Ambiente Jurídico

Tombamento de bens culturais e a razoável duração do processo administrativo

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

30 de setembro de 2023, 8h00

A palavra tombo, com o sentido de inventário ou registro, foi usada por Dom Fernando, em 1375, designando o Arquivo Nacional de Portugal, instalado em uma das torres que amuralhavam a cidade de Lisboa, local que ficou conhecido com o nome de Torre do Tombo. Os registros da administração portuguesa eram feitos nos Livros de Tombo, daí a sua denominação.

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Tombar significava, pois, inscrever as coisas importantes nos arquivos do reino, inventariar, arrolar.

Em nosso ordenamento jurídico o instituto do tombamento surgiu com a edição do Decreto-Lei nº 25/37, que é ainda hoje a lei nacional sobre tombamentos. O legislador da época entendeu por conservar as antigas expressões reinícolas no aludido diploma legal, acabando por preservar com tal iniciativa o nosso patrimônio linguístico.

O tombamento é um processo administrativo por meio do qual o poder público, a fim de proteger bens móveis ou imóveis dotados de valor cultural, reconhece formalmente o especial significado e interesse público do qual se reveste a coisa, que passa a ficar submetida a um especial regime jurídico no que pertine à disponibilidade, à conservação e à fruição, com o escopo de preservar os seus atributos.

A finalidade do tombamento é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais.

No que tange ao objeto, o tombamento pode ser aplicado aos bens móveis e imóveis, públicos ou privados, de interesse cultural ou ambiental, quais sejam: fotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas etc.

O processo de tombamento constitui-se na sequência lógica e ordenada de atos praticados pelo poder público com o intuito de identificar o valor cultural de bens que possam merecer a proteção pelo aludido instituto jurídico, individualizando-os e inscrevendo-os no respectivo livro de tombo depois de obedecidas as formalidades previstas em lei [1].

As fases do processo do tombamento podem ser identificadas como as mesmas que são comuns a todo processo administrativo: instauração, instrução, defesa, relatório e julgamento, cujo rito, previsto no Decreto-Lei nº 25/37, pode ser assim resumido:

a) Por iniciativa própria ou por provocação de terceiro, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) instaura o processo de tombamento e elabora os estudos técnicos necessários à verificação do preenchimento pela coisa dos requisitos que justificam o ato protetivo.

b) Em seguida, o proprietário do bem é notificado pelo Iphan para, no prazo de 15 dias, anuir ou não ao tombamento.

c) Uma vez efetuada a notificação, o bem fica sob o regime jurídico tombamento provisório e não pode sofrer alterações até o final do processo.

d) Havendo impugnação do proprietário, o Iphan manifestar-se-á sobre ela no prazo de 15 dias, levando o caso para a apreciação do Conselho Consultivo, que deverá se pronunciar em sessenta dias.

e) Se não houver impugnação no prazo legal, o processo também será encaminhado ao Conselho Consultivo para deliberação.

f) Após a manifestação do Conselho Consultivo pelo tombamento da coisa (havendo ou não impugnação do proprietário), o presidente do Iphan assinará o ato de tombamento e o submeterá à homologação do ministro da Cultura, nos termos da Lei nº 6.292/75 e do Decreto nº 5.040/2004, Anexo I, artigo 21, VIII.

g) Havendo a homologação, o bem será, finalmente, inscrito no Livro do Tombo.

h) Da decisão do ministro da Cultura caberá recurso ao Presidente da República, que poderá cancelar o tombamento (Decreto-Lei nº 3.866/41).

i) O tombamento definitivo dos bens imóveis de propriedade particular deverá ser averbado junto à matrícula, no Cartório de Registro de Imóveis.

Destaca-se que aos processos de tombamento de incumbência do Iphan aplicam-se, subsidiariamente, os dispositivos da Lei Federal 9,784/99 [2], que prevê em seu artigo 2º que a "administração pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência".

Questão que nos parece de fundamental importância, tanto para os interesses da coletividade relacionados à proteção de seus referenciais identitários, quanto para os proprietários e detentores de bens culturais, diz respeito à razoável duração do processo administrativo de tombamento.

Com efeito, se de um lado o processo não pode ter tramitação açodada, inconsequente, atropelando a necessária fundamentação e a observância dos direitos e garantias individuais, de outro não pode ter duração infinita, comprometendo o princípio da eficiência da administração pública e causando gravames desproporcionais aos titulares do domínio do bem sobre o qual se pretende a imposição definitiva de um regime jurídico especialmente restritivo.

Causa-nos perplexidade verificar na página eletrônica do Iphan, responsável pelo tombamento dos bens de significado para o país, que existam hoje instaurados, em tramitação, 84 processos entre 2020 e 2023; 145 processos entre 2000 e 2019; 37 processos entre 1990 e 1999 e 81 processos entre 1938 e 1989 [3].

Não nos afigura como coerente, nem tampouco razoável, que processos de tombamento perdurem por décadas a fio, demonstrando, a princípio, a falta de planejamento e de eficiência dos órgãos de proteção, o que causa indesejável comprometimento da credibilidade de todo o sistema de tutela dos bens culturais de nosso país.

