Opinião

Por que é baixa a adesão ao Programa Empresa Cidadã?

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28 de novembro de 2023, 18h18

Não é de hoje que a sociedade reconhece a importância da defesa dos direitos básicos da criança e do adolescente. O dever da família, da sociedade e do Estado em relação a esse tema é tratado de forma ampla no artigo 227 da Constituição, com destaque para o direito à convivência familiar e comunitária. Esses direitos foram fortalecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), reconhecido como marco legal e regulatório dos direitos humanos nessa área.

Para zelar pelos primeiros dias de vida do nascituro e pela convivência familiar, a Constituição assegura o direito à licença-maternidade com duração de 120 dias (inciso XVIII do artigo 7º da CF) e de licença-paternidade de cinco dias (inciso XIX do artigo 7 da CF/88 e parágrafo 1º do artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT).

Instituído em 2008, o Programa Empresa Cidadã tem como objetivo estender o período de licença-maternidade [1] por meio da adesão voluntária de empresas optantes pela tributação no regime do lucro real. Em troca, as empresas recebem incentivos fiscais (Lei 11.770/08, regulamentada pelo Decreto 10.854/21) [2].

Com o Programa Empresa Cidadã, permitiu-se a prorrogação das licenças aos empregados das empresas participantes para seis meses (180 dias), no caso da licença-maternidade, e 20 dias, em relação à licença-paternidade.

Ambas as licenças são aplicáveis aos casos de adoção e guarda judicial, com prazos específicos. Essa medida, sem sombra de dúvidas, só contribui para o desenvolvimento da criança e do adolescente e o fortalecimento do vínculo afetivo. Durante a licença, o beneficiário fica proibido de exercer atividade remunerada (artigo 4º).

A intenção do legislador com a instituição desse programa foi clara e está alinhada com a diretriz constitucional e legal de garantir os direitos básicos da criança e do adolescente. Além de proteger o período de aleitamento materno, a iniciativa reconhece os impactos positivos da criação de vínculo afetivo adequado com os pais e demais membros do grupo familiar para a formação do indivíduo.

Além disso, a extensão da licença-maternidade atende a diretrizes da Organização Mundial da Saúde, que recomenda o aleitamento materno exclusivo durante os seis primeiros meses de vida [3]. Essa medida ajuda a reduzir os gastos públicos com saúde e os índices de mortalidade infantil.

O período em que a mãe se ausenta do trabalho profissional para se dedicar aos cuidados da criança está assegurado financeiramente pelo salário-maternidade. Em geral, esse benefício é pago diretamente pela Previdência Social. Para a segurada empregada, porém, o pagamento é realizado pelo empregador, que posteriormente compensa esses valores ao recolher as contribuições sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos ou creditados.

Já no âmbito do Programa Empresa Cidadã, no período assegurado de prorrogação da licença, o empregado recebe do empregador o valor do salário integral, mesmo sem desempenhar as atividades objeto do contrato de trabalho. Por outro lado, o empregador obtém um benefício no Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ).

Em cada período de apuração, as empresas são autorizadas a deduzir do IRPJ devido a remuneração total do empregado paga no período de prorrogação da licença. É proibida a dedução como despesa operacional.

Esse benefício tributário incentiva as empresas a aderir ao programa e, ao mesmo tempo, a prorrogação do período de licença, traz benefícios sociais e para a criança.

Entretanto, passados 15 anos da implementação do Programa Empresa Cidadã, das 150 mil empresas optantes pelo lucro real, apenas 26 mil formalizaram a adesão a ele, segundo informação do site da Receita Federal. Isso representa uma taxa de adesão inferior a 20%.

Considerados os benefícios, por que houve um número tão baixo de adesões?

Além das questões operacionais decorrentes da ausência do profissional no local de trabalho, uma possível razão para esse cenário é a controvérsia ainda existente sobre a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre a extensão da licença-maternidade estabelecida pelo Programa Empresa Cidadã.

A contribuição a cargo da empresa destinada à Seguridade Social, instituída pela Lei 8.212/91, incide sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados empregados, empresários, trabalhadores avulsos e autônomos que lhe prestem serviços, sob uma alíquota de 20%.[4]

STF e Receita divergem sobre incidência de contribuição previdenciária sobre salário-maternidade
O pleno do STF, em 2020, por meio do Recurso Extraordinário 576.967 (Tema 72), declarou a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, prevista no artigo 28, §2º, e da parte final da alínea a do §9º da Lei 8.212/91, fixando a tese: “É inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade” [5].

Para muitos, a decisão do STF representou um avanço social, já que a incidência de contribuição previdenciária patronal acabava por tornar mais onerosa a contratação da mulher em comparação ao homem, violando o princípio da isonomia.

Além disso, essa decisão reconhece que o salário-maternidade não constitui contraprestação pelo trabalho ou retribuição devido a contrato de trabalho, elementos que reforçam a ausência de natureza salarial.

Ainda assim, por meio da Solução de Consulta Cosit 27/2023 (SC Cosit 27/23), publicada em 9 de fevereiro de 2023, a Receita Federal do Brasil (RFB) manifestou-se pela incidência de contribuição previdenciária sobre a remuneração paga durante a extensão da licença-maternidade estabelecida pelo Programa Empresa Cidadã, com a justificativa de que essa prorrogação:

— não tem natureza de benefício previdenciário, por não ser custeada pela Previdência Social;
— tem contornos legais próprios, distintos do salário-maternidade e não tem relação com a decisão proferida pelo STF no Recurso Extraordinário 576.967, submetido à sistemática de repercussão geral.

Além de se dissociar dos fundamentos da decisão do STF no Tema 72, a manifestação lavrada pela Cosit não parece ter levado em conta as questões sociais e principiológicas do Programa Empresa Cidadã.

