Opinião

Fishing expedition e a instauração de investigação criminal

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1 de outubro de 2023, 7h12

Este artigo aborda as condições mínimas que devem ser consideradas para a instauração de inquérito policial ou investigação correlata com o fim de se garantir o respeito às garantias fundamentais do cidadão, bem como de se evitar a prática indevida da denominada pescaria probatória (fishing expedition), especialmente em relação aos chamados crimes financeiros. Para tanto, são considerados dois planos objetivos: o primeiro referente a uma (ou mais) hipótese criminal delimitada, e o segundo alusivo à necessidade de haver pelo menos um indício da prática de crime.

Características do inquérito policial e investigações correlatas
O inquérito policial é considerado de forma pacífica pela doutrina como um procedimento de natureza administrativa, discricionária, oficial e oficiosa e tem por finalidade a colheita de elementos de informação sobre determinado fato pretérito criminoso, a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo. Em outras palavras, essa investigação, que pode ser realizada por diversas instituições, tem como função elementar a descoberta de elementos mínimos que possibilitem a propositura de ação penal [1].

O legislador definiu que o inquérito policial "tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais" (artigo 2º, §1º da Lei 12830/13). Aury Lopes Junior assevera que, para atingir o seu objetivo a verificação de determinado fato criminoso , o inquérito policial tem seu campo de cognição limitado. No plano horizontal, está limitado a demonstrar a possibilidade da existência do fato aparentemente punível e a autoria, coautoria e participação do sujeito passivo. Já no plano vertical, alude "aos elementos jurídicos referentes à existência do crime vistos a partir do seu conceito formal (fato típico, ilícito e culpável). O IP deve demonstrar a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade aparente, também em grau de probabilidade" [2].

Em complemento às características apontadas acima, este artigo pretende demonstrar que, para a instauração de investigação criminal — tendo em vista a repercussão causada sobre os direitos fundamentais do investigado  é imprescindível o atendimento às seguintes condições: 1) delimitação do fato criminoso a ser apurado, a demonstrar a chamada hipótese criminal delimitada, e 2) verificação de, ao menos, um indício (lato sensu) [3] do fato criminoso a ser apurado.

A necessidade de uma hipótese criminal delimitada
A investigação criminal, conforme leciona Erick Spiegel Sallum, caracteriza-se pela metódica coleta de informações direcionada a testar uma hipótese criminal delimitada. Essa hipótese representa o objeto específico e determinado da investigação.

Logo, a delimitação do fato criminoso a ser apurado deve constar expressamente na portaria inaugural do procedimento investigativo, seja no inquérito policial (IP), conduzido pela Polícia Judiciária; seja no Procedimento de Investigação Criminal (PIC), conduzido pelo Ministério Público [4], para que a investigação atenda aos seus objetivos legais: apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria de determinada infração penal. Embora a lei não estabeleça requisitos formais, tem-se que, quando da elaboração da instauração do inquérito policial (portaria), mostra-se essencial que a autoridade narre o fato que será investigado e informe a maneira pela qual tomou conhecimento dele.

O estabelecimento claro do objeto da investigação, desde a sua instauração, constitui limite ao Estado, impedindo a instauração de procedimentos obscuros (kafkianos), à margem da legalidade.

A necessidade de um indício da prática de crime
Além de uma hipótese criminal delimitada para a instauração de investigação criminal, deve a autoridade constatar a existência de, pelo menos, um indício do crime a ser apurado, sendo este entendido não como prova indireta, mas como elemento de convicção semipleno, de menor valor persuasivo, de percepção vertical rasa e cognição sumária [5].

Nesse sentido, a Lei nº 13.689/2019 (Lei de abuso de autoridade), acertadamente, criminalizou a conduta da autoridade que requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa.

A inovação legislativa veio em boa hora e reforça o entendimento de que a instauração de investigação deve atender a balizas mínimas, tendo em vista sua capacidade de atingir o chamado status dignitatis do investigado [6].

A necessidade de uma hipótese criminal delimitada e a verificação de, ao menos, um indício do fato criminoso como forma de se evitar a prática de fishing expedition
Como visto, a instauração de procedimento investigatório deve atender a condições mínimas, sob pena de exercer sobre o investigado manifesto constrangimento ilegal. Mas não é só: o respeito a tais balizas tende a impedir — ainda que não expressamente  a indesejada prática da pescaria probatória (fishing expedition).