Em tal contexto, insta salientar que a Constituição da República dispõe, em seu artigo 5º, LXXVIII, que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Por óbvio que tal mandamento se impõe ao trâmite dos processos administrativos de tombamento, que não podem ficar submetidos a fluxos ou influxos de voluntarismo, amadorismo, improvisação, leniência, desídia ou inépcia.

Como adverte Nagib Slaibi Filho [4]:

"O cidadão tem direito à decisão do Poder Público, em qualquer nível hierárquico ou esfera governamental, pois o Estado democrático está a serviço do indivíduo, não este a serviço daquele.

Serviços públicos, ainda que executados por delegação a pessoas privadas, destinam-se ao cidadão, pois, se assim não fosse, não seriam públicos…

Decisão tardia é ineficiente, desserve aos seus propósitos."

A correta tutela do patrimônio cultural brasileiro reclama conduta profissional, técnica, competente, eficiente e temporalmente adequada, sob pena de fazer incidir motivação para a necessária correção judicial [5].

A propósito, veja-se a seguinte ementa de recente decisão de nossa Suprema Corte:

"SUSPENSÃO DE LIMINAR. CONVERSÃO DO REFERENDO EM JULGAMENTO FINAL. MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE. IMÓVEIS SUJEITOS AO TOMBAMENTO PROVISÓRIO. DEMORA EXCESSIVA E INJUSTIFICADA. CAUTELAR DEFERIDA PARA DETERMINAR À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL A CONCLUSÃO FINAL DOS ATOS EM ATÉ 90 (NOVENTA) DIAS. ALEGAÇÃO DE RISCO À 'GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL MUNICIPAL'. SUPOSTA INCAPACIDADE ESTRUTURAL E OPERACIONAL PARA EFETIVAÇÃO DA ORDEM JUDICIAL. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA. MOROSIDADE IMPUTÁVEL À PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DIREITO DOS ADMINISTRADOS AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, À LEALDADE E À CONFIANÇA ADMINISTRATIVA E À DURAÇÃO RAZOÁVEL DOS PROCESSOS. 1. Busca o requerente sustar os efeitos de decisões judiciais que ordenaram ao Município de Belo Horizonte a conclusão final, em até 90 dias, de processos de tombamento provisório estagnados há mais de 17 (dezessete) anos. 2. Demora excessiva e injustificada, ofensiva aos direitos fundamentais das pessoas prejudicadas, destituídas da disponibilidade sobre o patrimônio, mediante atos atentatórios ao devido processo legal, à lealdade e à confiança dos administrados, à duração razoável do processo e ao direito de propriedade. 3. Situação de "caos na gestão do patrimônio cultural municipal" resultante de inércia e desídia imputáveis exclusivamente à própria Administração Pública municipal. 4. A interpretação da legislação municipal sobre tombamento e o exame da política municipal de cultura demandam análise incompatível com a natureza excepcional do instrumento de contracautela, envolvendo exame aprofundado da legislação ordinária e revolvimento do conjunto fático-probatório. 5. Suspensão denegada." (STF; SL-MC-Ref 1.633; MG; Tribunal Pleno; rel. min. Rosa Weber; Julg. 22/8/2023; DJE 04/9/2023).

Enfim, é preciso dar tratamento administrativo digno aos processos de tombamento de bens culturais em nosso país, de forma justa, coerente, proporcional, procurando sempre encontrar o necessário ponto de equilíbrio entre a preservação dos interesses públicos e a observância de interesses e direitos titularizados pelos proprietários das coisas portadoras de significados culturais.

Como já anunciava Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.): virtus in medium est.

 


[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora. 2ª ed. 2023. p. 187.

[2] Regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal.

[4] Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo Judicial e Administrativo. Revista da EMERJ, v. 3, nº 10, 2000. p.118-142. p. 120.

[5] Em tal sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO PELO PROCEDIMENTO COMUM. PROCESSO DE TOMBAMENTO. MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE. LEI MUNICIPAL Nº 3.802/1984. PRAZO PARA ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DE TOMBAMENTO. VIOLAÇÃO. PRINCÍPIO DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. POSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO DA TUTELA DE URGÊNCIA. MULTA DIÁRIA. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. Para a concessão da tutela provisória, imprescindível se faz a presença concomitante dos requisitos elencados no art. 300, do Código de Processo Civil, quais sejam, a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, observada a impossibilidade de a medida liminar produzir efeitos irreversíveis. O art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição prevê que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. A violação do prazo estabelecido em lei municipal para a análise dos procedimentos administrativos de tombamento, de forma excessiva e injustificada, autoriza o deferimento da tutela de urgência para determinar o seu julgamento pela administração pública. Atendidos os requisitos de razoabilidade e proporcionalidade, sobretudo à luz do caso concreto, inviável a alteração da multa diária arbitrada como forma de compelir o cumprimento da obrigação imposta. (TJ-MG; AI 0954653-84.2023.8.13.0000; 19ª Câmara Cível; rel. des. Versiani Penna; Julg. 10/8/2023; DJEMG 17/8/2023).

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