Opinião

Gestão do poder informacional no processo penal no RHC 147.707-STJ (parte 2)

Autores

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

  • Adriano Teixeira

    é professor da FGV-SP doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

15 de setembro de 2023, 10h21

Continuação da parte 1

Na parte 1, constatamos insuportável quadro de divergência jurisprudencial gerado por lacuna legislativa. Convém, agora, determinar orientações válidas de lege lata, que incorporem o racional subjacente às decisões tomadas pelo STF e pelo STJ. Parece-nos possível distinguir, no mínimo, entre três hipóteses de compartilhamento, organizadas a partir da existência prévia do que chamaremos de suspeitas interna e externa.

a) A primeira hipótese é a de ausência de qualquer suspeita concreta anterior e externa à atuação do órgão de inteligência; inexiste, por exemplo, inquérito policial. A requisição de informações ao Coaf, por iniciativa do MP ou da polícia, sobre determinado indivíduo, nesse contexto, constitui justamente o que nas decisões designou-se como fishing expedition[1].

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Alaor Leite

Aqui, ter-se-ia a mais extrema violação do princípio da separação informacional de poderes: uma "pesca de tarrafa". Nessa hipótese, eventual investigação formal iniciada a partir das informações obtidas já nasceriam sob a irremediável pecha de ilicitude e tudo que dela decorresse seria inválido sob o ângulo probatório: a suspeita criminal concreta simplesmente nasce a partir da provocação abstrata e genérica (informações sobre toda vida financeira de um cidadão, abarcando longos lapsos de tempo) do órgão de persecução ao órgão de inteligência.

No Estado de Direito, órgãos de persecução penal reagem a indícios de fatos criminosos que lhes chegam de diversas maneiras, mas não monitoram preventivamente pessoas perigosas ou bisbilhotam, em indesejável abelhudice oficial, setores específicos da vida econômica. Essa hipótese extrema é também descartada no voto dissidente do RHC 147.707 no STJ, em que se exige "procedimento policial instaurado" (p. 19); ou seja, suspeita externa prévia.

b) A segunda hipótese, mais difícil, envolve a prévia existência de suspeita externa formada pela Polícia e/ou MP. Nesse caso, embora já existente investigação criminal, verifica-se ausência de formação autônoma de suspeita por parte do Coaf (suspeita interna). Nesse cenário, a requisição de elaboração ex novo de RIF como modo de auxiliar a investigação criminal já instalada, embora a rigor não deva ser chamada de fishing expedition — um conceito que não deve ser alargado, a ponto de verter-se em anódino slogan —, importaria em violação da separação informacional de poderes: não seria "pesca de tarrafa", mas "pesca direcionada", instrumentalização de um órgão cuja função não é perseguir criminalmente pessoas concretas suspeitas de prática de determinados ilícitos, mas processar por si mesmo informações gerais (também de não suspeitos) e produzir relatórios; aqui, o órgão de inteligência atua sugestionado, após provocação externa, individualizando seu mister a partir da suspeita que lhe é lançada de fora pra dentro; ele não comunica apenas o que já sabe, mas produz conhecimento novo. Exemplo disso seria a solicitação posterior à requisição, pelo Coaf, de informações adicionais às entidades obrigadas[2].

Em um quadro como esse, ocorreria inaceitável fusão entre o órgão de persecução e de inteligência financeira: se quem tem atribuição operativa pode tudo saber com um clique, por simples requisição direta, sem autorização legal expressa e sem controle judicial, ter-se-á contornado a divisão informacional previamente estabelecida; as fronteiras entre inteligência e persecução penal estariam esbatidas.

c) Numa terceira hipótese, coexistem ambas as suspeitas, externa e interna, ou seja, tanto polícia e/ou MP quanto Coaf convenceram-se independentemente da presença de elementos mínimos que justificassem, respectivamente, uma investigação criminal e a produção de um RIF. Aqui, tanto a disseminação espontânea por parte do Coaf quanto a disseminação por intercâmbio não importariam em violação da separação informacional de poderes, tampouco constituiriam exemplos de fishing expedition: o Coaf já processou informações precisamente sobre o recorte fático que interessa à persecução, e se limita a repassar o que já fez[3].

Parece ter sido essa a intenção do STF quando no RE 1.055.941 reprovou requisições de RIFs de cidadãos "em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados". O Coaf não produz conhecimento novo, apenas comunica o que já havia processado internamente.

Há também um racional probatório nisso: se ambos os órgãos, de inteligência e de persecução, partilham da suspeita a partir de fontes diversas, ter-se-á suspeita mais robusta e maior qualidade informacional. Cumpre lembrar que a solicitação de informações a órgãos de inteligência financeira é prática recomendada pelo Gafi, que deixa claro, no entanto, que a requisição não deve ser compulsória, cabendo à UIF a decisão do repasse de informações.[4]

Sob o ângulo conceitual, apenas existe disseminação espontânea, uma em sentido estrito (sem requisição), outra em sentido amplo (com requisição). Tal será também o caso na hipótese de o RIF conter informações anteriormente repassadas pela autoridade persecutória, em alimentação à base de dados do Coaf [5]. Será sempre espontânea, pois decorrerá de avaliação autônoma do próprio órgão de inteligência e nunca a partir de heterodeterminação: o Coaf comunica o que já produziu (ou, no limite, o que já deveria ter produzido) para que as instâncias competentes avaliem se há suspeita criminal.

