Julgamento da ADI 7.236: a dupla chance de persecução
20 de maio de 2024, 16h16
Introdução
O Supremo Tribunal Federal iniciou no último dia 9 de maio o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 7.236, proposta pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), questionando diversos dispositivos que promoveram alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), realizadas pela Lei 14.230/2021.

A LIA remonta ao ano de 1992, no contexto da redemocratização do país e da promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu a moralidade como um dos princípios da administração pública. É um dos principais instrumentos jurídicos para a defesa da moralidade e probidade na administração pública, regulamentando o disposto no artigo 37, § 4º da Constituição.
Dentre os questionamentos que constituem objeto da ADI, destaca-se a impugnação do artigo 21, § 4º, que estabelece uma comunicação entre todos os fundamentos da absolvição penal para impedir o trâmite da ação de improbidade que veicule imputação do mesmo fato. O referido artigo dispõe:
Artigo 21, § 4º. A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).
No voto oral, apresentado pelo Ministro Alexandre de Moraes, na sessão de 15 de maio, defendeu-se a inconstitucionalidade do dispositivo acima transcrito, por violação ao artigo 37, § 4º da Constituição Federal. A disposição constitucional, por sua vez, estabelece:
Artigo 37, § 4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. g.n.
Do que se pôde compreender do voto oral apresentado na sessão de julgamento, a inconstitucionalidade do artigo 21, § 4º se daria justamente pela ressalva existente no termo final do parágrafo quarto, isto é, pelo preceito da independência entre as instâncias entre a esfera de improbidade e penal, in verbis: “(…) sem prejuízo da ação penal cabível”.
Respeitado o posicionamento já apresentado pelo Ministro Alexandre de Moraes, ousamos apresentar algumas considerações para contribuir com as reflexões sobre o tema, especificamente sobre a discussão da constitucionalidade do artigo 21, § 4º, porque entendemos, salvo melhor juízo, que a referida disposição legal, acrescentada pela reforma da Lei de Improbidade Administrativa, auxilia a mitigar a dupla chance de persecução sancionatória.
Similitude da natureza jurídica da ação de improbidade com a ação penal
A ação de improbidade administrativa possui bastante similaridade com a natureza jurídica da ação penal, dado o caráter repressivo e sancionatório da improbidade, expressamente reconhecido pela atual legislação (artigo 1º, § 4º da Lei nº 8.429/92).
Conforme já tivemos a oportunidade de analisar [1], a similitude entre a natureza jurídica da ação penal e da ação de improbidade administrativa pode ser constatada por diferentes aspectos, tanto no âmbito de direito material, quanto no âmbito de direito processual.
No que se refere ao direito material, temos que ambas as ações são instrumentos para controle da moralidade pública, com aferição e comprovação de condutas ilegais, visando a aplicação de graves sanções, com direta e imediata interferência em direitos constitucionais.
Na esfera penal, as sanções possuem o condão de interferir na liberdade, no patrimônio e nos direitos políticos, haja vista a incidência, para além da pena privativa de liberdade, de restritivas de direitos, estabelecimento de reparação cível e afetação aos direitos políticos (artigo 15, inciso III da Constituição).
A ação de improbidade administrativa, embora não interfira na liberdade de locomoção do indivíduo, também possui sanções com incidência no patrimônio e nos direitos políticos, e restrições relacionadas ao exercício de atos comerciais, como o de contratar com o Poder Público e usufruir de benefícios fiscais e creditícios. A depender da atividade desempenhada pelo indivíduo — ou sua companhia — isso pode significar sua morte civil.
A título de exemplo, uma condenação por ato de improbidade com suspensão de direitos políticos, perda do cargo, função pública ou mandato eletivo (artigo 12, I, II e III da Lei nº 8.429/92), é mais gravosa que uma condenação criminal a uma pena inferior a quatro anos, a qual não gera esta restrição (artigo 92, I, Código Penal).
É preciso observar que o Brasil é um dos únicos países, senão o único, a tratar a disciplina de penalidade de improbidade administrativa, pela esfera judicial, para além da sanção penal. Em artigo sobre o tema, com bastante preciosidade, o promotor de Justiça André Luiz Nogueira da Cunha [2] aponta essa questão, indicando que “em todos os países da América, na França, na Espanha e em Portugal, pode-se verificar que não há nenhuma lei específica sancionando civilmente os atos de improbidade administrativa como no Brasil”.
Existe, portanto, uma característica ímpar sobre a cumulação da ação de improbidade com a ação penal que deve ser harmonizada no ordenamento jurídico.
