Prática Trabalhista

A (i)legalidade da jornada de trabalho em regime SDF

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

28 de setembro de 2023, 8h00

É certo que uma das principais conquistas da classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, foi a limitação da duração da jornada de trabalho [1]. Nesse sentido, dentre as mais diversas discussões existentes acerca do tema, têm-se hoje os recentes casos envolvendo a possibilidade ou não de contratação para o labor em regime de trabalho SDF.

Spacca
Mas, afinal, o que seria SDF?
Entende-se como contratação para o trabalho no regime SDF a prestação de serviços apenas aos sábados, domingos, feriados e dias de ponto facultativo, por regra em jornadas de 12 horas [2].

Geralmente esse tipo de jornada é ajustado para os trabalhadores que desempenham a atividade de vigilância e portaria/controladores de acesso, mas não exclusivamente.

Por certo, esta temática é polêmica, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, desta ConJur [3], razão pela qual agradecemos o contato.

Spacca
Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, o inciso XIII do artigo 7º da Constituição preceitua que "a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho". Lado outro, a Consolidação das Leis do Trabalho aborda a temática da jornada de trabalho em seus artigos 58 a 65 [4].

Destarte, com o advento da Lei 13.467/2017 [5], e desde que sejam respeitados os limites constitucionalmente assegurados pela Lei Maior, os instrumentos coletivos de trabalho (fontes legislativas autônomas) terão prevalência, doravante, sobre a lei estatal (fonte legislativa heterônoma), no que tange à pactuação da jornada de trabalho e ao banco de horas.

A propósito, sobre a limitação da jornada de trabalho, oportunos são os ensinamentos do professor doutor Adalberto Martins, da PUC-SP [6]:

"As normas legais que limitam a jornada de trabalho são de ordem pública, por uma questão de higidez física e mental do empregado, e que interessa ao Estado. Contudo, não se ignora que, pelas próprias partes, ou por meio das normas coletivas, podem ser fixados limites inferiores, até mesmo em obediência.
(…). No Brasil, os primeiros destinatários de normas que limitavam a jornada de trabalho foram as crianças e os adolescentes, nos termos do Decreto 1.313, de 17.1.1891. A limitação de oito horas diárias beneficiou os trabalhadores no comércio com o Decreto 21.186, de 22.3.1932, e os trabalhadores da indústria com o Decreto 21.364, de 4.5.1932, tendo vários outros decretos surgidos para beneficiar outras categorias, até que a Constituição de 1934 limitou a jornada em oito horas para todos os trabalhadores."

Dito isso, os questionamentos sobre a validade da contratação para o labor no regime SDF já estão sendo levados aos tribunais trabalhistas.

Com efeito, para a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, por exemplo, é possível a validação deste regime próprio de labor implementado pelas partes, na qual o empregado pode trabalhar 12 horas em dois dias consecutivos (exceto se houver feriado na semana), tendo como contrapartida o direito de folgar os cinco dias durante a semana [7].

Em seu voto, a desembargadora relatora ponderou:

"No caso, o autor fora admitido ciente de que trabalharia em jornada reduzida e da remuneração que receberia por isso. O autor auferia uma remuneração superior ao salário mínimo  que em 2015 era de R$ 788  para laborar, em regra, 24 horas na semana, com folga em 5 dias consecutivos. Trata-se, claramente, de condição muito mais favorável do que as 7h20 diárias de segunda à sábado  totalizando 44 h semanais  do que a legislação autoriza em contrapartida do salário mínimo. Nessa toada, não remanescem dúvidas sobre a favorabilidade do pacto contra o qual se insurge o autor, de modo que a ausência de autorização coletiva específica não prejudica a sua validade."

De igual modo, a 18ª Turma o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região também validou o chamado regime SDF por entender que haveria a compensação da jornada em razão da ausência de labor nos demais dias da semana [8]. Contudo, em sentido contrário, a 16ª Turma do referido tribunal paulista declarou a invalidade do regime SDF por ausência de previsão normativa específica, tampouco em instrumento coletivo de trabalho [9].

