Opinião

Corte de Contas: soluções consensuais em detrimento de soluções unilaterais

Autor

  • Igor Pereira Oliveira

    é auditor do TCU especialista sênior responsável por estudos e diagnósticos sobre políticas e regulação da infraestrutura no âmbito de cooperação internacional (GTInfra Olacefs) especialista em projetos complexos relacionados à gestão da qualidade ao aprimoramento da gestão processual e à identificação de riscos e controles internos ex-diretor de mobilidade urbana ex-especialista em regulação da Aneel e engenheiro com mestrado em engenharia pela USP.

29 de novembro de 2023, 15h25

O Tribunal de Contas da União já executa ações de interlocução com gestores e particulares com vistas a exercer o seu papel pedagógico e orientador, de forma a auxiliá-los no estabelecimento de alternativas para a solução de problemas de interesse da administração pública. É o que expôs a Instrução Normativa TCU 91/2022, que instituiu procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da administração pública federal.

Por exemplo, os processos de desestatizações [1] incluem reuniões com os gestores, debates técnicos, interações para a viabilização de mudanças fundamentais antes da deliberação do plenário do tribunal, desde que haja consenso entre os interessados.

Em sua jurisprudência, o TCU dispõe, regularmente, que não se inclui entre as suas competências constitucionais a solução de controvérsias instaladas no âmbito de contratos firmados entre seus jurisdicionados e terceiros, salvo se, de forma reflexa, estes litígios atingirem o patrimônio público ou causarem prejuízo ao erário.

Em caso recente [2], o tribunal destacou que não deve atuar como instância revisora de decisões administrativas emitidas em procedimentos licitatórios conduzidos por órgãos e entidades que lhe são jurisdicionados, cabendo à própria administração contratante reavaliar a razoabilidade e a fundamentação da exigência editalícia.

Além disso, ponderou-se [3] que não devem ser afastadas soluções consensuais, mas que estas devem ser feitas por processos específicos em que se demonstre que o nível de indeterminação do conflito pressupõe como solução mais vantajosa um consenso. Avaliaram-se, no caso concreto, possíveis irregularidades na formalização do 2º termo aditivo ao contrato firmado entre o ministério da saúde e a empresa VTC.

 A controvérsia girou em torno do termo “item” constante do termo de referência. Considerando os gastos no período de novembro de 2018 a janeiro de 2021, o impacto seria de R$ 58 milhões se a apuração considerasse o insumo unitário manipulado e R$ 1 milhão se fosse adotada a métrica denominada Stock Keeping Unit (SKU) — medição por produto catalogado a cada pedido expedido.

Embora a métrica SKU tivesse sido mencionada no termo de referência sempre que houvesse menção ao termo “item” (por exemplo, “Quantidade de itens (SKUs): em torno de 200”), os gestores aceitaram a proposta da contratada com o singelo argumento de que a proposta configuraria um “meio termo”: utilização da métrica de “volume de transporte”, que acarretaria para o mesmo período um impacto de R$ 19 milhões, em vez de R$ 1 milhão da métrica SKU.

Segundo o TCU, os gestores erraram em aceitar a proposta da empresa para “salvar” o contrato, sem a apresentação de justificativas técnicas. Além do aditivo não se enquadrar nas hipóteses previstas no artigo 65 da Lei 8.666/1993, consistiu, em essência, na alteração de metodologia de medição. Na prática, redundou no simples aumento do preço de determinado serviço licitado e contratado, em prejuízo ao artigo 41 da citada lei: “A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”.

A aplicação dos mecanismos de consensualismo administrativo também não deve resultar em transação sobre direitos indisponíveis ou em violações de princípios e obrigações de índole constitucional, como a obrigação de licitar.

Esse é o entendimento explícito no Acórdão 1528/2019-Plenário [4], que cuidou de possíveis irregularidades relacionadas ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) destinado à construção das obras da Linha de Transmissão Rio Branco-Feijó-Cruzeiro do Sul e subestações associadas, no estado do Acre.

O TAC [5] se trata de instrumento característico da administração pública consensual, excepcional, e permite a definição de ajustes para impedir ou cessar a continuidade de uma situação irregular na prestação do serviço.

Embora tenha havido a rescisão contratual, a retomada da obra do sistema de transmissão por meio da celebração do TAC representaria nova contratação sem a devida realização de licitação, em afronta a dispositivos constitucionais e à lei das estatais, que exige prévia licitação para a celebração de contratos com terceiros destinados à prestação de serviços às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

O instrumento consensual também não pode ser utilizado indiscriminadamente, a ponto de desvirtuar o contrato de concessão, sob pena de frustrar o certame licitatório, tampouco deve estimular a impunidade pela inadimplência contumaz do concessionário infrator:

“[..] a escolha pelo acordo substitutivo não pode ser realizada à custa de mera assunção ou diminuição das obrigações ordinárias já estabelecidas em contrato de concessão, mas deve estar fundada no compromisso de o concessionário assumir obrigações extraordinárias, seja, por exemplo, sob a forma de investimentos suplementares na melhoria e atualização tecnológica do serviço, seja na diminuição das tarifas. Assim, tais compensações haverão de contribuir para melhoria dos serviços regulados, além de desestimular o concessionário a incorrer em futuras transgressões da avença e da legislação regulatória.” [6]

No caso em tela, a norma da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não previa medidas mais constritivas que assegurassem o pleno cumprimento dos acordos substitutivos, em prol da melhoria da prestação dos serviços públicos concedidos.

Em relação a marcos legais, as inovações em 2018 na Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro (Lindb) incluíram explicitamente a possibilidade de celebração de compromissos pela autoridade administrativa com os interessados, para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público (artigo 26). A mudança resultou do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 345/2015, do então senador Antônio Anastasia e atualmente ministro do TCU.