Microssistema de controle da moralidade pública e dupla chance de persecução
O ordenamento jurídico brasileiro possui um emaranhado de legislação voltada ao controle da moralidade pública e a respectiva responsabilização pessoal, seja de agente público, seja de particular, existindo a interlocução, como já mencionado, entre a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei Anticorrupção, disposições do Código Penal, dentre outras legislações.
A formação legislativa gera um risco de existir um excesso de responsabilização, em razão da dupla chance de persecução — também chamado de double jeopardy — quando se concede uma dupla oportunidade ao Estado de punir o suposto responsável por um ato ilegal em esferas distintas.
Decisões do Supremo Tribunal Federal tentam compatibilizar essas esferas, como é possível verificar de decisão do ministro Gilmar Mendes, indicando que é possível o trancamento da ação de improbidade quando existe um “juízo de certeza negativo na esfera criminal” (RCL 55.458/PR) e, também, decisão do ministro Dias Toffoli, indicando que a constatação da inexistência de dolo na esfera penal comunica para a ação de improbidade administrativa envolvendo os mesmos fatos, “sob pena de ruptura da coerência do sistema de Justiça” (ARE 1.359.880/SP).
Entende-se que essa situação — de ausência de efetiva interlocução e aplicação harmônica das diversas legislações sancionatórias — foi evidenciada pelo legislador e objetivou a redação do artigo 21, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa, para mitigar esse risco de excesso punitivo, de forma mais cristalina e evidente.
Como visto, existe a distinção constitucional de controle e responsabilização pela ação criminal e pela ação de improbidade, com a possibilidade — frisa-se, constitucional — de aplicação cumuladas de sanções, em razão dos mesmos fatos, em esferas distintas. Isto é, a responsabilização por improbidade, sem prejuízo da ação penal cabível.
No entanto, entende-se que o artigo 21, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa, não impossibilita o processamento de um sujeito pelas duas esferas — penal e improbidade —, senão estabelece apenas a hipótese de harmonização entre elas.
Não há, por esse entendimento, violação ao artigo 37, § 4º da Constituição, porque está assegurada a tramitação da ação penal, para além da ação de improbidade, respeitados os demais parâmetros legais de harmonização entre as esferas de responsabilização.
O cerne da discussão está inserido no grau de independência entre as ações de responsabilização de improbidade e penal. A antiga legislação previa apenas a comunicação entre a instância cível e penal, se provada a inexistência do fato ou da autoria no juízo criminal. A nova legislação, inserida pela reforma da LIA, clarificou a comunicação entre a instância cível e penal, em obediência aos preceitos firmados em Tratados de Direitos Humanos.
Não se pode justificar uma dupla possibilidade de o Estado instar o sujeito a responsabilização de forma independe. Trata-se da vedação à dupla chance de persecução. O princípio do double jeopardy, efetivado em Tratados de Direitos Humanos que o Brasil é signatário, visa impedir contradições no sistema judicial.
Não é possível admitir que na esfera criminal o Poder Judiciário não consiga identificar a irregularidade do agir de determinado particular ou agente público e, em outra esfera igualmente sancionatória, o Poder Judiciário entenda pela irregularidade da mesma conduta.
Na instância penal produz-se provas em busca da verdade real (artigos 155 e 156 do Código de Processo Penal). Pretende-se estar o mais próximo possível da realidade dos fatos ocorridos. A negativa de responsabilização na esfera penal deve ser suficiente para abrandar a independência entre as instâncias, estabelecendo uma comunicação que prestigia a coerência do sistema de justiça.
É preciso compatibilizar o microssistema de controle da moralidade pública, já desenvolvido para o fim de incrementar o aparato sancionatório do Estado, com os mecanismos de defesa, e observância às disposições dos Tratados de Direitos Humanos.
Os tratados possuem efetiva normatividade no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive com status constitucional, devendo ser efetivamente preservado e observado. As normas que efetivam direitos humanos devem ser efetivadas com maior garantia aos direitos, otimizando-se a aplicação, no sentido que lhe dê maior eficácia possível de incidência [3].
Temos positivado em tratados o princípio do double jeopardy, o qual visa impedir que o sujeito seja instado pelo Estado a responder em mais de uma ocasião pela mesma imputação. Isto é, que sofra o mesmo risco da força estatal em mais de uma situação, de forma independente.
Importante salientar a origem deste preceito pelo princípio do double jeopardy, pelo caso paradigma Ball v. United States, 163 US 662 (1896), em que se analisou e consagrou-se na jurisprudência americana a impossibilidade de sujeitar o cidadão, em mais de uma ocasião, ao risco de julgamento pelos mesmos fatos.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado ao Ordenamento Jurídico Brasileiro pelo Decreto nº 678/92, dispõe em seu artigo 8, item 4, que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos” g.n. Semelhante disposição está inserida também no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado ao Ordenamento Jurídico Brasileiro pelo Decreto nº 592/92, no artigo 14, item 7.