O órgão de inteligência poderá concluir pela existência de crimes, mas não poderá persegui-los; precisamente por isso — por nada poder, senão comunicar — é que o Coaf pode (quase) tudo saber, sem prévia autorização judicial. Tampouco se cuida de órgão de confirmação de suspeitas alheias, esbirro chancelador, mas de órgão que formula a própria suspeita, que pensa com a própria cabeça. Por apenas ter em vista essa terceira hipótese é que o voto dissidente no RHC 147.707 pôde, com correção, atestar que há "identidade ontológica" entre compartilhamento e requisição; restam, contudo, as duas hipóteses anteriores.

Seja como for, no Brasil, de lege lata, é lícita apenas a disseminação espontânea em sentido estrito. A posição majoritária do STJ retém razão. Tal conclusão — que pode ou não satisfazer os anseios político-criminais modernos — resulta de um exercício de dogmática constitucional. Qualquer intervenção em direito fundamental tem que, além de respeitar os parâmetros do princípio da proporcionalidade, ser prevista em lei (art. 5º II CF); uma limitação que, de resto, também determina o padrão civilizacional de determinado país aos olhos internacionais.

No caso, a norma que autoriza intervenção no direito fundamental à autodeterminação informacional (art. 5º, LXXIX, CF) é o art. 15, da L. 9.613/98: "O Coaf comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito".

Difícil escapar da nitidez do texto legal, cuja exegese, aliás, não ocupa papel de destaque em nenhum dos votos, vencedores ou vencidos: a intervenção prevista na norma é a disseminação que parte do Coaf ("suspeita interna") em direção às autoridades de persecução, dos dados que o órgão recebe — por meio dos reportes dos agentes e entes obrigados (artigo 9 c/c artigo 11, L. 9.613/98) — e que permitem concluir sponte propria pela suspeita de ilícito a ser escrutinado posteriormente pelo órgão destinatário ("para a instauração dos procedimentos cabíveis").

A inexistência de lei para a disseminação por intercâmbio entre nós contrasta, por exemplo, com leis de outros países, como a Alemanha, que contém expressa previsão nesse sentido.[6] Recomendações do Gafi, por nobres e sérias que sejam no plano político-diplomático, não detêm força de lei interna e não autorizam intervenções em direitos fundamentais.

Essa lacuna legislativa explica a decisão da 6ª Turma do STJ, que, em adesão ampliadora da posição da 3ª Seção, impõe jurisprudencialmente limites rígidos, ainda que pouco diferenciados, à circulação de dados sem intervenção judicial: à falta de lei, não se pode autorizar o compartilhamento requisitado; a conclusão é correta, mas poderia vir acompanhada de exegese do artigo 15 da Lei 9.613/98 e acrescida de argumentos de natureza constitucional, com vistas ao porvir.

A saudável dissidência instaurada tampouco nega a lacuna, e parece adotar outra linha argumentativa, consistente em reduzir o impacto da constatação de incerteza jurídica (argumento processual) e recusar a adequação ao precedente do HC 83.233 (argumento de teoria da decisão).

Sob o ângulo processual, parece subjazer a essa linha a ideia de que, no caso de comunicação de "operações suspeitas", haveria o que a doutrina designa como "intervenção bagatelar", para as quais a inexistência de lei pode ser relevada excepcionalmente[7]: estaria em causa diligência prévia relativamente indolor, diversa de uma representação fiscal para fins penais; se assim se quiser, uma espiadela pela fresta da janela, para saber se vale a pena adentrar pela porta; adentrar, não espiar, seria a real intervenção; exigir demais para tanto poderia, se bem compreendemos, obstaculizar o interesse persecutório em estágio incipiente.

O compartilhamento dos dados é, contudo, intervenção autônoma no direito à autodeterminação informacional, a que pode, ou não, seguir-se intervenção ainda mais grave em outros direitos fundamentais (como ao de locomoção); não se cuida da antecâmara da intervenção, pois a possibilidade de uma segunda intervenção mais grave não desnatura ou apaga a existência de uma primeira. A obtenção da informação só é inofensiva enquanto ela permanece dentro do órgão de inteligência; para a comunicação (de dentro para fora) há norma autorizativa (artigo 15 da Lei 9.613/98), o que confirma não se tratar de veleidade.

