Ambiente Jurídico

Direito ambiental para seres humanos

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

17 de setembro de 2023, 17h46

A Constituição brasileira estabelece o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, nos seguintes termos: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

À primeira vista e de forma ordinária, pode-se concluir que o dispositivo constitucional se volta à garantia de conservação dos recursos naturais como mandamento que estabelece a possibilidade da chamada sadia qualidade de vida, eis que a expressão “ecologicamente equilibrado” se refere à ciência da Ecologia como ramo da Biologia que se preocupa com o estudo das relações estabelecidas entre os seres vivos e destes com o meio ambiente em que vivem.

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O direcionamento do mandato constitucional parece então estabelecer como objeto do direito os bens ambientais em si, atribuindo a "todos" um direito (meio ambiente ecologicamente equilibrado) e ao mesmo tempo, as obrigações de defender e preservar, dirigidas às pessoas que compõe o Poder Público e a coletividade.

Importante observar que a Constituição não explicita a quem se refere quando menciona o direito de "todos". Todas as pessoas? Todos os brasileiros? Todos os animais? Todas as plantas? Todos os seres vivos?

Ao mesmo tempo, quando se trata de pessoas explicitamente consideradas no texto constitucional — seres humanos que compõe o poder público e a coletividade — o que se estabelece é uma obrigação.

Empresto o conceito de direito ambiental de Talden Farias, brilhante escritor desta coluna: "O Direito Ambiental é o ramo da Ciência Jurídica que disciplina as atividades humanas efetiva ou potencialmente causadoras de impacto sobre o meio ambiente, com o intuito de defendê-lo, melhorá-lo e de preservá-lo, dentro dos padrões de qualidade ambiental estabelecidas, para as gerações presentes e futuras" [1].

Farias ainda ensina: "o objetivo do Direito Ambiental é defender o meio ambiente e a qualidade de vida da coletividade. Isso implica dizer que esse ramo da ciência jurídica não procura simplesmente regulamentar as relações humanas que se utilizam ou que possam se utilizar dos recursos naturais, posto que sua finalidade é promover a proteção e a melhoria da qualidade ambiental" [2] (sem grifos no original).

A rigor então poderíamos concluir, a partir do conceito de direito ambiental e de seus objetivos, que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se ocupa e tem como bem jurídico protegido os bens ambientais, o meio ambiente e a qualidade ambiental o que se manifesta por suas partes integrantes — fauna, flora, clima, solos, águas e assim por diante — afinal são estes que, em sua originalidade, criam as interações que permitem o equilíbrio necessário à existência da vida e desta, com qualidade.

Parece então e como não é induvidoso mencionar que quando se trata de meio ambiente há no pano de fundo, uma exclusão subliminar do ser humano, que aparece, neste âmbito, unicamente como o detentor da obrigação dirigida ao dever de cuidado com os bens ambientais.

Se pesquisarmos as palavras ecologia e meio ambiente (expressões usadas no artigo 225 da Constituição) em qualquer dispositivo de busca na internet encontraremos imagens de áreas verdes, da presença dos elementos naturais, do céu, do sol, das nuvens, chuvas, rios, florestas e uma imagem bastante comum: mãos humanas segurando mudas de árvores ou o próprio planeta, transmitindo a mensagem do dever de cuidado em relação aos recursos naturais.

Contudo, em qualquer tratado de ontologia jurídica que busca, desta vez, a análise do conteúdo do direito, visando conhecer o seu objeto, o "ser" do direito, coloca o que antecede o próprio direito, que é a existência humana. Sem seres humanos não há direitos, não há normas, não há hermenêutica jurídica.

Desta feita, parece óbvio que o direito é feito pelo homem, portanto, provem de ferramentas mentais, presentes na estrutura psíquica do ser.

Por origem, portanto, uma exclusão do ser humano como elemento central do direito ambiental parece constituir um grave equívoco com consequências negativas importantes no alcance do êxito que o próprio direito ambiental se propõe a realizar.

O ser humano é o criador originário do direito ambiental e da mesma forma seu receptáculo, ou seja, é em si quem cria o direito, quem viola o direito e a quem o direito ambiental beneficia, sem prejuízo dos demais seres que compõe o meio ambiente, parece claro.

Chama-se atenção aqui para a necessidade de inserção do ser humano no meio ambiente e via de consequência, no direito ambiental pois, por decorrência lógica, não haverá proteção e defesa do meio ambiente sem que a variável humana seja considerada.

Aqui cabe um destaque importante para trazer à luz a compreensão sobre a conceito que se estabelece no entendimento do que é o ser humano ou dessa variável humana que faz toda a diferença.

Quer-se aqui, trazer à lume, exatamente, o que nos caracteriza como seres humanos e como tal, o que nos coloca na condição de autores e receptores do direito ambiental como forma de compreensão de que sem a inclusão e consideração desses fatores que nos diferenciam dos animais, não haverá solução para a questão ambiental.

Conforme ensinamento de Capra: "estudos sobre a comunicação com os chimpanzés, em particular com a ajuda de linguagem de sinais, confirmaram que as vidas cognitiva e emocional de animais e seres humanos diferem apenas em grau (veja Fouts, 1997), que a vida é um grande continuum em que as diferenças entre as espécies são graduais e evolutivas … nas palavras dos linguistas cognitivos George Lakoff e Mark Johnson, a razão, até mesmo em sua forma mais abstrata, faz uso de nossa natureza animal, em vez de transcendê-la … Desse modo, a razão não é uma essência que nos separa de outros animais; em vez disso, ela nos coloca em continuum com eles (Lakoff e Johnson, 1999, p.4)". [3]

Assim, colocar o meio ambiente no âmbito de uma ciência jurídica que objetiva e simplificadamente utiliza o ser humano na equação ambiental como um ser racional que deve cumprir normas que qualifica os comportamentos como legais e ilegais, parece não ser, de fato, o que viabilizará um meio ambiente ecologicamente equilibrado, exatamente porque nessa racionalidade figuramos mais como animais e menos como humanos. E como dito, a solução está mais próxima da nossa condição humana que é a mesma que nos levou ao problema.

