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15 Anos da reforma processual penal de 2008 e a "lei que não pega"

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Daniel Kessler de Oliveira

    é doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Professor nas áreas do direito penal e processo penal na Universidade Feevale em Novo Hamburgo. Advogado criminalista.

3 de outubro de 2023, 9h19

Antes de continuarmos na análise do julgamento do "pacote anticrime", decidimos abordar a ineficácia estrutural das reformas realizadas nos últimos anos, em especial a que completa 15 anos. A função é a de lançar luzes sobre as dificuldades em cascata decorrentes dos constantes "remendos" do Código de Processo Penal.

Este ano completa 15 anos da "nova" reforma processual penal, advinda com as leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, que trouxeram uma ampla modificação no Código de Processo Penal Brasileiro. A referida reforma se insere no contexto de diversas pequenas reformas que não refundaram o processo penal brasileiro, que não efetivam a tardia mas ainda necessária oxigenação constitucional e que tornam o nosso sistema processual penal uma verdadeira "colcha de retalhos", com pequenas reformas que visam, por vezes, impor a vontade constitucional de um modelo acusatório mas ainda encontram resistência numa estrutura segregada aos grilhões inquisitoriais que insistem em permanecer.

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Às vésperas da valsa, da debutante reforma se percebe algumas leis que se efetivaram e tantas outras que não saíram do papel. A reforma, à sua época, já fora objeto de críticas, seja por trazer regras despidas de sansões para o seu descumprimento, o que obviamente, conduz à ineficácia do texto normativo; seja, ainda, por trazer dispositivos que se apresentavam desconectados da realidade forense e que não encontrariam respaldo na vontade de muitos atores judiciais em efetivá-las, ou, ainda; por mudar amplamente os procedimentos criminais, sem alterar a matéria das nulidades processuais, o que consagra a ideia de forma como mero ritual protocolar, sem conceber a sua dimensão enquanto uma garantia fundamental. [1]

Pois bem, como tratar a problemática questão de que algumas mudanças se efetivaram, ou seja, algumas leis de fato "pegaram", ao passo que tantas outras seguem cumprindo uma função meramente decorativa, tal qual um adorno na parede, que enfeita a legislação, mas que não apresenta nenhuma utilidade prática?

Os estreitos limites do presente trabalho não permitem um mergulho profundo nas raízes do problema, tampouco possibilita uma análise de todas as alterações. Mas, à título de exemplo, pode-se enumerar algumas das principais mudanças da lei e, posteriormente, avaliar alguma das causas de sua inefetividade.

Como mudanças que vingaram, é possível elencar o interrogatório ao final da instrução processual, como uma medida de ampliar o espaço defensivo e o exercício da defesa pessoal, algo que é uma realidade no cotidiano forense, sendo o interrogatório o último ato da instrução processual. Sem nenhum rigor metodológico na pesquisa de precedentes, mas com o único propósito de enumerar exemplos disso em decisões dos Tribunais Superiores, mencionamos o julgado REVISÃO CRIMINAL Nº 5.663-DF (2021/0319597-1)[2] onde o STJ anulou o processo por inversão da ordem dos depoimentos, sustentando a necessidade do interrogatório ser o último ato da instrução.

Outro ponto positivo a ser destacado é o respeito ao direito ao silêncio no tribunal do júri, proibindo a menção ao seu uso pelo Acusado, sob pena de nulidade. Consoante exposto em julgado do STJ, no AgRg no AREsp 2.259.084, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca[3]. Ainda que haja uma margem interpretativa no que define o "argumento de autoridade", é inegável que representou um avanço e uma importante garantia a ser usada na defesa do Direito ao silêncio e, por conseguinte, à presunção de inocência. Sem prejuízo de outros exemplos que poderiam ser enumerados, vejamos onde a lei "não pegou".

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Em um primeiro momento os prazos despidos de sanção, como, por exemplo, aquele que determina que a audiência deverá ser realizada em até 60 dias, algo que não é cumprido e que os juízes sequer possuem o constrangimento de tentar justificar o descumprimento do mandamento consagrado na lei. [4] Ainda, é possível apontar a previsão legal de audiência una, com toda a produção da prova em uma única solenidade, priorizando a imediatidade e a originalidade cognitiva do órgão julgador, abrindo-se para debates orais pelas partes e com final sentença pelo juiz do processo. Isso era fundamental para termos um processo pautado pela oralidade, mas que infelizmente "não pegou", ou seja, poucos realizam e nenhum constrangimento existe quando desatendido.

O artigo 212 do CPP é um exemplo do movimento pendular ou da bipolaridade do processo penal. Claramente se pretendia instaurar o cross examination, fortalecendo as práticas acusatórias e, por consequência, atribuindo o protagonismo probatório às partes (sistema acusatório). O juiz — neste modelo — deixa de ser o protagonista, não mais fazendo toda a inquirição/inquisição para depois deixar as partes "fazerem de conta" que produzem a prova (na verdade já produzida por ele). O "novo" artigo 212 atribuiu ao julgador uma atuação supletiva, podendo perguntar, mas após a atuação integral das partes e apenas "sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição".