Consagrou-se a dinâmica de atuação consensual ao estabelecer permissivo genérico para que toda a administração pública, independentemente de lei ou regulamento específico, celebre compromissos com negociação mais pública e paritária, visando ao efetivo atendimento de interesses gerais, com maior efetividade e segurança jurídica [7].

No âmbito do TCU, em 2020 o ministro Bruno Dantas sinalizou a possibilidade de criação de um centro de mediação para a solução de controvérsias envolvendo a administração pública e o setor privado, sobretudo em questões envolvendo projetos de infraestrutura.

No final de 2022, criou-se a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso). Observe-se trecho de sua manifestação institucional:

“21. Para aprimorar esse papel, é preciso estabelecer um processo de trabalho formal que defina procedimentos voltados à busca de soluções consensuais. Com isso, será possível acelerar e dar maior efetividade à ação do Tribunal, que poderá atuar de forma colaborativa na busca da superação de problemas e de resultados melhores para a administração pública.
22. Trata-se de colocar o Tribunal em linha com o paradigma vigente no Poder Judiciário, de não mais se limitar a decisões unilaterais e impositivas, mas acentuar a multilateralidade e a abertura de espaços de conciliação. Mostra-se oportuno e necessário assegurar a especialidade do direito consensual também em processos do TCU.” [8]

Antes disso (em dezembro de 2016), o ministro comunicava ao Plenário a necessidade de o TCU aprender a lidar com o crescente consensualismo que vem modificando a administração pública contemporânea, atribuindo-lhe perspectivas mais negociais e mais mediadoras [9].

A inovação, registre-se, é compatível com ponderações acadêmicas em 2003, com vistas à criação de soluções privadas de interesse público:

“Pela consensualidade, o Poder Público vai além de estimular a prática de condutas privadas de interesse público, passando a estimular a criação de soluções privadas de interesse público, concorrendo para enriquecer seus modos e formas de atendimento. […] um Estado de juridicidade plena – de legalidade, de legitimidade e de licitude – um Estado de Justiça, não pode prescindir dessa interação horizontal e sadia com a sociedade, o que deverá refletir-se em sua atuação, de modo que ações suasórias sempre precedam ações dissuasórias e estas, as sancionatórias: a face imperativa do Poder só deve aparecer quando absolutamente necessário e no que for absolutamente indispensável. A coerção, ensina-nos Pascal, é que domina o mundo, mas é a opinião que a emprega.” [10]

A SecexConsenso atua independentemente de clientela, possui competências relacionadas a soluções consensuais, acompanha os processos relacionados à fase de negociação dos acordos de leniência firmados pela Controladoria Geral da União (CGU), coordena a articulação com tribunais de contas brasileiros e com as respectivas entidades representativas para a definição de estratégias de trabalhos cooperativos e coordena a execução da estratégia de participação cidadã.

Além disso, deve agir preventivamente à autuação de processos sancionadores, em plena sintonia com o §1º do artigo 13 do Decreto nº 9.830/2019 — a atuação de órgãos de controle privilegiará ações de prevenção antes de processos sancionadores —, sem espaço para atuação depois do julgamento pela irregularidade das contas [11].

Portanto, as iniciativas históricas do tribunal na busca pela solução consensual de controvérsias relevantes (e pela definição explícita em sua jurisprudência dos limites de atuação da administração pública) reforçam sua importância como Instituição Superior de Controle no Brasil. Nesse sentido, qualquer olhar crítico e construtivo às iniciativas recentes do controle externo federal deve considerar o seu mérito na busca incansável em prevenir conflitos e aumentar o diálogo entre controle e jurisdicionados.

*eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU


[1] Até julho de 2023 a pesquisa sobre a tipologia “desestatização” resultava em mais de 800 Acórdãos.

[2] Supostas irregularidades em licitação, na modalidade pregão, para a prestação de Serviço de Configuração, Integração e Suporte Técnico Avançado de Rede de Centrais Telefônicas Híbridas IP/TDM. Acórdão 722/2023-1ª Câmara.

[3] Possíveis irregularidades na formalização do segundo termo aditivo de contrato para a prestação de serviços contínuos de transporte e armazenagem dos Insumos Críticos de Saúde (ICS). Acórdão 651/2023-Plenário.

[4] Possíveis irregularidades no TAC destinado à construção das obras da Linha de Transmissão Rio Branco – Feijó – Cruzeiro do Sul. Acórdão 1528/2019-Plenário.

[5] Previsto no § 6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985).

[6] Possíveis irregularidades verificadas na celebração de TAC´s entre a ANTT e concessionárias de serviço público de transporte rodoviário e ferroviário. Acórdão 2533/2017-Plenário.

[7] Guerra, Sérgio; Palma, Juliana Bonacorsi de. Art. 26 da LINDB Novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 135-169, nov. 2018.

[8] Ata nº 47, da Sessão extraordinária do Plenário, de 13 de dezembro de 2022

[9] Ata 49/2016-Plenário

[10] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, v. 231.: Rio de Janeiro, 2003.

[11] Apuração de irregularidades em contratos de prestação de serviços de construção e montagem industrial em plataformas da Unidade de Exploração e Produção da Bacia de Campos (UNBC). Acórdão 311/2023-Plenário

Autores

  • é auditor do TCU, especialista sênior responsável por estudos e diagnósticos sobre políticas e regulação da infraestrutura no âmbito de cooperação internacional (GTInfra Olacefs), especialista em projetos complexos relacionados à gestão da qualidade, ao aprimoramento da gestão processual e à identificação de riscos e controles internos, ex-diretor de mobilidade urbana, ex-especialista em regulação da Aneel e engenheiro com mestrado em engenharia pela USP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!