Tal conceito é muito bem delineado por Viviani Silva, Alexandre Morais da Rosa e Philipe Benoni, que destacam ser possível definir pescaria probatória como a apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, "pescar" qualquer tipo de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto.

Trata-se de uma investigação especulativa, indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, lança suas redes com a esperança de pescar qualquer prova para subsidiar uma futura acusação. Como consequência, não pode ser aceita no ordenamento jurídico, sob pena de malferimento das balizas de um processo penal democrático de índole constitucional [7].

Para se evitar a prática indevida de pescaria probatória, quando da instauração de investigações, é necessário que se defina antecipadamente o seu objeto e subsista pelo menos um indício de materialidade delitiva. Afinal, "o inquérito policial serve  essencialmente — para averiguar e comprovar os fatos constantes na notitia criminis. Logo, o inquérito policial nasce da mera possibilidade, mas almeja a probabilidade" [8].

A problemática dos crimes financeiros
A praxe forense, nada obstante, revela que as condições apontadas acima para a instauração de investigação, muitas vezes, não são consideradas. O fato é ainda mais evidente quando relacionado aos chamados crimes financeiros, que, em razão de sua complexidade, muitas vezes não têm sua materialidade delimitada de forma clara, ao contrário dos crimes contra a vida e patrimônio, por exemplo.

É o caso da notícia sobre determinado fato atípico, que, muitas vezes, é denominado como "suspeito", embora não exista uma hipótese criminal específica e que acaba sendo aproveitada como circunstância (condição) para dar início à investigação criminal. Tal circunstância, como visto, não é compatível com um processo penal balizado pelos ditames constitucionais.

Essa alegada "suspeita" não deve ser confundida com o indício, ainda que considerado como elemento de informação com menor valor persuasivo. Quanto ao ponto, Antônio Magalhães Gomes Filho afirma que não é possível confundir o indício  sempre um dado objetivo  com a simples suspeita que não passa de um estado de ânimo, tratando-se de um fenômeno subjetivo. Enquanto o primeiro é constituído por um fato provado que autoriza a indução sobre outro fato, ou, pelo menos, constitui elemento de menor valor; a segunda é pura intuição, mero juízo conjectural, que pode conduzir a engano [9].

Apesar de parecer simples, tal constatação é de suma importância para que não se abram margens para investigações especulativas.

Nesse sentido, cumpre chamar a atenção para as investigações que são instauradas, exclusivamente, com base nos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) produzidos e encaminhados pelo Coaf, sem a existência de uma hipótese criminal concreta, sobretudo porque o órgão sequer exerce atividade investigativa, mas sim de inteligência.

Sobre o tema, o ministro Gilmar Mendes ponderou em seu voto no Habeas Corpus 201965/RJ [10], que "os RIFs, por sua própria natureza, não constituem elementos indiciários ou probatórios autônomos capazes de, por si sós, desencadear a instauração de procedimento investigatório ou ação penal" [11].

De modo que "a função primordial dos RIFs, sua verdadeira vocação instrumental, é possibilitar a realização de outras medidas investigativas que poderão ser utilizadas como elementos de prova, em especial a quebra de sigilo bancário e fiscal submetidas à reserva de jurisdição", não o contrário. O sistema precisa fechar.

Asseverou-se, ainda, no mesmo voto que: os termos do que fora fixado no Tema 990 da RG: 1) há a necessidade de procedimento investigatório formalmente instaurado, nos termos da lei, de modo a não caracterizar quebra por mecanismos não informais, de maneira disfarçada ou em eventual fishing expedition; 2) em complementação ao item anterior, a disseminação dos dados sensíveis pelo Coaf deve ser realizada mediante a via oficial do sistema SEI-C; 3) o procedimento sujeita-se a posterior controle judicial, nos termos do artigo 5, XXXV, da CF.

Tais constatações são importantes para que não seja admitida a instauração de investigações sem um objeto determinado, sem que exista uma hipótese criminal clara, e, como resultado, ocorra a denominada pescaria probatória.

Assim, para um RIF justificar a instauração de uma investigação, ele deve, na análise contextual do presidente da investigação, conter esses dois elementos: uma hipótese criminosa minimamente delineada e um indício da sua prática.