Em que pese a clareza do dispositivo, nestes 15 anos de legislação não foram (e seguem não sendo) poucos os entendimentos que esvaziaram o texto legal, na costumeira flexibilização das formas a partir da relativização das nulidades, mantendo o julgador como senhor da prova e da audiência, que iniciava os questionamentos e, pouco ou quase nada, deixava para as partes, alocando-se, indevidamente, na função de parte e desprezando o princípio supremo da imparcialidade. [5]

No entanto, o STJ vem decidindo que, em determinados casos, quando o julgador assumir o protagonismo da audiência seria caso de nulidade, a partir da presunção do prejuízo.[6] Ora, o simples desrespeito a forma gera um prejuízo para a parte hipossuficiente, no caso do processo penal, o acusado. Do contrário não haveria razão de existir a previsão legal de formas de proceder. No entanto, a relativização da nulidade e a lógica da convalidação, deixa um terreno fértil para abusos jurisdicionais e incentiva a postura ativa do julgador em audiência, mesmo que contrariando o texto de lei. [7]

O risco inquisitorial desta postura é evidente, ao passo que quem procura sabe ao certo o que deseja encontrar  e o magistrado imbuído dos poderes de questionar a testemunha, inevitavelmente, tentará confirmar a hipótese mentalmente criada, o que o torna totalmente contaminado diante da prova a ser produzida.

A resistência em aplicar o artigo 212 decorre de vários fatores, mas é essencialmente fruto da cultura inquisitória vigente. A crença na sacralidade e centralidade do julgador é o mais marcante traço da matriz inquisitória que ainda habita — no mínimo inconscientemente — a cabeça dos atores judiciários.

O artigo 212 é um exemplo muito claro de que não adianta mudarmos a lei, muito menos fazer reformas pontuais, pois é preciso um choque cultural muito mais profundo e que demandaria uma ruptura muito mais forte, para que realmente as práticas mudassem na dimensão pretendida. Enquanto não se compreender que no processo penal "forma é garantia" e que sua função precípua é a limitação ao poder de punir, tudo poderá ser relativizado e, portanto, esvaziado. Ainda caminhamos com pequenas e, por vezes, artificiais reformas, carentes de uma refundação do processo penal brasileiro que permita a mudança cultural, sem a qual o processo penal constitucional não poderá ser efetivamente concretizado. Passados quinze anos desta reforma, a luta segue.

Agora, com a Lei 13.964/2019 e o posterior julgamento pelo STF das ADI's, pensamos que talvez o artigo 3-A (processo penal terá estrutura acusatória) faça com que o artigo 212 efetivamente "pegue", ou seja, rompa com o modelo antigo. Precisamos voltar a requerer nas audiências que as partes iniciem e tenham protagonismo nas inquirições, forçando a mudança de postura daqueles que ainda resistem — mesmo passados 15 anos — em compreender qual o lugar do juiz no processo penal constitucional e acusatório.

Eis o estado da arte que nos autoriza retomar, semana próxima, a análise do rat. 3º-B e seguintes do CPP.

 


[1] Não podemos deixar de (novamente) criticar o sistema de reformas pontuais no processo penal, pois a inconsistência sistêmica novamente se manifesta quando analisamos a teoria das invalidades processuais. Houve uma profunda reforma nos procedimentos, mas, por exemplo, manteve­-se a redação originária do art. 564 e s. do CPP. E o Tribunal do Júri, cujo novo rito é completamente distinto do anterior, como é possível lidar com os (novos) problemas na superada estrutura legal vigente? Evidente a necessidade de uma urgente adequação. LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. P: 435.

[2] Superior Tribunal de Justiça. REVISÃO CRIMINAL Nº 5.663 – DF (2021/0319597-1). Relator: MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK. Julgado em 18/05/2022.

[3] "A jurisprudência desta corte superior de justiça é no sentido de que a menção ao silêncio do acusado, em seu prejuízo, no plenário do tribunal do júri, é procedimento vedado pelo artigo 478, inciso II, do Código de Processo Penal (CPP). No entanto, a mera referência ao silêncio do acusado, sem a exploração do tema, não enseja a nulidade." AgRg no AREsp 2.259.084, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 22/5/2023.

[4] “O prazo constante no artigo 400 do Código de Processo Penal – 60 (sessenta) dias, em regra, para a realização da audiência de instrução e julgamento – é impróprio, ou seja, inexiste sanção em caso de inobservância.” AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.166.037 – PB (2017⁄0236905-7). Min Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em 17/12/2019.

[6] HC 735519 / SP HABEAS CORPUS 2022/0106525-6. Min. Sebastião dos Reis Junior. Julgado em 22.08.2022. HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECEPTAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. INQUIRIÇÃO JUDICIAL. ART. 212 DO CPP. INQUIRIÇÃO DIRETAMENTE PELO MAGISTRADO. IMPOSSIBILIDADE. PROTAGONISMO DO JUIZ. IRREGULARIDADE. PREJUÍZO EVIDENCIADO. PROVAS DA CONDENAÇÃO FORAM AS OBTIDAS POR MEIO DO PROCEDIMENTO IRREGULAR. ART. 212 DO CPP. VIOLAÇÃO. LIMINAR DEFERIDA PARA DETERMINAR A SUSPENSÃO, ATÉ O JULGAMENTO DO MÉRITO DO PRESENTE WRIT, DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO. PARECER PELO NÃO CONHECIMENTO DA IMPETRAÇÃO OU PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. LIMINAR CONFIRMADA.

[7] Vale lembrar, que é o modelo inquisitório que dispensa formas, pois estas são concebidas como um entrave ao alcance do desfecho “justo” ao revelar da “verdade” através do processo. A análise introspectiva exercida pelo juiz inquisidor, rechaça vínculos e formas, exigindo tempo prolongado, penumbras, palavras insinuantes, armadilhas, em um quadro fático indefinidamente variável. (CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fe de Bogotá Editorial Temis:, 2000. P. 24.)

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • é juiz de Direito de segundo grau do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) e juiz instrutor no Supremo Tribunal Federal (STF), doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • é advogado criminalista, doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Feevale do Rio Grande do Sul.

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