Opinião

Implementação da nova Lei de Licitações exige transformação cultural no poder público

Autor

  • Ana Letícia Lira Correia

    é advogada e servidora pública municipal pós-graduada em Tecnologia e Inovação com Ênfase em Direito Público Govtech e Regtech pelo Centro Universitário Uniftec pós-graduada em Licitações e Contratos pela Faculdade PolisCivitas e presidente da Comissão da Mulher Advogada da 63ª Subseção da OAB-RJ.

1 de abril de 2024, 10h19

As compras governamentais desempenham um papel vital no tecido social, econômico e ambiental de qualquer país. Isso se deve ao fato de que processos de licitação visam não somente garantir a escolha da oferta mais benéfica para a administração pública em termos de custo-benefício, mas também fomentar a inovação e promover o desenvolvimento sustentável nacional.

Por meio de processos de contratação pautados na integridade e transparência, é possível estimular um crescimento econômico que beneficie a sociedade como um todo, alavancando transformações sociais, estruturais e ambientais significativas. Para alcançar esses objetivos, a adoção de uma governança eficaz é essencial, assegurando que as licitações cumpram suas finalidades primordiais e contribuam para o bem-estar coletivo.

Embora a nova legislação de licitações introduza orientações cruciais para a implementação de uma governança eficaz, é fundamental reconhecer a necessidade de uma transformação cultural entre os líderes da alta administração. Esse aspecto representa um dos maiores desafios no âmbito das contratações públicas, exigindo uma revisão profunda dos paradigmas atuais.

Este artigo visa destacar a importância dessa mudança de mentalidade, especialmente no que tange à gestão de pessoas. A adaptabilidade, a integridade e a inovação devem ser valores incorporados na essência da cultura organizacional, garantindo que as práticas de contratação não apenas cumpram requisitos legais, mas também promovam o desenvolvimento sustentável e a equidade social.

Ao abordarmos essas questões, buscamos incentivar um diálogo produtivo sobre como lideranças podem evoluir para atender às demandas contemporâneas de uma administração pública mais transparente, responsável e eficiente.

1. Breve contextualização histórica e necessidade de reforma da Lei de Licitações

Desde os primeiros registros da história da humanidade, constata-se uma constante evolução/revolução paradigmática do conhecimento em todas as áreas, nos mais diversos aspectos possíveis, provocando mudanças significativas (LE GOFF, 1990; LUSTOSA, 2012).

Nesse contexto, a administração pública é desafiada a se adaptar e inovar constantemente para atender às demandas emergentes da sociedade contemporânea. A integração de tecnologias disruptivas, a revisão de modelos de gestão e a adoção de estratégias ágeis tornam-se imperativos para que as organizações públicas possam responder eficazmente aos desafios do ambiente atual.

Há anos, essas mudanças no mercado e na tecnologia vinham gerando uma paulatina alteração na legislação, seja por via de modificações da Lei 8.666/93, seja pela edição de diplomas normativos secundários ou complementares [1]. Diante desse cenário de transformação, surge a necessidade de atualização da legislação que rege as licitações no Brasil.

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A evolução da legislação de licitações no Brasil reflete uma resposta às crescentes complexidades do mercado global e às exigências por mais transparência, eficiência e equidade nos processos de contratação pública.

A Lei 8.666/93, embora tenha estabelecido um marco inicial importante para a regulamentação das licitações e contratos administrativos, com o tempo revelou-se inadequada para enfrentar os novos desafios impostos pelas dinâmicas econômicas e sociais contemporâneas.

Esse reconhecimento levou ao surgimento de diversas iniciativas legislativas visando sua atualização. O processo de reforma culminou com a aprovação da Lei nº 14.133/21, que, ao substituir a legislação anterior, busca modernizar os procedimentos licitatórios.

Propõe uma abordagem mais flexível e inovadora, introduzindo conceitos e práticas que visam simplificar as contratações, promover a eficiência e adaptar-se às necessidades contemporâneas de transparência e sustentabilidade. A nova lei de licitações representa um avanço significativo na direção de uma gestão pública mais ágil e alinhada com as melhores práticas globais em termos de contratação pública.

2. Inovações destacadas na nova Lei de Licitações

O professor Ronny Charles realça algumas regras notáveis de governança inseridas pela Nova Lei de Licitações, destacando-se a generalização do uso de plataformas eletrônicas para todas as modalidades de licitação, a adoção do orçamento sigiloso, o procedimento de manifestação de interesse (PMI), as modalidades de contratação integrada e semi-integrada, além da introdução de remuneração variável, diferentes modos de disputa, a inovadora cláusula de retomada (step-in right), o estímulo ao diálogo competitivo e o sistema de pré-qualificação contínua, entre outros aspectos.

Estas novidades legislativas, trazidas pela Nova Lei de Licitações, buscam não apenas modernizar, mas também aumentar a eficiência tanto na fase de seleção de fornecedores quanto na execução dos contratos. Além disso, a lei põe um foco especial no fortalecimento das práticas administrativas durante a fase preparatória dos processos licitatórios.