As condições apontadas acima são essenciais para que a persecução estatal ocorra conforme os ditames legais e constitucionais. No processo penal, a forma é garantia e não há espaço para poderes gerais, pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal [12].

Conclusão
Feitas essas breves considerações, conclui-se que a adoção dos planos apontados acima (hipótese criminal delimitada e a necessidade de, ao menos, um indício da prática de crime) deve ser sempre perfilhada como forma a respeitar os direitos e garantias fundamentais do indivíduo.

A própria legislação prevê a possibilidade de se evitar constrangimentos desnecessários, como é o caso, por exemplo, da investigação preliminar ou da verificação de procedência de informações que serve justamente para averiguar a verossimilhança da notitia criminis e a viabilidade da investigação. (artigo 5º, §3, do CPP).

Essa ferramenta serve, exatamente, "para averiguar a verossimilhança da notitia criminis e a viabilidade da investigação, e servir de barreira contra inquéritos policiais absurdos [13], caracterizando-se como filtro contra investigações criminais temerárias, ao possibilitar a colheita de indícios mínimos capazes de justificar a instauração de inquérito policial" [14].

Portanto, torna-se imperioso que todos esses controles sejam cada vez mais utilizados e aperfeiçoados pelas autoridades, com o fim de se evitar a instauração de investigações desnecessárias e ilegais e que não ocorra o indesejado fishing expedition.

 

 

Referências bibliográficas
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo. Saraiva Educação, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª Edição. Salvador. JusPodvim, 2020. Pág. 197

SILVA, Viviani Ghizoni da. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e apreensão: um dilema oculto no processo penal. 2ª Edição. Emais. 2022. Pág..50.

GOMES FILHO, Antônio Magallhães. Código de Processo Penal Comentado. 3ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, Pág. 566.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 5a Ed. Floranópolis: EMais, 2019, p. 421.

HOFFMANN, Henrique. COSTA, Adriano Sousa. FONTES, Eduardo. Investigação sem indícios é abuso de autoridade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-07/academia-policia-investigacao-indicios-abusoautoridade#:~:text=A%20instaura%C3%A7%C3%A3o%20de%20VPI%20(Verifica%C3%A7%C3%A3o,i nqu%C3%A9rito%20policial%22%20%5B10%5D. Acesso em 04/04/2022.

SALLUM, Erick da Rocha Spiegel. Dos limites ao compartilhamento de dados obtidos em investigações criminais. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/08/24/limites-ao-compartilhamento-de-dados-obtidos-em-investigacoes-criminais/. Acesso em 04/04/2022

SANTOS, Cleopatas Isaías. Justa Causa para a investigação criminal: fundamentos e limites constitucionais da investigação policial no Brasil. 2022. Tese Doutorado em Direito – Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Brasília, 2022.


[1] Santos, Cleopatas Isaías. Justa Causa para a investigação criminal: fundamentos e limites constitucionais da investigação policial no Brasil. 2022. Tese Doutorado em Direito – Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Brasília, 2022

[2] LOPES JUNIOR, Aury Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020,

[3] Antônio Magalhães Gomes Filho explica que a expressão indício não é unívoca na terminologia das provas, podendo indicar, além do sentido apontado, também o de elemento de prova de menor valor persuasivo ou prova semiplena, expressão herdada do velho sistema das provas legais. In: Gomes Filho, Antônio Magallhães. Código de Processo Penal Comentado. 3ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, Pág. 566

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª Edição. Salvador. JusPodvim, 2020. Pág. 197

[7] Silva, Viviani Ghizoni da. FIshing expedition e encontro fortuito na busca e apreensão: um dilema oculto no processo penal.2ª Edição. Emais. 2022. Pág..50

[8] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. — São Paulo: Saraiva, 2017. p 125

[9] GOMES FILHO, Antônio Magallhães. Código de Processo Penal Comentado. 3ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, Pág. 566

[11] Voto ministro Gilmar Mendes, HC 201965/RJ. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/stf-anula-relatoris-coaf-flavio.pdf. Acesso em 04/04/2022.

[12] Rosa, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 5a Ed. Floranópolis: EMais, 2019, p. 421.

[14] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8ª Edição. Salvador. JusPodvim, 2020. Pág. 198

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