Verifica-se que na disposição da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, transcrita acima, não há relativização entre esfera criminal ou de improbidade, sendo estabelecido que o acusado absolvido não poderá submeter a novo processo pelos mesmos fatos, independente da motivação da absolvição.
Reitera-se: o artigo 21, § 4º, da LIA permite que o mesmo sujeito, pelos mesmos fatos, seja responsabilizado na esfera de improbidade e na esfera penal, em obediência ao preceito final do parágrafo quatro do artigo 37 da Constituição; no entanto, o novo artigo da Lei de Improbidade impede uma dissincronia no sistema judiciário ao vedar que o mesmo sujeito, pelo mesmo fato, seja inocentado na esfera penal, que possui standard probatório mais rigoroso, e condenado na esfera de improbidade.
Se o mesmo Estado tentou punir um sujeito por determinado fato e não obteve sucesso, não lhe é dada uma outra oportunidade, em outra instância de responsabilização também gravosa, para tentar novamente a punição, independente do motivo — justamente conforme as disposições dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos — e porque buscou-se, no processo penal, a verdade real.
Conclusões e necessidade de observância à eficiência do Estado
Em conclusão, entende-se que a sistemática estabelecida pela nova legislação, com comunicação entre a esfera penal e a de improbidade administrativa prestigia a eficiência na atuação sancionatória do Estado.
O Conselho Nacional de Justiça [4], em estudo desenvolvido especificamente sobre as ações de improbidade administrativa, identificou que menos de 4% das ações resultaram em alguma restituição ao erário em razão dos ilícitos praticados. Há um dado concreto sobre a ineficiência das ações de improbidade administrativa para fins de recomposição do desvio de conduta em favor do Estado.
Em artigo jurídico, Ivo Teixeira Gico Júnior [5] identifica uma lentidão e ineficácia do sistema judiciário, não compatível com o seu alto custo. Demonstram-se evidências da morosidade do Poder Judiciário no Brasil e da relevância de se ter um sistema eficaz e célere até mesmo para o desenvolvimento econômico do país.
É preciso existir uma efetiva preocupação com a eficiência também na atuação sancionatória do Estado, que possui recursos limitados e escassos para exercício de suas funções, inclusive sancionatórias. A finalidade da sanção, além de definir os comportamentos esperados de indivíduos em uma sociedade, estabelecendo a repressão em caso de não observância da regra jurídica estabelecida, também é a prevenção e a recomposição da violação.
Quanto maior a eficiência sancionatória — compreendendo o menor custo e tempo para a punição do sujeito —, maior a prevenção e a recomposição da violação à norma jurídica. A congruência do microssistema normativo de controle da moralidade prestigia igualmente a eficiência na atuação sancionatória do Estado, aliviando uma sobrecarga existente do Poder Judiciário, por atuações incongruentes.
Não se pretende indicar que a utilização da ação de improbidade administrativa não se sustenta tão somente pelo viés de economicidade, mas se identifica a necessidade de debruçar o olhar sobre essa situação, inclusive sob o enfoque de eficiência, a fim de adotar outras providências para controle da corrupção que não o transforme em um fim em si mesmo.
O que se sugere, em conclusão, é que a organização do poder punitivo estatal, com congruência interna das esferas sancionatórias, tem o condão de aliviar o sistema judiciário, contribuindo para efetividade da atuação sancionatória, além de afastar o excesso de responsabilização, a violação aos direitos de defesa e até mesmo uma hipótese de não responsabilização — impunidade — pela sobrecarga do Poder Judiciário.
___________________________________
[1] TAMASAUSKAS, Igor Sant’Anna; MAZIEIRO, Otávio Ribeiro Lima. Colaboração premiada e improbidade administrativa: observância aos precedentes criminais do Supremo Tribunal Federal, in Revista Digital da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil Seção do Rio de Janeiro. Volume 02. Ano 02.
[2] CUNHA, André Luiz Nogueira da. Brevíssimo comentário sobre a corrupção e a improbidade administrativa em outros países. Disponível em: https://www.apmp.com.br/juridico/artigos/docs/2001/07-10_andreluiznogueiradacunha.doc
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. Pág. 325/326, 101, 108 e 115/116.
[4] Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida [et al]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015
[5] GICO JÚNIOR, Ivo Teixeira. A Tragédia do Judiciário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 163-198, set./dez. 2014
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!