Opinião

Gestão do poder informacional no processo penal no RHC 147.707-STJ (parte 1)

Autores

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

  • Adriano Teixeira

    é professor da FGV-SP doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

14 de setembro de 2023, 7h03

O processo penal moderno traduz-se em delicada gestão do poder informacional do Estado. É tarefa do legislador, mas também da jurisprudência e da doutrina, determinar com precisão como se dá o ingresso de informações obtidas por outros órgãos no seio de uma investigação criminal.

Em agosto deste ano, a 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) proferiu mais uma importante decisão a respeito dos limites do intercâmbio de informações entre órgão de inteligência financeira, o Coaf, e órgão de persecução penal, a polícia.

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Alaor Leite

O tema, como se sabe, fora objeto de relevante decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada em sede de repercussão geral no ano de 2019 (RE 1.055.941; Tema 990). A despeito das teses formuladas pelo STF, persiste controvérsia sobre as rationes decidendi do que lá foi decidido[1]; o que, sim, já se sabia antes da aguardada decisão do Supremo é que havia, a esse respeito, lacuna legislativa[2].

De lá para cá, o inalterado artigo 15 da L. 9.613/98, que impõe ao Coaf dever de estabelecer comunicação com as autoridades competentes quando concluir pela existência de crimes ou indícios de sua prática, segue como insular norma legal autorizativa vigente para o compartilhamento de dados de inteligência financeira para fins de persecução penal. Hiberna o Projeto da chamada "LGPD Penal".

No recentíssimo RHC 147.707, a maioria, liderada pelo voto do Relator ministro Saldanha Palheiro, concluiu ser ilícito o envio de dados financeiros pelo Coaf à polícia quando a requisição provém da autoridade policial. Reconheceu-se, como consequência processual, a ilicitude de dois relatórios de inteligência financeira (RIFs) obtidos pela polícia. Com isso, a 6ª Turma do STJ estendeu ao intercâmbio entre Coaf e polícia o entendimento anteriormente fixado pela 3ª Seção no RHC 83.233, de relatoria do ministro Sebastião Reis, que cuidava da requisição de informações por parte do Ministério Público diretamente à Receita Federal[3], tema que não teria sido abarcado pela decisão do STF[4].

A dissidência, representada pelo interessante voto do ministro Rogerio Schietti, entre outros argumentos, considerou ser inadequado equiparar a hipótese de compartilhamento por parte do Coaf com aquele que ocorre a partir da Receita, de que cuidavam tanto o STF quanto a 3ª Seção do STJ, e procedeu a um distinguishing. De certa forma, cuidar-se-ia apenas de meras “operações suspeitas” pendentes de aprofundamento[5], não de transferência de dados sigilosos ou de representação fiscal para fins penais antecedida por processo administrativo que constitui o crédito tributário[6]. Tais operações suspeitas podem convidar a outras medidas investigativas, que estarão, estas sim, sujeitas à reserva de jurisdição (como a busca e apreensão).

Como se vê, não se disse, ainda, a palavra final sobre o tema do compartilhamento de dados para fins repressivos — o silêncio do legislador, os tópicos deixados em aberto pelo STF e as renovadas decisões do STJ, sempre por maioria, dão nota dessa malsã provisoriedade. Enquanto isso, inúmeras investigações criminais, no seio das quais ocorreu tal intercâmbio de informações, prosseguem incertas quanto ao seu destino[7]. Neste estudo dividido em duas partes, pretendemos oferecer uma modesta contribuição para a discussão em curso.

Antes de apresentarmos nossa proposta de uma tipologia do compartilhamento de dados (Parte 2) convém, em afã de organização do conteúdo das decisões judiciais, realizar uma breve contextualização do estado de lacuna legislativa e divergência jurisprudencial instaurado (Parte 1).

Lacuna legislativa que gera divergência jurisprudencial
A comunicação entre MP e polícia, de um lado, e o Coaf, de outro, é tema delicado, pois vive sob a tensão entre os legítimos interesses persecutórios e os direitos fundamentais dos cidadãos [8].

 Mais especificamente, a questão é sensível porque envolve a troca de informações entre um órgão de inteligência [9], que, em sua premonitória missão de antecipação preventiva de perigos, tem amplo acesso a dados (sigilosos ou não [10]) do cidadão (sem autorização judicial prévia), e autoridades com prerrogativas operativas e repressivas voltadas ao equacionamento do passado, que, como deve ser em um Estado de Direito, têm acesso apenas limitado às informações privadas dos indivíduos, em muitos casos dependendo de prévia autorização judicial.

Esse intercâmbio de dados protagonizado por autoridades estatais de distintas naturezas[11], voltadas para diferentes finalidades, dotadas de distintos pressupostos e limites de atuação, entra em potencial fricção com o chamado princípio da "separação informacional de poderes"[12], desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão e já recepcionado na dogmática constitucional e processual-penal brasileira[13].