De outro lado, sob o ângulo da teoria da decisão, o distinguishing operado tampouco parece sustentar a conclusão dissidente. No tema em questão, é, sim, possível equiparar o Coaf à Receita: também ela não pode perseguir crimes, e processa as informações (sigilosas ou não) a que tem acesso para outras finalidades (sobretudo a de arrecadar tributos), que não a de aplicar penas criminais; as conclusões, a suspeita formulada em forma de decisão em processo administrativo pode ter consequências repressivas fiscais, mas serão repassadas a quem, esses sim, podem formular suspeita de natureza criminal (artigo 198 § 3º I CTN), a saber: os órgãos de persecução penal[8].

A UIF alemã, aliás, é parte integrante da Receita. A diferença pode estar na qualidade informacional ou na espécie de dado — o que aponta o voto dissidente, que fala em dessemelhança quanto ao "conteúdo" (p. 19) —, mas não na natureza do compartilhamento, que se dá entre órgãos com diferentes funções e limites; ter-se-ia, da mesma forma, um desvio de finalidade.

Tem-se, portanto, o seguinte: o STF não exclui, embora pareça desaconselhar, algumas formas de compartilhamento em dupla via, desde que adotadas cautelas procedimentais, e que não se trate de fishing expedition e nem se contorne a reserva de jurisdição em casos de sigilo; a 3ª Seção do STJ, confirmada agora pela decisão da 6ª Turma, e o artigo 15 da Lei 9.613/98 são mais restritivos e admitem apenas o compartilhamento em mão única. No STJ, há, contudo, divergência respeitável que não pode ser ignorada. Tal quadro generalista não satisfaz nem aos interesses persecutórios, nem aos direitos individuais.

Em face disso, sugerimos uma tipologia de compartilhamento de dados entre órgãos do Estado com atribuições diversas baseada na existência prévia de suspeita, que, de lege lata, conduz à conclusão de que as hipóteses de requisição de Rifs por parte dos órgãos de persecução são ilegítimas quando a) inexiste suspeita externa prévia formalizada em inquérito (fishing expedition) e quando b) há a suspeita externa prévia, mas inexiste a suspeita interna, que é formulada ex novo após a requisição e com base nela; virtual norma legal autorizativa nesses sentidos deveria, já por isso, ser submetida a controle de constitucionalidade.

A hipótese c) de compartilhamento a partir de requisição quando há simultaneamente suspeitas interna e externa, formuladas a partir do exercício das próprias atribuições e sem heterodeterminação, não é ilegítima (quiçá seja até recomendável), mas é atualmente ilegal; nessa matéria o legislador poderia, em princípio, produzir norma autorizativa.

Conclusão
A questão segue viva e incerta, mesmo após a novel decisão de que aqui cuidamos. As soluções são demasiado generalistas e sugerem a convocação do legislador. É normal que assim seja. Gerir a distribuição do poder informacional do Estado, de modo a equilibrar interesses persecutórios e direitos individuais, é, de fato, dos maiores desafios que o processo penal moderno tem diante de si. Seja como for, não há espaço para convenientes unilateralismos ("não pode compartilhar nunca" ou "pode sempre, mesmo sem lei").

Convém auscultar as opiniões diversas e postular soluções equilibradas. A impositiva criação de barreiras legais e jurisprudenciais à livre e irrestrita circulação de dados pessoais (sigilosos ou não) entre diferentes órgãos do Estado não constitui trivialidade procedimental contra indolor compilação oficial, levada a cabo em nome da legítima e benfazeja repressão à lavagem de dinheiro, como em causa estivesse pecadilho venial que os verdadeiros inocentes não carecem temer. Antes e sobretudo, tais barreiras erguem-se como verdadeiros estandartes contra a reedição soft de Estados oniscientes, que, por não resistirem à tentação, num tropeço fatal, tornam-se onipotentes.


[1] Cf. sobre o tema SILVA, Viviani Ghizoni da/MELO E SILVA, Philipe Benino/MORAIS DA ROSA, Alexandre. Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e na Apreensão, 2ª ed., Florianópolis, 2019.

[2] Cf. BOTTINI, Pierpaolo. Os limites da atuação do Coaf, Conjur (https://www.conjur.com.br/2021-mar-29/direito-defesa-limites-atuacao-coaf).

[3] Cf. BOTTINI, Pierpaolo. Os limites da atuação do Coaf, Conjur (https://www.conjur.com.br/2021-mar-29/direito-defesa-limites-atuacao-coaf).

[4] Cf. Recomendação 31, GAFI e Nota representativa da Recomendação 29.

[5] Hipótese de disseminação espontânea corretamente recordada por ESTELLITA, Revista Direito Público 2022…cit., p. 628.

[6] Geldwäschegesetz – GwG, § 32 III, 1 e 2 c/c § 32 IV.

[7] Cf. ROXIN, Claus/SCHÜNEMANN, Bernd. Strafverfahrensrecht, 29a ed., Munique, 2017, § 9 Nm. 19, p. 60.

[8] Cf. ESTELLITA, Heloísa. O acesso do MP a dados protegidos pelo sigilo e a decisão do STJ, (https://www.conjur.com.br/2022-fev-17/estellita-acesso-mp-dados-sigilo-fiscal-stj).

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