Essa fase, marcada pelo rigoroso planejamento, é reconhecida como um pilar essencial para o sucesso e a transparência das contratações públicas, garantindo um fundamento sólido para as etapas subsequentes.

As inovações introduzidas pela nova Lei de Licitações visam, entre diversos objetivos, aperfeiçoar o processo de contratações públicas. Isso se deve à crescente complexidade desses processos, que tendem a se intensificar com a expansão das estruturas governamentais.

No entanto, apesar das vantagens evidentes dessas inovações, durante o período de adaptação em que as duas legislações — a Lei 8.666/93 e a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) — estiveram simultaneamente em vigor, notou-se uma adesão por parte da administração pública à nova legislação que ficou abaixo do esperado, mesmo depois de um intervalo de transição superior a dois anos. Tal situação levou à prorrogação do período de adaptação até 30 de dezembro de 2023.

Agora, com o início do ano de 2024, a fase de transição concluiu-se, tornando a Lei 14.133/21 a legislação predominante. As transformações no ambiente regulatório já começam a ser perceptíveis, e este artigo tem como finalidade debater sobre os graus de liderança e entendimento necessários para gerenciar as mudanças em andamento.

3. Desafios da adaptação à nova legislação

 Um dos desafios mais significativos que se apresenta é a necessidade de acompanhar as importantes mudanças legislativas com uma transformação cultural profunda nos líderes da administração pública. A elevada rotatividade de gestores, impulsionada tanto pelo período de mandato quanto pela volatilidade política, exige um esforço contínuo para alinhar a gestão às necessidades técnicas e estratégicas, distanciando-a de influências políticas pessoais ou corporativas.

Esta transição cultural é indispensável para que a administração pública brasileira não apenas adote novas práticas de licitação e contratação, mas também promova uma governança eficaz e orientada ao interesse público, com base em um planejamento meticuloso e uma gestão técnica e perspicaz.

No contexto dessa transformação, Klaus Schwab, no seu livro A Quarta Revolução Industrial, destaca que estamos à beira de uma revolução tecnológica que irá alterar fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.

A adaptação a essa nova era requer lideranças que possam compreender e navegar pelas complexidades introduzidas pelas inovações tecnológicas, aplicando-as de maneira que beneficie a administração pública e a sociedade como um todo.

Além disso, no setor privado, o recrutamento é frequentemente destacado como um pilar fundamental para o sucesso organizacional, permitindo a seleção de lideranças e equipes alinhadas às competências e desafios estratégicos. Contrariamente, na administração pública, muitas vezes não se observa a mesma atenção ao processo de recrutamento.

Apesar da presença de muitos gestores competentes, as lideranças são frequentemente definidas por critérios que divergem daqueles idealmente necessários para a formação de uma equipe eficaz. Esta discrepância ressalta a necessidade de estratégias inovadoras que foquem na seleção e no desenvolvimento de lideranças capacitadas para enfrentar os desafios contemporâneos da administração pública.

A realidade do funcionalismo público, muitas vezes marcada por uma gestão que se arrasta pelo ritmo dos acontecimentos cotidianos, é vividamente ilustrada no vídeo “O Dilema das Contratações Públicas: Entenda por que criamos o Jogo de Contratações para ensinar”, de Antonio Netto. Este recurso destaca os desafios enfrentados e sublinha a urgência de mudanças de mentalidade e práticas para que as inovações legislativas tenham impacto positivo.

Antonio Netto, no livro Contratações de Tecnologia da Informação 4.0, reforça a importância de engajar as pessoas, utilizando habilidades de comunicação e relacionamento para fomentar o trabalho em equipe. Esta abordagem pode expandir o engajamento por toda a organização, atraindo potencialmente outras entidades e servidores, com base no respeito mútuo e na compreensão das experiências vividas.

Portanto, é evidente que a gestão da administração pública está intrinsecamente ligada à gestão de pessoas. Diante das contínuas mudanças e inovações tecnológicas, há uma necessidade premente de cultivar uma nova cultura entre os líderes dos órgãos e entidades públicas. Esta transformação exige decisões bem fundamentadas, a presença de profissionais qualificados, uma liderança eficaz e um desejo genuíno de contribuir para a eficiência da administração pública em benefício do interesse público.

4. Enfrentando os desafios com estratégias inovadoras

Enfrentar os desafios da nova legislação exige de gestores públicos uma mentalidade adaptável e resiliente. Inspirados por referências como doutor Klaus Schwab e Antonio Netto, é essencial acolher as mudanças, incorporando tecnologias avançadas, fortalecendo a comunicação e cultivando o aprendizado contínuo. Essas estratégias são fundamentais para aproveitar as oportunidades da nova Lei de Licitações, promovendo uma administração pública mais eficiente e eficaz.