A ausência de caráter previdenciário do benefício, por si só, não dá legitimidade à tributação dos valores em questão. Foram outros os fundamentos que nortearam a decisão do STF. Exatamente por isso, alguns entendem que a abordagem do tema teve enfoque exclusivo na arrecadação.

O entendimento da RFB em relação ao pagamento da extensão da licença-maternidade acaba por desestimular a adesão de empresas ao Programa Empresa Cidadã.

Ficam as questões: como essa pretensão de arrecadação se relaciona com o Programa Empresa Cidadã? A arrecadação de tributos está se sobrepondo à tutela pretendida aos direitos básicos da criança e do adolescente? A preocupação é com o benefício previdenciário? Há um compromisso social na adesão ao Programa Empresa Cidadã? Há base legal sobre a exigência pretendida em relação a esse período?

Para PGFN, ônus financeiro da prorrogação da licença-maternidade não é do empregador
Manifestando sua divergência sobre o tema, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) editou o Parecer SEI 1.782/23/ME, que, para reduzir a litigiosidade, ratifica a dispensa de impugnação judicial da matéria:

“16. Na visão da PGFN, a ratio decidendi do RE nº 576.967/PR, composta por argumentos de inconstitucionalidade formal e material, pode ser ampliada para abarcar as ações que buscam afastar a exigibilidade das mesmas exações sobre os valores recebidos na prorrogação da licença-maternidade de que trata o artigo 1º, I, da Lei nº 11.770, de 2008, a teor do artigo 19, §9º, da Lei nº 10.522, de 2002, que autoriza justamente a regência do acórdão-paradigma aos temas não abarcados por ele, acaso não haja distinção ou motivo relevante que justifique a manutenção da atuação judicial.”

O parecer destaca que, mesmo com peculiaridades distintas no modo de pagamento, tanto no salário-maternidade como na prorrogação da licença-maternidade, o ônus financeiro da verba não recai sobre o empregador.

Essa afirmação leva em conta que o ônus da prorrogação da licença-maternidade é repassado para a União por meio de dedução no IRPJ. Ou seja, o Programa Empresa Cidadã regulamenta devidamente o tema e retira o ônus econômico do empregador.

Esse elemento é muito importante, pois reforça que não se trata de verba salarial — o que já se poderia considerar pela falta de habitualidade do ganho e de contraprestação efetiva no período em questão.

Ao retomar os motivos que justificam a decisão do STF, o parecer ratifica a dispensa de contestar e recorrer em demandas que rebatam a inclusão da verba paga durante a prorrogação da licença-maternidade (artigo 1º, I, da Lei 11.770/08) na base de cálculo da contribuição previdenciária patronal e das destinadas aos terceiros.

Ainda segundo o parecer, os casos de redução de jornada de trabalho têm peculiaridades a serem consideradas, que diferenciam essa situação do entendimento dado à prorrogação da licença.

Em nossa avaliação, é exatamente nesse sentido que deve caminhar a jurisprudência sobre a prorrogação da licença-maternidade, mantendo-se em linha com o que foi decidido pelo STF.

O reconhecimento da não incidência de contribuições previdenciárias sobre a prorrogação da licença é necessário para garantir os direitos básicos da criança e do adolescente e estimular as adesões ao Programa Empresa Cidadã, trazendo os esperados ganhos sociais ao país.

Antes da edição desse parecer, identificamos um volume ainda tímido de decisões do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) que afastavam a incidência das contribuições previdenciárias patronais também no período da prorrogação previsto no Programa Empresa Cidadã, sob o entendimento de que se deve aplicar os motivos que levaram à decisão — a ratio decidendi — do STF no Tema 72 [6].

Com a manifestação formal da PGFN sobre o tema, tudo indica que, em breve, a matéria será consolidada, ratificando a decisão do STF. Esperamos que a confirmação desse cenário traga mais segurança às empresas e incentive um número substancialmente maior daquelas que são optantes pelo lucro real a aderir ao Programa Empresa Cidadã.


[1] Assim como a licença-paternidade e adotante, nos termos da Lei 12.257/16, que alterou a Lei 11.770/08.

“Artigo 1o É instituído o Programa Empresa Cidadã, destinado a prorrogar:

II – por 15 dias a duração da licença-paternidade, nos termos desta Lei, além dos cinco dias estabelecidos no §1o do artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

§2o A prorrogação será garantida, na mesma proporção, à empregada e ao empregado que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança.”

[2] O Decreto 10.854/21 revogou o Decreto 7.052/09, que inicialmente regulamentava a Lei 11.770/08.

[3] Conforme Projeto de Lei do Senado 281/05, de autoria da senadora Patrícia Saboya (sem partido/CE).

[4] Conforme artigo 22, I, da Lei 8.212/91.

[5] Ainda sob a perspectiva do vínculo familiar, é válido acompanhar o julgamento do STF sobre a ausência de regulamentação da licença-paternidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 20 (ADO 20). O julgamento está suspenso devido ao pedido de vista apresentado pela ministra Rosa Weber. Esse precedente conta com seis votos que estabelecem quatro entendimentos distintos, os quais serão abordados em outro artigo.

[6] Nesse sentido: TRF 3ª Região, 2ª Turma, ApelRemNec — Apelação/Remessa necessária — 5004224-13.2020.4.03.6130, relator desembargador federal José Carlos Francisco, julgado em 30 de março de 2023, intimação via sistema, data: 3 de abril de 2023; e TRF 3ª Região, 2ª Turma, ApelRemNec —Apelação/Remessa necessária — 5006593-36.2021.4.03.6100, rel. desembargador federal José Carlos Francisco, julgado em 27 de julho de 2023, intimação via sistema, data: 28 de julho de 2023.

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