Esse princípio não tem como escopo obstaculizar de maneira absoluta o fluxo informacional entre os distintos órgãos estatais, mas sim fornecer balizas para essa prática, tão salutar quanto perigosa. Em termos simples: quem tudo sabe, não pode tudo; e quem pode, não deve saber de tudo [14].

Sensível a esse problema, o STF, no mencionado RE 1.055.941, declarou a constitucionalidade do compartilhamento de dados entre Receita e MP, não sem estabelecer alguns parâmetros procedimentais mínimos a serem seguidos pelos órgãos estatais[15]. Além da higidez e da necessidade de registro das comunicações entre os órgãos, o STF estabeleceu a completa vedação da transferência da íntegra de documentos acobertados pelos sigilos fiscal e bancário sem prévia autorização judicial e dos chamados "relatórios por encomenda", que configuram verdadeira fishing expedition: "É extremamente importante enfatizar, ainda, a absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados".[16]

Pôs-se aqui um limite último infranqueável ao compartilhamento de dados, também dos não-sigilosos.

Não há na decisão, porém, posicionamento claro a respeito de outra hipótese fática importante e sensivelmente diversa, qual seja: já instaurado inquérito, pode sempre a polícia ou o MP requisitar diretamente informações ao Coaf? A questão, como se vê, parece dizer não apenas com a origem exógena da requisição, mas também com a existência prévia uma suspeita formalizada externamente ao Coaf. Não por outro motivo, essa hipótese foi escrutinada no HC 201.965, em que a 2ª Turma do STF, guiada pelo voto do ministro Gilmar Mendes, admitiu a possibilidade da "disseminação em face de pedido da autoridade competente", consistente no intercâmbio de RIF produzido anterior e espontaneamente pelo Coaf, sem provocação do órgão de persecução.

Essa hipótese se distingue, segundo o ministro Gilmar Mendes, da elaboração de RIF "por encomenda" do MP ou da autoridade policial, ou seja, do pedido de elaboração, após a requisição, de um novo RIF.[17]

A maioria da 6ª Turma do STJ, em seu julgamento mais recente, parece não admitir nem mesmo a primeira possibilidade admitida pela 2ª Turma do STF — a do "RIF a pedido ou por intercâmbio", um designativo que consta das normas internas ao Coaf, mas não de lei vigente. Para a 3ª Seção do STJ, como confirma o recente RHC 147.707, apenas será lícita a disseminação espontânea.

Tem-se inegável quadro de divergência jurisprudencial — entre STF e STJ, mas também internamente ao STJ —, potencializado pela lacuna legislativa. Tal desencontro não é meramente semântico e, por produzir efeitos práticos evidentes, demanda alguma elaboração doutrinária, até que o legislador atue ou que nova decisão aclaradora sobrevenha. Vicejam conceitos indefinidos, como os de fishing expedition ou de "disseminação por intercâmbio"; sobram perguntas, rareiam respostas.

De toda forma, a constatada situação de insegurança jurisprudencial, decorrente de conspícua lacuna legislativa, não deverá significar irrestrita anulação de tudo quanto até aqui foi realizado pelos órgãos de persecução em seu mister repressivo à lavagem de dinheiro ou indesejável paralisação persecutória. De outro lado, a dúvida existente tampouco deve significar uma autorização geral implícita, antecipada ou clarividente, para a livre circulação de dados; constitui irrevogável avanço do publicismo liberal o de distinguir claramente entre norma de competência e norma de autorização[18].

Talvez convenha aqui recordar da categoria do "bônus de transição", manejada pela jurisprudência alemã: enquanto não há lei, a jurisprudência lança alguns parâmetros provisórios, de modo a não interromper importantes tarefas persecutórias[19]. Nesse tema, convém igualmente compreender o incômodo subjacente aos votos vencidos existentes, que, vez por outra, por sua própria condição de salutar insurgência, verbalizam preocupações legítimas e são dotados de espécie de presciência que conforma o porvir. É preciso pensar em critérios manejáveis, em espécie de reconstrução racional dos argumentos até aqui lançados ou intuídos.

Uma solução equilibrada, que leve em conta a tensão instalada entre interesses persecutórios e direitos individuais, deverá, portanto, partir de uma espécie de tipologia das modalidades de compartilhamento de dados, que desenvolveremos em maior detalhe na parte 2 deste estudo.

Continua na parte 2

 


[1] Cf. BORGES, Ademar. O relatório de inteligência financeira como meio de obtenção de prova no processo penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais 176, 2021, p. 69, 76; ESTELLITA, Heloisa. O RE 1.055.941: um Pretexto para Explorar Alguns limites à Transmissão, Distribuição, comunicação, Transferência e Difusão de Dados Pessoais pelo COAF”, Revista Direito Público 18, n. 100, 2022, p. 609 ss.