No caso concreto, a convenção coletiva de trabalho previa apenas o labor em regime de tempo parcial, porém, a desembargadora relatora destacou: "no entanto, conforme alertado pelo recorrente em sua exordial, analisando o caso sob o prisma do regime de tempo parcial previsto na CCT da categoria e dos cartões de ponto válidos acostados aos autos, denota-se que ao menos uma vez por mês, existia labor semanal de 36 ou 48 horas, o que é expressamente proibido pela legislação celetista".

Entrementes, é importante destacar que não se confunde o regime de trabalho SDF, que é aquele no qual o labor acontece aos sábados, domingos e feriados, com o regime de tempo parcial previsto no artigo 58-A da CLT [10]. Nesse diapasão, o Tribunal Superior do Trabalho já foi provocado a emitir juízo de valor quanto à licitude do regime de trabalho SDF firmado por norma coletiva, ocasião em que houve a sua validação [11].

Em seu voto, a ministra relatora observou:

"O Regime de Trabalho SDF, dado suas particularidades, não pode ser considerado como de tempo parcial, previsto no artigo 58-A da CLT, acrescentado pela Medida Provisória nº 2164-40, de 24/07/2001, e que tem como traços distintivos dos demais contratos, por exemplo, o fato de não permitir a prestação de horas extras (artigo 59, §4º, da CLT) e de prever férias proporcionais no máximo de 18 dias, de acordo com a jornada semanal cumprida (artigo 130-A da CLT). A reclamada, de acordo com o Tribunal Regional, cumpriu com suas obrigações trabalhistas decorrentes do que foi pactuado em norma coletiva para o 'Regime de Trabalho SDF', consignando que foram carreados aos autos demonstrativos de pagamento, nos quais consta o adimplemento de horas extras, de forma que cabia ao reclamante demonstrar eventual diferença no pagamento destas horas, mas que desse ônus não se desincumbiu. Ilesos, portanto, os artigos 58-A e 59, §4º, da CLT."

Impende salientar, porém, que a cumulação da jornada 12×36 com o regime de trabalho SDF revela-se ilegal, afinal, se é verdade que na escala 12×36 ocorrerá o descanso de 36 horas consecutivas, sem interrupção, idêntica lógica, porém, não acontecerá no regime SDF. Sob esta perspectiva, caso seja levada ao Poder Judiciário, a escala de 12×36 poderá ser anulada e, por conseguinte, serem deferidas as horas extras daí correspondentes.

Portanto, ao analisar a temática envolvendo a adoção do regime de trabalho SDF, é preciso verificar o caso concreto, assim como respeitar a negociação entre as partes. Aliás, vale lembrar que o artigo 59-A da CLT [12], incluído pela Lei 13.467/2017, possibilita às partes transacionarem de forma individual ou por meio da negociação coletiva a escala 12×36, de modo que, em regra, a adoção do regime SDF se traduziria numa carga horária menor.

Em arremate, é importante ressaltar que, caso seja constatado que o objetivo da implantação deste regime foi desvirtuado, de forma a impedir ou fraudar a legislação trabalhista, não há dúvidas que poderá ser decretada a sua nulidade [13], por afronta aos direitos e garantias fundamentais, aos direitos sociais e aos direitos humanos dos trabalhadores.

 

 


[1] Disponível em: https://www.tst.jus.br/jornada-de-trabalho. Acesso em 26.9.2023.

[3] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 26.09.2023.

[5] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 26.09.2023.

[6] Manual Didático de direito do trabalho – 7ª ed. – Leme-SP: Mizuno, 2022. Página 208 e 209.

[10] Artigo 58-A. Considera-se trabalho em regime de tempo parcial aquele cuja duração não exceda a trinta horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares semanais, ou, ainda, aquele cuja duração não exceda a vinte e seis horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais.

Artigo 59-A.  Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação. 

[13] Artigo 9º. Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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