado quando pode exercer sua personalidade e protegido quando o Estado lhe assegura o exercício de suas liberdades públicas.
A dignidade da pessoa humana está relacionada aos lemas Franco-Revolucionários liberdade, igualdade e fraternidade, tricotomia que na doutrina constitucional simboliza as dimensões ou gerações de direitos humanos.
Partindo dessa perspectiva, a primazia do princípio humanitário é a atenção às liberdades individuais, à necessidade de igual tratamento entre os indivíduos (isonomia) e à divisão dos ônus e dos bônus da vida em sociedade (solidariedade), que é a baliza do Estado democrático [3].
Estatuto da Deficiência
E aqui está o ponto essencial dessa questão. A igualdade a que se refere o artigo 3º, inciso IV, alínea ‘e’ do Estatuto da Deficiência deve ser observada em seu aspecto material, e não meramente formal.
Luis Roberto Barroso [4] afirma que o princípio da dignidade humana somente é observado quando se permite ao indivíduo o exercício autônomo de suas vontades, e envolve “em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade”.
A dignidade, contudo, não se restringe à observância da liberdade, e com ela não se confunde, pois é necessário que se façam presentes as condições para a autodeterminação do indivíduo, “o que traz pare esse domínio, também, o direito à igualdade, em sua dimensão material [5]“.
A assertiva é de todo pertinente à temática ora ventilada, pois se está a tratar a respeito de um microssistema de proteção. Esses sistemas normativos são escorados em indagações filosóficas a respeito da “desigualdade” e validados pela constatada vulnerabilidade das pessoas inseridas nos grupos politicamente minoritários.
A edição das normas que compõem esses microssistemas ocorre para concretizar medidas afirmativas num contexto maior das políticas públicas de Inclusão.
Sem mais delongas, o tratamento ofertado às pessoas com deficiência, em especial pelo poder público deve ter presente as peculiaridades que permeiam a convivência do indivíduo com a sua particular condição biológica ou de saúde. Se não é assim impossibilita-se a superação de barreiras, frustrada também — por consequência óbvia — a oferta de acessibilidade.
Em relação aos concursos públicos, cumpre examinar, primeiro, o conteúdo da norma prevista no artigo 37 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, vejamos:
“Art. 37. Constitui modo de inclusão da pessoa com deficiência no trabalho a colocação competitiva, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária, na qual devem ser atendidas as regras de acessibilidade, o fornecimento de recursos de tecnologia assistiva e a adaptação razoável no ambiente de trabalho.
Parágrafo único. A colocação competitiva da pessoa com deficiência pode ocorrer por meio de trabalho com apoio, observadas as seguintes diretrizes:
(…)
II – provisão de suportes individualizados que atendam a necessidades específicas da pessoa com deficiência, inclusive a disponibilização de recursos de tecnologia assistiva, de agente facilitador e de apoio no ambiente de trabalho;
Art. 38. A entidade contratada para a realização de processo seletivo público ou privado para cargo, função ou emprego está obrigada à observância do disposto nesta Lei e em outras normas de acessibilidade vigentes.”
Concorda-se que, em regra, para concorrer às vagas especiais reservadas ao sistema de cotas, deve a pessoa com deficiência observar os marcos temporais definidos no edital do certame, em homenagem aos preceitos da igualdade e da vinculação ao instrumento convocatório.
Deficiência diagnosticada após a inscrição
O mesmo não pode ser concebido para os casos em que a deficiência é adquirida ou diagnosticada posteriormente ao ato de inscrição. Entender em sentido contrário é desconsiderar a finalidade das políticas públicas que instituíram o aludido sistema de cotas.
Em verdade, privilegiar o rigor formal nesses casos é também impor barreiras atitudinais que impedem a “inclusão da pessoa com deficiência no trabalho”, com ofensa também ao conteúdo previsto no artigo 2º da Lei nº 9.784/1999.
Não se pode olvidar, aliás, da necessidade de ser observada nos processos administrativos a “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. (artigo 2º, parágrafo único, inciso VI, da Lei nº 9.784/1999.
Ademais, é de todo desarrazoado esperar que a condição da pessoa com deficiência, em hipóteses tais, seja demonstrada no ato da inscrição se o impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial não existia àquele momento ou se não havia sido ainda diagnosticado.
Ao impedir o candidato de concorrer às vagas que lhe são reservadas por lei em virtude do não atendimento a formalismos previstos no edital — que não poderiam ser atendidos de modo tempestivo por impossibilidade lógica —, a administração e, não raras vezes, o Poder Judiciário conferem igual tratamento aos desiguais e, expectando prestar reverência ao preceito da igualdade, terminam por violá-lo em seu aspecto material.
Para não haver injustiça nessas afirmações traz-se à baila a seguinte ementa promanada do egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO DEFICIENTE FÍSICO. LAUDO EMITIDO FORA DO PRAZO PREVISTO EM EDITAL. RAZOABILIDADE.
- Estando comprovado que o candidato é portador de lesão irreversível na visão, o que o permite concorrer nas vagas reservadas aos deficientes físicos, não se mostra razoável impedir-lhe que a elas concorra pelo simples fato de o laudo ter sido emitido fora do prazo determinado em edital.
- Agravo provido.”
(Acórdão nº n.801607, 20130020296168AGI, Relator: ANTONINHO LOPES 4ª Turma Cível, Data de Julgamento: 14/05/2014, Publicado no DJE: 16/07/2014. Pág.: 114)
Com esses fundamentos defende-se ser possível ao candidato inscrito nas vagas destinadas à ampla concorrência concorrer pelo sistema de cotas nos casos em que a deficiência foi adquirida ou diagnosticada em momento posterior ao ato de inscrição.
[1] ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Direito de Todos e para todos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, P. 13.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 166-167.
[3] SILVA, Thales Sousa da. A ação Penal Pública Incondicionada nos crimes contra a liberdade sexual. Uniceub, 2020.
[4] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010.
[5] BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010, p. 25.
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