[2] Como se advertiu antes da decisão em: GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Discussão do Supremo sobre caso COAF joga luz sobre lacuna legislativa, Folha de São Paulo, 19/11/2019 (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/discussao-do-supremo-sobre-caso-coaf-joga-luz-em-lacuna-legislativa.shtml). Depois da decisão, a convocação do legislador mostrou-se ainda mais urgente, como recorda BOTTINI, Pierpaolo. Os limites da atuação do Coaf, Conjur (https://www.conjur.com.br/2021-mar-29/direito-defesa-limites-atuacao-coaf): Mais uma vez, a palavra está com o legislador”.

[3] Analisado nesta revista por ESTELLITA, Heloísa. O acesso do MP a dados protegidos pelo sigilo e a decisão do STJ, Conjur (https://www.conjur.com.br/2022-fev-17/estellita-acesso-mp-dados-sigilo-fiscal-stj).

[4]  RHC 83.233, Rel. Sebastião Reis, 3ª Seção, julg. 9/2/22.

[5] Em que se lê que “a análise feita pelo referido órgão apenas revela a situação de atipicidade na movimentação financeira, sem, contudo, delinear a natureza dessa atipicidade, que dependerá sempre de esforço investigatório que a qualificará ou não como ilícito penal, a afastar ou não a situação de desconformidade inicialmente apontada”.

[6]Contudo, com a devida vênia, também não observo a similaridade, apontada pelo Ministro Antonio Saldanha, da hipótese dos autos com o referido recurso, seja porque a requisição foi dirigida a órgão de fiscalização distinto e com funções absolutamente diferenciadas da Receita Federal, seja porque o próprio conteúdo do relatório produzido pelo Coaf não revela, com os mesmos detalhes e profundidade, os dados contidos em uma declaração de imposto de renda”.

[7] A esse respeito, ver matéria publicada na Folha de São Paulo em 5/9/23, na qual são ouvidos, entre outros, dois dos responsáveis pela impetração que resultou na decisão aqui comentada, Vinicius Vasconcellos e Gustavo Mascarenhas: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/decisao-do-stj-pode-anular-operacoes-e-atingir-apuracao-de-financiadores-do-81.shtml?utm_campaign=jota_info__direito_na_midia_-_06092023&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

[8] GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Esfera nuclear da vida privada e medidas ocultas de investigação criminal, in: Machete/Almeida Ribeiro/M. Canotilho (coords.), Estudos em homenagem ao Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade, Lisboa, vol. 2, 2023, p. 147 e ss.

[9] Cf. a respeito da questão sobre se UIFs são de fato comparáveis a serviços de inteligência, TEIXEIRA, Adriano. A relevância processual dos relatórios de inteligência financeira, In: Paulo de Sousa Mendes, Teresa Quintela de Brito, Rui Soares Pereira, José Neves da Costa, Miguel da Câmara Machado (org.). Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Responsabilidade Empresarial, Lisboa, 2023, p. 129, 134 ss

[10] Ver ESTELLITA, Revista Direito Público 2022…cit., p. 623 ss.

[11] Cf. ARAS, Vladimir. A MP 1.158/23 e o tratamento de dados pelo COAF (Parte I), Conjur (https://www.conjur.com.br/2023-jan-22/vladimir-aras-mp-1158-tratamento-dados-pessoais-coaf).

[13] Cf. GLEIZER, Orlandino/MONTENEGRO, Lucas/ VIANA, Eduardo. O Direito de proteção de dados no processo penal e na segurança pública, São Paulo, 2021; BORGES, Revista Brasileira de Ciências Criminais 2021…cit., p. 69, 76; ESTELLITA, Revista Direito Público 2022…cit., p. 609 ss.

[14] Assim, GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Discussão do Supremo sobre caso COAF joga luz sobre lacuna legislativa, Folha de São Paulo, 19/11/2019 (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/discussao-do-supremo-sobre-caso-coaf-joga-luz-em-lacuna-legislativa.shtml).

[15] STF RE 1055941, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, 04/12/2019, Voto do Min. Gilmar Mendes (Vogal), p. 42.

[16] STF RE 1055941, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, 04/12/2019, Voto do Relator, p. 44..

[17] STF HC 201.965, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, 30.11.2021.

[18] POSCHER, Ralf/Kingreen, Thorsten. Polizei- und Ordnungsrecht, 11ª ed., Munique, 2020, p. 90; sobre isso, com ulteriores referências, GRECO, O inviolável e o intocável…cit., p. 37.

[19] Com referências, GRECO, O inviolável e o intocável…cit., p. 47.

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