Lá se vão mais de 50 anos desde a Conferência de Estocolmo em que centenas, senão milhares de normas vem sendo estabelecidas para a proteção do meio ambiente, sem que avanços importantes tenham acontecido em todo o planeta.

Suspeito que uma das causas possa ser o constructo do direito, que, ao excluir a figura humana da equação que relaciona meio ambiente e qualidade de vida, eliminou da solução aquele único ser vivente que poderá construir a correta resposta para o problema que ele próprio criou.

Em outras palavras, usar o direito no âmbito da visão do paradigma mecanicista, colocando o homem como uma máquina que cumpre normas é insistir no erro e portanto, no problema.

Traz-se à luz, nesse sentido, que o ser humano não se caracteriza pela sua razão, muito menos pela objetividade que o colocaria como uma máquina cumpridora de regras. É preciso que o ser humano seja visto, na equação ambiental, em sua integralidade, complexidade, problematicidade e sobretudo, nas suas características e potencialidades que o elevam a uma condição que lhe permite fazer parte da solução.

Por ser humano, no que pretendemos ora defender, busca-se apreender as características que nos colocam nessa condição, nos diferenciando dos demais animais.

Na obra — "A visão sistêmica da vida" —  Capra anuncia tais características: "(i) a natureza agressiva dos seres humanos que são os únicos que realizam ataques premeditados contra outros grupos da mesma espécie sendo a mais beligerante e cruel; (ii) amor e altruísmo; (iii) consciência e espiritualidade que se manifesta pela consciência do ser, que por sua vez, se dirige por meio de uma sensação de assombro, reverência, espanto e admiração em relação aos mistérios da natureza; (iv) curiosidade e sede de conhecimento que se manifesta por meio do estabelecimento de uma relação entre inteligência humana, pensamento abstrato e mente; (v) busca pela beleza e pela harmonia que se manifesta nas artes, no senso de justiça e num sentido estético" [4].

Chamamos atenção, dentre as características exclusivamente humanas, aquela que se refere ao excesso de agressividade e beligerância que se expressa por diferentes formas e manifestações. Ensina Capra que: "Acaso não são as recentes formas de colonialismo e o atual capitalismo predatório expressões da agressividade humana? … nosso mundo de hoje é dominado por um sistema econômico global com desastrosos impactos sociais e ambientais. A trágica consequência dessa forma de violência é o fato de que somos a única espécie na Terra que destrói o seu próprio habitat, ameaçando, no processo, incontáveis outras espécies com a extinção. Para as causas determinantes dessa agressividade, também precisamos atribuir emoções negativas, como raiva, ódio e ciúme" [5].

Sendo assim, considerar que a agressividade e a violência são intrínsecos aos seres humanos a ponto de não se encontrar na face da Terra qualquer evidência de uma sociedade verdadeiramente pacífica e que essa natureza nos coloca diante da destrutividade, do desejo de extermínio e que isso tem levado as graves consequências sobre o meio ambiente é condição sine qua non haverá sucesso na empreitada de proteger e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, sobretudo quando a forma do Poder Público agir sobre quem viola a norma que rege o direito é também pelo uso da violência e da força manifestada por multas, embargos, ações penais, prisões, indenizações e assim por diante.

Há urgência em se fazer um direito ambiental que inclua a natureza humana nesta conta. Há premência de mudança do paradigma científico mecanista e objetivo para uma uma realidade sistêmica, em que a vida se faz em rede e que considera a esfera cotidiana da atuação humana situada no res cogitans, ou seja, no sujeito pensante, que tem emoções e agressividade mas também amor e altruísmo, consciência e espiritualidade e ainda, em si, a busca pela beleza e pela harmonia.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado se fará possível quando se deixar de excluir o ser humano dessa equação e se incluir, no âmbito das políticas públicas, da economia e da sociedade, as causas que levam a destruição da natureza, manifestadas, no contexto psíquico humano, pelo desejo de extermínio que ainda persiste em nossa realidade existencial.

Há que se incluir, dentre as possibilidades de solução, a não violência e a força, mas os instrumentos de pacificação, de diálogo, de ampliação da consciência numa mudança que envolve novas mentalidades, novos saberes, novos pensamentos e novos valores,  reforçando e utilizando as grandes características positivas, essencialmente humanas, consubstanciadas na sua busca pela beleza e harmonia e também e principalmente, na reverência e admiração em relação aos mistérios da mesma natureza ora ofendida, ou seja, na sua espiritualidade, na reconexão ou religare ou relegere (que originou a palavra religião) que aponta para a retomada de uma dimensão espiritual do ser humano, que o conecta com a origem e com o respeito a algo maior, com a sacralidade e com a unidade intrínseca à vida neste planeta que coloca homens, animais, vegetais e minerais como um todo unificado e que compartilham a experiência de uma única casa comum.

 

 


[1] https://www.conjur.com.br/2020-set-26/ambiente-juridico-questoes-basicas-direito-ambiental

[2] Idem.

[3] Capra, Fritjof. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Fritjof Capra, Pier Luigi Luisi. São Paulo : Cultrix, 2014. P.306

[4] Idem, p. 307 a 313

[5] Idem. p 308

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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