Para caminhar por este cenário com sucesso, algumas práticas se destacam pela sua capacidade de impulsionar a transformação necessária:

  1. Capacitação e Desenvolvimento Contínuo: Uma formação contínua em liderança adaptativa, inteligência emocional e conhecimento técnico sobre a Lei 14.133/21 é fundamental. Tais treinamentos devem abordar não só as nuances legais, mas também as habilidades gerenciais e emocionais cruciais para a liderança na administração pública.
  2. Promoção da Inteligência Emocional: Encorajar a inteligência emocional é crucial. A compreensão e o gerenciamento das próprias emoções e das emoções dos outros podem melhorar a tomada de decisão e fortalecer a resiliência a pressões políticas.
  3. Integração de Tecnologias Avançadas: A adoção de soluções tecnológicas inovadoras deve ser uma prioridade para otimizar os procedimentos de licitação e gestão de contratos, aumentando a eficiência operacional e promovendo a transparência.
  4. Gestão de Riscos e Controles Internos: A implementação de uma gestão de riscos eficaz, conforme indicado pelo art. 11 da Lei 14.133/21, é indispensável. Esta abordagem assegura que os processos de licitação estejam alinhados com o planejamento estratégico, promovendo um ambiente íntegro e confiável.

 Nesse panorama, destacamos o programa Líderes que Transformam, instituído pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), representa uma prática exemplar para enfrentar esses desafios. Ele visa transformar a cultura de gestão de pessoas, selecionar lideranças alinhadas às competências e desafios da administração pública moderna e melhorar a qualidade dos serviços prestados à sociedade, instituindo um modelo de desenvolvimento de lideranças baseado em competências.

O sucesso na governança, administração e planejamento depende crucialmente da escolha adequada de assessores e lideranças comprometidos com a missão organizacional, muito além das técnicas e metodologias. A arte da política e da administração deve estar em harmonia com a visão técnica, promovendo um ambiente onde os objetivos institucionais estejam alinhados ao interesse público.

A realidade, por vezes, mostra que decisões no âmbito da administração pública são influenciadas por motivações políticas, desviando-se das diretrizes técnicas que deveriam priorizar o interesse público. Iniciativas como o programa Líderes que Transformam são fundamentais para impulsionar uma mudança de mentalidade e práticas, garantindo que as inovações legislativas sejam implementadas eficazmente e gerem impacto positivo na sociedade.

Conclusão           

A nova Lei de Licitações transcende a atualização de normas para compras públicas, vislumbrando uma transformação comportamental profunda na gestão pública. Inspirado nos ensinamentos de Frederick Herzberg, o movimento rumo à mudança engloba a motivação para além de recompensas financeiras, buscando o aprendizado, a colaboração, e o reconhecimento. Esta abordagem exige que os gestores públicos abandonem práticas ultrapassadas e se alinhem com o princípio fundamental de proteger o interesse da sociedade.

Essa transição não é apenas uma obrigação legal, mas uma oportunidade para reformular a cultura organizacional, promovendo uma administração pública que seja eficiente, transparente e comprometida com o bem-estar coletivo. A nova Lei de Licitações surge como um catalisador para essa transformação, estabelecendo um marco na governança pública que prioriza eficácia, integridade e um compromisso inabalável com o serviço ao público.

Ao enfrentarmos essa jornada de transformação, é crucial lembrar que o verdadeiro impacto reside na nossa capacidade de incorporar e aplicar esses novos princípios de maneira efetiva, garantindo que a gestão pública atenda eficientemente às necessidades da população. Portanto, cada passo nesse caminho deve ser guiado por um desejo genuíno de assegurar o bem comum, mirando em um futuro onde a administração pública não apenas atende, mas supera as expectativas da sociedade.

Em suma, a nova Lei de Licitações não representa apenas uma mudança legislativa, mas uma chance valiosa de aprimorar a qualidade e a integridade da gestão pública, refletindo a verdadeira essência do serviço público em benefício de todos.

 

 


Referências

______. Lei Federal nº      14.133/21,         de        01        de      abril    de        2021.                  Disponível                    em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 23 março 2024.

______.  AUGUSTINHO v Paludo ; ANTONIO G Oliveira, Governança Organizacional Pública e Planejamento Estratégico para Órgãos e Entidades Públicas, 2021, pag.6/ 145-146.

______. RONY Charles Lopes de Torres, Lei de Licitações Comentadas, 13ª edição, pag. 44/46

______.  –  klaus Schwab , A Quarta Revolução Industrial , edipro, pag. 109.

______. Carlos Henrique Harp COX, Planejamento operacional das Contratações Públicas conforme a Lei 14.133/21, Editora JusPODVM.

______. Líderes que Transformam – Para transformar o futuro da força de trabalho no governo. Disponível em: < https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/inovacao-governamental/forum-siorg/apresentacoes/programa-lideres-que-transformam-pptx.pdf>.  Acesso em: 23 mar. 2024.

______.           Antonio Fernandes Soares Netto, Silvio César da Silva Lima , Contratações de Tecnologia da Informação 4.0: segue o Jogo! – Ebook., Editora FORUM.

 

Autores

  • é advogada e servidora pública municipal, pós-graduada em Tecnologia e Inovação com Ênfase em Direito Público, Govtech e Regtech pelo Centro Universitário Uniftec, pós-graduada em Licitações e Contratos pela Faculdade PolisCivitas e presidente da Comissão da Mulher Advogada da 63ª Subseção da OAB-RJ.

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